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Físico: Ensaios de A a Z para mentes inquietas – Rituaali Empório
@clecio.branco
ÁGUA
Existe uma ecologia das ideias danosas, assim
como existe uma ecologia das ervas daninhas.
Gregory Bateson1
Qual é a imagem da água? Da água que cai das nuvens em forma de chuva, da que escorre nos subterrâneos, da que se arrasta nos rios? Das águas das fontes, dos lagos dourados ou cristalinos? Em termos semelhantes, as águas são descritas em uma bela canção do compositor Guilherme Arantes:
“Planeta água
Água que nasce na fonte serena do mundo
E que abre um profundo grotão
Água que faz inocente riacho
E deságua na corrente do ribeirão.”
No entanto, não há propriamente a imagem da água em nenhum desses casos, mas, sim, uma imagem das margens que o olhar humano capta, criada por limites e contornos. Na qualidade de força sem imagem, a água, e não só ela em si, mas o espelho d’água, o toque da água, seu frescor, tudo isso nos desperta sensações indefinidas, ainda que não pensemos nisso. As crianças lidam de forma maravilhosa com as poças d’água que recobrem a grama logo após as fortes chuvas de verão. Quem não se lembra de uma cena de infância como esta: a grama fina e verde suavemente recoberta pela água límpida da chuva. Lembranças das águas de um pequeno lago que deságuam na areia ou na grama precipitam em nós as mais sublimes sensações. As imagens que descrevo vêm das bordas: a grama verde e a suavidade da fina camada de água. O que elas causam à percepção, aos sentidos? Talvez sejam apenas as imagens submetidas ao sistema sensório-motor, demasiadamente adaptado às percepções humanas, excluindo, portanto, os sons e as imagens da pura natureza em si. Seria necessário libertar em nós a natureza. O “mundo que se perdeu”2 está no animismo por trás dos sentidos que se condicionaram à urgência humana de sobreviver neste mundo demasiadamente tecnológico. O filósofo convoca o mundo das crenças religiosas e os ateus a se unirem em uma “universal produção primária”,3 convida-os a prestar um culto à vida.
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.4 As sensações da natureza, em nossa natureza humanizada, ficam indefinidas, pois estão transitando cada vez para mais longe de casa, ou seja, a própria natureza, fonte dessas sensações, passa despercebida por nosso sistema perceptivo. Esse encontro do corpo humano com esse corpo indefinido, a água, proporciona-nos uma prova da força da natureza sobre nós. Os indefinidos são fontes de sensações que não sabemos descrever. Assim, dizemos apenas coisas do tipo: isso é bom; sinto uma alegria; sinto um medo; sinto uma insegurança; sinto uma desorientação. Mas não sabemos dizer os porquês. A criança de colo, principalmente, vive mergulhada nos indefinidos. Por isso, ela lida tão bem com a água. As crianças e os animais vivem por afectos — são seres capazes de afetar e de se deixar afetar. Já os adultos, mesmo sendo afetados, em geral, nesses casos, são afetados por tristeza. Eles ficam demasiadamente chateados com a chuva e com as poças d’água. Desistiram de entender os afetos e não os percebem mais. As crianças, diferentemente dos adultos, não se prendem tanto às definições quanto aos afetos que as afetam. Em nosso caso, quando já somos adultos — a não ser que sejamos poetas —, reduzimos tudo à percepção imediata e básica. Assim, todos os afetos são reduzidos a um só bloco de imagens — e detemos todo o processo da natureza em nós. Como definições, as imagens tendem a encerrar um processo. Mas existem imagens que têm a finalidade de iniciar processos indefinidos. Essas são as imagens que se dissipam, que se pulverizam no espaço e no tempo. E são as mais interessantes. Incluo as imagens da botânica, por estarem em estreita ligação com a água. Stefano Mancuso, em seu belo livro A incrível viagem das plantas, chama a atenção para a existência das árvores. Elas permanecem no mundo dos homens, em silêncio, mas são autênticas testemunhas de centenas de anos de história. Em muitos lugares do mundo, as árvores testemunharam a ascensão e a queda dos impérios. Não é no mesmo sentido que Deleuze diz do mundo que nos escapa, mas no que diz respeito à nossa ignorância em relação aos seres vivos dos quais dependemos para viver. As árvores são um canto, um coro; as florestas, por sua vez, são uma sinfonia à vida. Elas viajam continentes, atravessam oceanos e se espalham no mundo, em uma espécie de doação incondicional aos seres que delas se beneficiam. As plantas andam sem ter pernas ou pés, deslocando-se pelo mundo. Viajam com os ventos, nos pássaros, nos pelos dos animais, nas bagagens dos viajantes ou nas correntes marítimas. Estamos ficando cada vez mais humanos, por isso, de forma paradoxal, percebemos e sentimos cada vez menos a natureza em nós. Talvez diante das rupturas que vivemos, e que põem em risco a sobrevivência da espécie humana, possamos pensar melhor nossa afinidade com o ecossistema, já que dele somos integrantes fundamentais.
Amor I
Platão diz, pela boca de Sócrates — personagem de seus diálogos —, que o amor, no que se refere à sua dimensão humana, é, por natureza, pedinte, faltoso, mendigo. Por outro lado, o amor também tem características divinas: é expediente e sagaz; é preenchimento e exuberância. De algum modo, portanto, o amor é justo. Quando os amantes estão apaixonados, é como se eles se encontrassem cheios de deuses, como se não sentissem falta de nada. Quando estão plenos de amor (Eros), os amantes não se dão conta da ressaca vindoura. Muitas vezes, ela bate à porta antes do previsto. É que o nome desse amor, como todos os nomes, é uma representação arbitrária de um efeito de preenchimento químico. A emoção do amor resulta da afecção química. E tem curta duração — dura tanto quanto seu próprio efeito, podendo terminar subitamente. Tanto o sentimento amoroso como a química que o causa são fenômenos dissimétricos: cessado seu efeito sobre uma das partes, um dos amantes há de ficar na mais profunda penúria, pobreza, feito pedinte, como diria Platão. Quando o amor é falta e penúria, ele o é porque o amado não tem o objeto de seu desejo. E o amor é divino quando o amante tem quem o ame, quando a anuência presente do objeto amado corresponde ao amor. Pensando na “roda de suplícios” de Schopenhauer, em que a vontade parece ser sinônimo de desejo, ou ainda no caso do desejo tal como concebido pela psicanálise, segundo o qual o desejo se encontra irremediavelmente atrelado à falta de objeto, não haveria aí um ar de moralidade e submissão ao poder que quer enfraquecer uma força chamada amor? Autores como Platão, Schopenhauer, Freud e Lacan parecem fazer parte de uma longa tradição que submeteu o amor e o desejo a uma lei: a lei da castração da falta. Talvez por isso os poetas tenham de dizer: amar é indissociável de sofrer.
Amor II
Equivocados ou não, entramos no mundo com esse je t’aime de papai-mamãe, que nos soa estranho ainda no berço ou nos braços do nosso único grande amor. Sendo esse eu te amo impossível de se perpetuar na vida adulta, fica a sensação, em perspectiva futura, de um dia reencontrarmos esse amor pleno e outrora perdido. A ficção do amor perdido, que tanto inspira musicais, filmes, literaturas e demais resultados culturais, também recria a imagem de um amor sempre por vir, pleno de possibilidades desilusórias. Isso torna compreensível o fato de, quase sempre, toda história de amor terminar em tragédia. Não é que o amor esteja perdido; ele apenas não pode ser encontrado, em um outro que nos ame, no mesmo nível que tivemos na infância ou na ficção de nossas expectativas. Assim como tudo na vida, o amor só pode ser vivido em sua forma real, acompanhado de dores e risos, chegadas e partidas, começos, recomeços e términos.
Notas
1 GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 2001, p.2.
2 DELEUZE, G. “Controle e devir”. In: Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992, p. 218.
3 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, p. 14.
4 DELEUZE, Gilles. “Controle e Devir”. In: Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992, p. 218.
Clécio Branco é psicólogo clínico, Mestre e Doutor em Filosofia. Autor das obras Ensaios de A a Z para mentes inquietas e Encontros com o Mestre I. Disponíveis na Amazon em versão Kindle e física.