Cultura

Caderno de noites | Mariana Ianelli

Foto de Nayan Patel na Unsplash

1.

 

De que corpo é essa palavra que transmigra, de que feixe maduro de tempos essa dança, que levanta o pó na cintilação da poalha, de quanta pedra enovelada em fio de pérola, de quanta guerra parindo o seu contrário?

 

2.

 

A certa altura da noite, vindos de algum exílio, damos nesta ilha que nos põe a dizer coisas que raramente diríamos à luz do dia. Quem nos tornamos nesta hora, que somos tão próximos e não nos vemos? E no que se torna a palavra que não evola, como aquelas que só dizemos em momentos extremos?

 

3.

 

Quem ousa o grito que acorda os cães da noite alta? O escuro remoinha, o escuro se encapela, o escuro vai cobrir tudo com seu mar. Estonteado grito, agora percebes? Sempre mais temível é a noite, que te confunde com os cães, depois te encobre.

 

4.

 

Hoje me atravessa uma imagem do futuro como uma andorinha extraviada. Um céu sem lua e eu estou uma criatura dócil, de amadurecida humildade. Amanhã, amanhã as andorinhas virão cedo, virão rápidas, eu estarei de novo cega, e toda mansuetude será remota como um sonho deslembrado. 

 

5.

 

Sobreviveu ao dia e agora se assanha, vício que mata, e eu agarro, eu quero, erro com gosto, me mato, todas as noites me mato, transfundo-me para isto que é nada, isto que será nada, petrificado no tempo, até que o tempo novamente o invada e outra vida dê de beber a esta sede drácula, e sim: eu creio nas águas ressuscitadas, sim: eu creio no fogo.

 

6.

 

Braços tão elásticos que teu corpo tem para os ventos! Como se te fizessem tremer de anseio pela chuva, e ela vem, ela desaba sobre teus galhos reverentes, bátega de verão, exorbitância de dar mais que o necessário, mais que o feraz e o copioso, exorbitância de dar até o desbordo da morte, mas não, teu corpo de árvore não morre, afoga-se e não morre, embora enraizado é um corpo que chacoalha, se descabela, não para. Talvez tivesses pena de mim, pena do amor suficiente que alguém me tem quando pede que eu me agasalhe. Vejo da janela tua ramada, que dança à altura da vida, e tua vida faz que me ignora.

 

7.

 

Aqui é um céu desmesurado. Tudo ele toma para si, as rotas dos aviões, os diferentes tipos de nuvens, as ambiciosas pipas de beira de estrada, tudo. É um céu que nos cega para os horizontes com o acortinado leitoso das chuvas das tardes de verão, um céu que nos oculta as constelações sobre a névoa de luzes da estrada. Esta noite, vinte e seis estrelas furam a abóbada de névoa com seu brilho, e que pareçam solitárias e dispersas no céu, é só uma miragem dos nossos holofotes. Seria preciso que a estrada se apagasse toda, e as casas, e os prédios à margem dela. Que se fizesse outra noite dentro desta. Então seria um céu de estremecer. Um céu de fechar todos os nossos livros. Uma calota de negrume em fogo. O mais antigo ardor dentro da escuridão mais antiga. 

 

8.

 

A estrada hoje está que até os caminhões parecem leves. O que levará a rodar, a esta hora, esses que viajam enquanto um mar de gente dorme? Que urgência, que paixão? Somos todos contrabandistas, colegas na recusa do repouso, de sentinela com nossas lâmpadas amarelas, nós, estes animais noturnos, estes seres de poema antecipadamente cúmplices nesse chiado de velocidade acelerada na estrada feito água de enxurrada sob veladura, nessa letra apressada também, ansiosa por ultrapassar as coisas últimas, e por quê? Por que urgência, por que paixão?

 

9.

 

Antese no jardim depois das chuvas. Brilham dez gotas guardadas nos debruns da rosa mais empinada. Quem te culpa é quem te abusa, agarrado em teus espinhos. Que te chamem de indecente, alto desperdício. São as chuvas entre sóis que te excitam. São as noites que te abrem.

 

10.

 

Pequeno esplendor através das janelas, dedos impregnados de mirra, sino fundador das moradas, temos quanto tempo ainda?

 

11.

 

A noite me possua como faz a esse jardim, que ninguém vê como vive no vento frio, como engorda o fruto da romã pensativamente, pois que se me entranhe esse tempo como faz a esse fruto, eu me desvisto, eu me desarmo, dou-me ao vento fresco, e ninguém que venha sedento saberá a lenta e funda lavoura de elaboração da doçura.

 

12.

 

Viver com os vultos do exílio, os animais amantes, as almas assassinas, viver com os de secretíssimos transes, os cativos dos labirintos, os errados, os errantes, os sozinhos, ter com os cegos, os mortos, os de longe, os caídos em toda a sorte de escuro, poço, tugúrio, horto, estar ali e ali dar seu timbre ao corpo dum misterioso idioma, viver essa segunda vida, onde não se é visto, preparar o surgimento de um rosto.

 

13.

 

De que valem os ventos esta madrugada? Hoje não farejaremos sendas nem expediremos cantos a longa distância. Alcançaremos doer como mestres e nos libertaremos das palavras.

 

Fotografia de Mariana Ianelli

Mariana Ianelli nasceu em 1979, em São Paulo, onde vive. É autora de livros de poesia, crônica, ficção, ensaio e literatura infantil. Formada em jornalismo e mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP, foi editora da página Poesia Brasileira no jornal Rascunho de 2018 a 2022. Atualmente faz parte da equipe de cronistas do site do mesmo jornal. Em 2023 lançou a antologia “Turno da madrugada”, que reúne crônicas selecionadas ao longo de 12 anos de colaborações na revista digital Rubem e no site do jornal Rascunho. Agora em 2024, completa 25 anos de poesia desde sua estreia.

Site oficial: www.marianaianelli.com.br

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