Cultura

Tragédia enterrada | Adriano B. Espíndola Santos

Eu nunca tive intenção alguma de causar um mal a Edite. Pelo contrário, ela acobertava as minhas travessuras, quando me via, por exemplo, trepado em uma árvore; em cima de um poste; ou me pegasse investindo contra a lataria do carro velho de meu avô. De coração, aquilo jamais poderia ter acontecido. Numa manhã de sábado, minha mãe estava determinada a se ver livre de mim; largou-me como um troço qualquer aos cuidados de Edite, porque teria de ir à feira comprar umas coisas. Bem, eu já sabia muito bem que a minha mãe demoraria todo o fim de semana para me buscar e, depois, me encaixotar no cubículo em que vivíamos, o qual ela dizia ser casa – quando, para ela, era local de abate e sexo selvagem. Meu avô, um idoso de, sei lá, oitenta anos, já não enxergava, e o que me chateava era ter de levá-lo constantemente ao banheiro, porque havia o risco de mijar na roupa e na casa inteira. Era, sim, um alívio também para Edite, que ficava um tempo na cozinha, cantando, enquanto eu fazia a nobre tarefa de cuidador. Esqueci-me de dizer que Edite morava na casa de meus avós desde mocinha, quando viera do interior para “estudar” e “trabalhar”; ou seja, nesse tempo todo, não discernia o que era família e tratava-nos como tal. Se meu avô não tivesse atacado o seu pudor, creio que Edite o teria como pai. À minha avó, já falecida, chama de mãezinha. De todo modo, mesmo sendo uma general, acomodava os quereres de Edite e da filha de sangue, minha mãe, Eva, que nasceu extemporânea, quando nem ela nem meu avô desejavam ter filhos. Nesse dia, quis fazer uma surpresa para o homem mijão. Levei-o ao banheiro, para descarregar, e, vendo que ele fazia o número um e o número dois, com nojo larguei água sanitária nas suas pernas encardidas, para ver que efeito dava e para descer os resíduos para a privada. O velho deu um pulo e começou a me xingar. Edite felizmente não o ouviu, porque estava com o som nas alturas. “Vô, isso é para limpar essas machas podres que tem nas suas pernas e para ver se sai o cheiro de bicho morto daí”. “Vá se ferrar, moleque dos infernos! Me tira daqui! Edite, olha esse maluco aqui! Eu vou lhe matar, está ouvindo Leonardo?! Vou lhe matar!”. Ele tentou se levantar só, e eu saí com medo. Logo ouvi um barulho como se fosse uma explosão. Meu avô não falou mais. Assim, permaneci escondido na sala, atrás do sofá, rindo da bagunça. Edite passou correndo e também se espatifou no chão melado de merda e sangue. Gritou: “Acuda! Acuda aqui, Léo, o vô tá apagado!”. Chamamos a ambulância, mas era tarde; o velho, enfim, passou desta para a pior; decerto, agora, é o braço direito do capeta. Não queira saber a virada que ocorreu nas nossas vidas. Fui ouvido pela polícia. Mesmo tendo alertado que foi um acidente desgraçado, Edite foi processada por crime culposo, sem a intenção de provocar o dano. Foram anos que ela padeceu na prisão. Não duvido que minha mãe tenha dado uma forcinha para que Edite permanecesse trancafiada. Claro, havia o risco de Edite ser herdeira; não se sabia se havia testamento ou algo do tipo. A pobre da Edite amargou sete anos na prisão, sem ter feito nada. Quando saiu, ainda me abraçou, com pena de mim; por imaginar que eu teria passado maus bocados com a bruxa da minha mãe – de fato, sim. Levei Edite para a minha casa, que recebi de herança de minha avó. Edite também era dona de dois imóveis, mas perdeu por ser indigna de receber a herança. Ainda não tive coragem de contar-lhe os pormenores. Talvez seja melhor assim. Não é bom molestar uma pobre criatura com uma tragédia enterrada.

 

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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