Tempo de guerra, sangue e mentira | Flávio Sant’Anna Xavier
“O mal que os homens fazem não morre com eles”
Henry David Thoreau, Walden
Um pouco antes de morrer o escritor Amós Oz esteve em Porto Alegre. Parecia frágil, não se sabia já vitimado por câncer que o abateu velozmente. Ele se agarrou no púlpito e nos avisou que a memória dos horrores da última grande guerra estava se esvaindo. Na Europa – continente das matanças coletivas – o espectro dos judeus incinerados nos campos de concentração por algumas décadas nos impingia horror. Um pesadelo que não queríamos reviver. Legião de 40 milhões de mortos feneceram na guerra nazifascista e no militarismo japonês, com destaque aos judeus (6 milhões) e os soviéticos (20 milhões). Talvez a maior carnificina de todos os tempos, neste vale de lágrimas da nossa condição humana. A memória do horror se dissipou.
A Europa foi o único continente onde a importação de armas mais cresceu. Não agora – com a guerra na Ucrânia -, mas nos últimos cinco anos. Enquanto no mundo decresceu 4,6%, no continente europeu aumentou 19%, segundo o informe anual do Instituto Internacional para a Paz de Estocolmo (Sipri). A maior parte fabricada nos Estados Unidos, cujo orçamento militar beira os 400 bilhões de dólares, maior que o restante planetário. Nenhum raciocínio deve se afastar desta realidade: o negócio bilionário que envolve a guerra e seus subprodutos principais: o sangue, a devastação e a mentira.
Putin e Biden estão em crise e agem para seus grupos radicais internos. Logo no início do mandato, Biden chamou Putin de “assassino”. Quando o chefe de Estado da maior potência do mundo personaliza e injuria seu interlocutor, no caso uma grande potência, a primeira vítima é o diálogo que deve presidir tais relações, mesmo as mais distantes. Biden repetiu a ofensa do Senador John McCain, candidato republicano derrotado por Obama.
Putin juntou os cacos do desmoronamento da URSS e restabeleceu os padrões de sobrevivência do povo russo ao mínimo aceitável e promoveu a iniciativa privada com concentração de renda e privilégios estatais. Isso garantiu apoio popular no início, mas se consolidou como tirania, ao estilo da tradição czarista e do stalinismo, numa nação já acostumada ao autoritarismo personalista. Prendeu e perseguiu implacavelmente todos seus opositores, negando os valores mínimos de uma democracia. Dizem que por ocasião do impeachment de Dilma, Putin ofereceu ajuda militar. Dilma negou e ele a advertiu: não acreditasse ela na democracia.
Com o desmoronamento do chamado socialismo real se imaginava o fim da guerra fria e a possibilidade de fruição de um longo período de paz para a humanidade. No entanto, a exemplo do ocorrido na Primeira e Segunda Guerras, onde a Alemanha, além de derrotada foi humilhada, os falcões americanos trataram de ocupar o espaço no leste europeu, atraindo os antigos membros do Pacto de Varsóvia para a OTAN e criando um cinturão de armas nucleares em torno da Rússia. Isolando-a militar e economicamente. Evidente que haveria o contramovimento.
É curioso que o primeiro pedido de impeachment de Trump tenha se originado no pleito pessoal a Zelenskiy de investigação dos negócios supostamente escusos do filho de Biden, então candidato, na Ucrânia e depois a acusação, nunca comprovada, de intrusão de Putin na eleição americana, com devassa de e-mails democratas e na montagem da primeira eleição moderna sob o impacto das “fake-news”. Como se percebe há confusão entre as questões internas de ambas as potências e a resposta militar subsequente. O local e o global se tramando.
Há outras guerras em andamento, mas a da Ucrânia será a primeira a envolver as duas superpotências nucleares. O EUA sempre usando sua estratégia de não envolver diretamente seu território no cenário bélico. A maior potência militar, a maior indústria militar mundial, nunca experimentou a guerra em suas terras, dependendo de conflitos externos e da permanente política de hegemonia e controle das reservas naturais de combustíveis.
A só possibilidade da guerra na Ucrânia descambar para o combate nuclear é assustador. Basta que um míssil russo erre alguns quilômetros para que o cenário de terror se descortine. Nesta conjuntura, as sanções econômicas avassaladoras e o envio de armamentos para a Ucrânia podem inviabilizar a celebração da paz, potencializando ao máximo o conflito, com enormes perdas humanas e materiais. O oposto da guerra é a paz, e a paz só nasce com concessões. Não há outro caminho.
Por apenas 100 metros uma bomba não atingiu a usina nuclear de Zaporizhia, a maior da Europa. Se a atingisse haveria um impacto 10 vezes maior que Chernobyl.
Antigamente havia a hipótese de vitória militar, mas em se tratando de potências nucleares não existe esta solução. Ou se estabelece um acordo, com mútuas concessões, ou a barbárie atômica ensejará a recíproca – e global – destruição. Não é fortalecendo o conflito que se chegará à almejada paz e age irresponsavelmente os EUA e a OTAN em prolongar externamente o conflito.
Entrar numa guerra é relativamente fácil. Sair nem tanto. No cenário nuclear faltam interlocutores com grandeza para mediar o conflito e poupar vidas humanas, os civis que são alvejados a esmo além dos jovens recrutas.
Transcorridos algumas semanas do conflito estabeleceu-se um paradoxo: Putin almeja terminá-lo, encurtá-lo, o quanto antes. Não há como anexar a Ucrânia, senão a destruindo por completo. Biden pretende alongar, enfraquecer a economia russa e isolar politicamente seu eterno inimigo, com isso renascendo da cinza eterna do decaimento de sua economia e tentando se contrapor ao avanço chinês. E, obviamente, transformando a Europa em satélite e principal consumidor de armas.
O saldo deste impasse é o sofrimento de milhões de migrantes de guerra, já na casa dos 4 milhões. Em meio à eterna crise de migração será um impacto impressionante num continente já em chamas pela escassez de trabalho e das consequências da pandemia de coronavírus.
É curioso que a globalização e o fim das fronteiras causem enorme desamparo nas pessoas, mas fortaleça seu oposto: cultuar o local, as nacionalidades. Na Ucrânia, por exemplo, o ensino do russo foi proscrito, assim como os comunistas. Num mundo onde os estados nacionais não são mais capazes de governar a onda que se forma é a volta ao poder centralizado e nacionalista, com fortes apelos ao racismo, xenofobia, perseguição religiosa e o velho autoritarismo.
Opera-se também um deslocamento da hegemonia mundial, acentuando sobremaneira as diferenças regionais. Tudo é rápido e avassalador. Há um declínio americano e do dólar, em contraponto ao crescimento vertiginoso da China. A Europa cede sua soberania à voragem da indústria militar americana e seus poderosos interesses energéticos. O resto é o resto.
A direita e a extrema direita estão em briga. O império americano rui com o avanço da China. As bombas nucleares estão prontas para exterminar a vida humana e muito provavelmente o próprio planeta Terra, que nos serviu de casa estes milênios todos. O ser humano nunca esteve tão só e desamparado. Irmãos nossos vagam em meio aos estampidos dos projéteis que riscam a neve. Durante muito tempo “a primeira vítima da guerra era a verdade”. Depois “a inocência”. Agora, pela primeira vez, será a própria existência humana. Viva a paz! Por um mundo sem impérios! Pela autodeterminação dos povos! Pela democracia! Pelo ser humano!
Flávio Sant’Anna Xavier é Procurador Federal desde 1997. Autor de obras e artigos jurídicos na área do Direito Agrário e Administrativo. Autor do livro de contos “Guris” (2016).