Série “Mulher doce de roça” | Ibriela Bianca Berlanda Sevilla
Tenho o sobrenome de uma mãe
uma mãe estrangeira
que não me gestou
esse nome se sobrepõe à palavra
que me foi dada de presente como nome
por outra mãe
que tampouco me carregou em seu ventre
esse sobrenome ilha
invadida como todas as mulheres
Ilhas
motivos da guerra dos homens
que nos acometeram sempre
Nesse sobrenome há severidades
que nós, mulheres
guardamos no silêncio
Escolhi esse sobrenome porque é de uma mulher
longínqua e só, como eu
mas que jamais perdeu
a fortaleza
Muralha que guarda tanta desventura
esse sobrenome me guarda e ainda
em ruínas permanece
Tenho o sobrenome de uma mulher
palavra fêmea
uivo da América Latina que também é mulher
e nós, ilhas e continentes seguimos movendo o mundo dos homens
Mas eles sabem da voz
a nossa voz, as ondas e as tempestades cantam na mesma língua e têm a mesma força
Não deixarei descendentes para levarem consigo o sobrenome da mãe
deixo palavras ilhas femininas
marcadas nas páginas onde
sempre escrevemos
na terra arada onde sigo plantando
palavras árvores
palavras sementes
Se a montanha me foi tirada
se a plantação de sonhos me foi ceifada
busco a planície e a sombra da conífera mais alta onde semear sonhos novos
É na severidade da ilha onde nascem as mais belas e menos amargas.
Lua cheia de Setembro, 2021
***
Mulher Terrena
Ela nasce junto do miolo da couve flor
bem ao modo da Vênus do Botticelli
robusta e roliça porque a roça a quer assim
Pele pétala
sensível à rudeza da árvore
linda em sua força bravia
delicada em seus modos de
costura e
bordados e
crochês
A mulher terrena guarda a horta debaixo do vermelho das unhas
não usa maquiagem
toda cor está em seus olhos
o céu da boca estrelado
tingidos de vinho os lábios e os dedos dos pés
lava os cabelos na fonte
condiciona-os com a baba da babosa
cuida da cútis com camomila
e todas as flores e chás são felizes em servi-la
A mulher terrena
se move com destreza e rapidez entre
as hortaliças
o jardim
os móveis da casa
Não desdenha uma Ave Maria defronte à capelinha
mas sabe que pra bicheira e mau-olhado é a benzedeira que resolve
pra colher bons frutos é na lua certa que se planta
A mulher terrena limpa a casa como quem limpa a consciência
luta contra a pressa interna da semente
que não tem pressa
e luta mais com a fadiga eterna de ser aquela
que move os homens
a roça
o mundo
Dia de chuva é pra afiar as lâminas
cerzir a roupa rota
em dia de chuva o descanso vai se adensando num doce
de fruta cozido no tempo da lenha
lento, doce e espesso
como o amor que se faz no corpo da
mulher terrena
de quando em tempo o corpo é
brasa
chama
labareda
Ela
é bela e triste porque sofre a dor da seca
sofre o peso das pragas na plantação
guarda calada cada violência cotidiana
supera soberana
o sem amor dos dias
o desmedido amor
A mulher montanha
A mulher chácara
A mulher fazenda
A mulher granja
A mulher campina
A mulher bosque
A mulher floresta
Traz consigo uma sabedoria de tempos profundos como a terra
no interior não há transparência
é na fundura do solo do coração
sob a escuridão uterina da terra
ali no miolo do mundo que brotam os saberes
Ela cava fundo
vai até às raízes
a mulher terrena é
radical
desafia o nomadismo e
leva consigo o Ser Terra
***
Jabuticabo-me
Enquanto as jabuticabas sublimam
depois de liquefeitas
açucaradas
seguem transformando
o conjunto líquido
amorosa química da estação
Enquanto as jabuticabas derretem
no doce ocaso das horas
obedecendo o calor imperativo
do ferro
seguem transformando
suas diminutas almas frutíferas
em aromas espectrais
Enquanto as jabuticabas
seguem transformando
as areias sopradas
do tempo
em terra mais uma vez
composto pastoso
generosa matéria da chuva
Na simultaneidade da fervura
ardência do agora
Jabuticabo-me, dissolvida
***
A língua das abóboras
Visto minha saia de outono para falar da língua nova que aprendi
Aqui na roça e, em todas as roças, o idioma é outro
a vida é impiedosa
a peste imperativa
e os xingamentos que escuto baixinho vindos da comunidade dos insos falam de resistir
Dentro da ação de cada semente há sempre um tanto de dúvida e outro tanto de esperança
não é sobre a espera, mas sobre a ação da forma – trans-mutada – trans form ação
Sabe aquelas sementes plantadas com uma gota de desejo em cada cova?
vizinhas leguminosas, as abóboras morangas e cabotiás, essas que moram juntas, ensinam de sua forma e de sua doçura uma para a outra; egocêntricas, entreolham-se para ver quem corre mais longe pelo chão ao se esparramarem sobre o território
Aprender a linguagem da trans form ação, implica em territorializar
fincar estacas
colher abóboras
cortá-las em breves pedaços
cozê-las no tempo da lenha
abrir covas
adubar
sentir-se deus ao poder matar
as pragas e arrancar a peste
Enquanto as abóboras, entregues à sua própria suculência dentro da panela, passam pela glória de correr para dentro de si mesmas
Derretido todo o sumo, a polpa espessa aceita quente a dominação de quem transforma
Fazer chimia é dominar um território alquimia secular
substância ouro que em borbulhas, açúcar, cravo, canela e gengibre surge no tempo arrastado da transfiguração
é luxo, prazer e alegria
uma alegria assim, meio envergonhada como a gente da roça
Envergonhada é a palavra abstrata que fala flecha direta ao tambor do coração, certeira no rubor da face e enviesada no olhar
A língua química atravessa todos os corpos da gente que é Terra.
Ibriela Bianca Berlanda Sevilla é Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina.