Seis Poemas | Moreno
SEPARAÇÃO
Na cama, aparentemente vazia,
a morte sobre a colcha de casal estendida,
em cores de retalhos – florida.
Da alma dos travesseiros, dor e libertação.
Ninguém mais mora no quarto,
desde que a amargura subjugou o sonho.
Limpam-se as nódoas dos tacos e a poeira dos móveis
para nenhum visitador.
Tudo parece permanecer, mas nas veias das paredes
já não circula o sangue do amor.
O quarto, intacto.
Frio, feito o do filho morto.
Nada virá de ontem trazendo a ressurreição.
Nova comunhão de corpos fecundará,
no mesmo colchão, outra história de fim:
o quarto espera, com sua janela trancada
e seu mofo de jasmim.
***
MORTE EM VIDA
O amor morre todo dia.
Começa a morrer broto ainda,
na parição da terra que o enterrará.
No olhar primeiro começa a morrer,
no roçar dos rostos,
na umidade das mãos entrelaçadas,
o mofo do fim.
Sob a fervura da alegria – águas frias.
Nasce se despedindo, o amor,
na ascensão do querer.
Morre, de transbordar e carecer.
No gemido do gozo,
a dor inaudível do padecer.
O amor morre todo dia,
na comunhão ácida das salivas,
no silêncio eloquente dos corpos,
na saturação dos sons,
na separação das sílabas.
***
O TEMPO DO AMOR
Não tenho âncora no passado,
nem como pão requentado na mesa do amanhã.
As fotografias não doem.
Esvaziadas todas as palavras prometidas ao eterno.
O tempo lava os ponteiros dos segundos,
atualiza dores, desejos, e desbota mágoas.
Aportam-se e partem tantos personagens
no cais do amor!
Ninguém preso aos meus passos,
sob meus pés, pisoteando meu prumo.
Passado não tem fôlego para seguir alegria:
É terra dos mortos.
***
SOBRE A DOR
para José Inácio Vieira de Melo
A noite comeu, de repente,
uns pedaços do meu caminho.
De forma que tremi as pernas e travei os passos.
Depois, jogou em mim um barro bom de fé,
que tapou os buracos das encruzilhadas.
Acordei novo, surpreso de sol,
feito quem volta da morte
e pede para ser beliscado, de tão vivo!
A noite tem dentes pontiagudos,
mas traz na saliva uma luz
que sutura qualquer peito esfarrapado.
Nasceu para maturar o coração: não fere em vão.
A noite não dói tanto depois que passa,
só na hora que o minuto (de eterno) asfixia e mata.
Quando sossega de espernear seu absurdo,
Deixa, na nossa pele, vigorosas estrelas,
nutridas de Deus.
Não é má, nem morte, nem sina:
É mar, marcha – ensina.
***
ENSAIO SOBRE AS MANHÃS
A porta do fim dá num beco inusitado,
repleto de recomeços.
Ninguém descobre o frescor do chão desabitado,
enquanto o medo jura seus infernos!
Mas se a vida chama e o sujeito mete a cara,
não há terror que o aterre em jardim morto.
Movem-se as horas de infinito e novidades,
que não cabem nas compotas das certezas.
O vento descabela de improviso as folhas,
forrando de beleza o caminhar,
(e há dor na rebentação dos ramos).
Os dias são bichos indomados,
sem nome e classificação:
ninguém se socorre do sofrer por adivinhação,
nem pondo tranca nos abraços.
A vida entra em qualquer gruta,
e cata o ente debaixo de pedra,
quando cisma de ensinar pelo padecer.
Também o sol invade o olho agoniado,
devolve o infeliz ao sonho,
e transforma em liquidez seu sangue coagulado.
O certo é que nunca se sabe o que a manhã assina:
e a sorte é o não saber!
***
SUSTO I
para Dalmo Saraiva (em memória)
Ninguém sabe do último abraço.
Ou a última chance de abraçar,
dizer, desdizer, serenar a língua
desalinhada.
O toque último dos dedos,
no apartar das mãos,
a sílaba final da última palavra,
no átimo do último olhar,
antes de o rosto virar, e o corpo,
por último, dobrar a esquina.
Antes de o amigo sumir de cena,
acenar da janela, cerrar as pálpebras,
trancar a porta, entrar no mar.
A aurora não espera o desperdício da hora.
Como fosse o derradeiro início, afoguear os laços,
louvar a leveza, buscar o perdão ou concedê-lo,
sanar a separação das sílabas.
Que a morte vai saltear os desavisados.
Quando chega assim, sem indício,
meu peito é incompletude:
este fardo de fim sem prefácio.
Carmen Moreno – Poeta e ficcionista brasileira, carioca, membro do PEN Clube do Brasil. Bacharel em Artes Cênicas e Licenciada em Educação Artística (UNIRIO). Publicou: Diário de Luas (romance), Rocco; Sutilezas do Grito (contos), Rocco; O Primeiro Crime (romance policial), Rocco; O Estranho (contos), Five Star; De Cama e Cortes (poesia), UERJ; Loja de Amores Usados (poesia), Multifoco; Para Fabricar Asas (poesia), Ibis Libris e Sobre o amor e outras traições (poesia), Patuá. Integra cerca de 40 coletâneas, entre elas, edições bilíngue. Sua obra foi tema de dissertação de Mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande/RS. Algumas premiações: Prêmio Casa da América Latina: Concurso de Contos Guimarães Rosa, Rádio França Internacional/Paris; Bolsa de Incentivo ao Escritor Brasileiro (poesia), MINC/BN, e Prêmio de Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos (MINC).