Agora
A mão pesada
A madrugada avança, avança
E eu
Algoritmo e ilusão
Pálida
Néscia
Mordaça
Tenho café mel um pão e dobro as mãos os dedos a boca e o pórtico
No meio e no fim espera-me o teclado carmesim o teclado sem lábios sem credos ou cedros
Agora 3H29M
A mão pesada
A madrugada avança, avança
E eu
Por um lado, a parede branca
Por outro, o candeeiro e a bigorna
A sépia que nunca retorna
A pele os dentes o gotejar dos milénios e uma sorna
búzios e medos e lerdos os tempos e uma sopa de torresmos
O escritor não é mais que o pintor das telas em branco
Esculpindo a garganta
A sede
O sol
Um búzio
Num mero paracetamol
Em bemol sumol e réstias de maçãs
Por ora
São 3h35
E a madrugada quebra e dança e se transmuda
Em aldeia da roupa branca
E os poetas gemem, gemem
Já que não dormem
Já que não jantam
Já que não meditam nem comem nem fogem
Já que genuínos
Soltam garfos panelas e canos
Num rangido de pernas e braços
E após
em festival
Abrem as janelas
Soltam os lençóis
E gritam em espanhol
Os poetas das cores lentas
Eclodem paraísos e renas
E Pais Natal e fenos e remos
O poeta infeliz pardo e sem raiz
É ele próprio nascente luz foz e voz
E voraz
Só se lhe surpreende
A tenaz dos que respiram espuma lilás
São 3h45
E a madrugada avança, avança
E eu algoritmo galáxia ponte e atlântica
Trovo o calor e o recanto da escassa sala
Tal nómada
Na noite de duna
E trovo este pedaço de côdea
O café já frio
Uma água já vazia
E lanço-me nas acácias deste meu litoral
Afinal
O meu occipital
O meu único final
O meu realejo ideal
Cecília Barreira leciona Cultura Portuguesa na FCSH/UNL. É autora de muitos livros de poesia e ensaio. Colabora em várias revistas, entre elas a Incomunidade.