Cultura

quatro poemas | Alberto lins caldas

o rio

 

  • o rio era fundo eu não sabia ●
  • tentei nadar não sabia eu não era o rio ●
  • vieram os peixes comeram a carne toda ●
  • agora so os ossos assim tenho vivido ●

 

  • como tudo mudou tremo sem sentido ●
  • toco os ossos de cada um q fui sem ser ●
  • de qualquer maneira nada perdeu a razão ●
  • apenas continuo entre o raso e o abismo ●

 

  • convivo com dentes violentos q sabem bem ●
  • q não sirvo mais a suas fomes e sonhos e so ●
  • nado no abismo mergulho no raso sem rir ●
  • braçada apos braçada não sei onde e vou ●

 

  • como não tenho nem teria um passado belo ●
  • caminho aos poucos na lama do sem fim ●
  • giro como se dançasse nas correntes frias ●
  • preciso dizer mais sem ter a quem falo so ●

 

  • com o tempo aprendi a curvar o cranio ●
  • pra demonios e fantasmas q nunca cri sim ●
  • forças q a carne não compreende nem sente ●
  • apenas os ossos nas correntes pressentem ●

 

escriba

 

  • fui o escriba do imperador ●
  • todos os meus poemas são dele ●
  • emanam dele como se fossem da minha carne ●
  • cada palavra vinda dos meus ossos dos sonhos ●
  • sonhos dele jamais palavras e sonhos meus ●

 

  • fui apenas escriba do imperador o sim e o não ●
  • nada em mim ousou se dizer nada do meu povo ●
  • apenas a vida do imperador como se fosse minha ●
  • como se fosse do meu povo cada gota do suor ●
  • meu e do meu povo tudo do imperador ●

 

  • como se fosse meu e do meu povo ●
  • a vida do escriba é dizer o mundo do imperador ●
  • como se fosse do escriba do povo e dos deuses ●
  • em tudo corre apenas o sangue do imperador ●

 

  • apenas nosso suor jamais o suor do imperador ●
  • jamais a vida do imperador ou minha vida jamais ●
  • o q escrevo escrevo sob suas ordens mais intimas ●
  • assim escondo a lingua a face a vida do imperador ●

 

  • inda hoje quando deitado espero a doida treva ●
  • sei q tudo do povo eu diante do espelho velho e nu ●
  • somos apenas a vida do imperador o sangue dele ●
  • jamais o nosso e sonho os sonhos do imperador ●
  • como sonham os sonhos do imperador o povo ●

 

  • o maior gozo jamais é do escriba ou do povo ●
  • so quem goza é o imperador sempre morto ●
  • jamais um imperador vivo imperador de sangue ●
  • de suor e tristeza porq todo imperador é triste ●

 

as mãos de julia

 

  • as mãos de julia vivem sem ela ●
  • uma coisa é julia e seu sabor ●
  • de amendoas cozidas e mel ●
  • outra são as mãos sem ela ●

 

  • são duas coisas diferentes ●
  • aqui ta julia ali as suas mãos ●
  • sobre os cabelos de julia dentro ●
  • dos cabelos de julia estranhas ●

 

  • parece q julia enterra os dedos ●
  • nos cabelos mas não é verdade ●
  • julia nada tem com essas mãos ●
  • julia sabe disso entende isso ●

 

  • sente isso nos olhos de todos ●
  • q não falam disso mas sonham ●
  • com as mãos de julia nuas nuas ●
  • nos cabelos sem serem de julia ●

 

  • todos teem certeza q um dia ●
  • julia saira correndo pra um lado ●
  • as mãos as mãos de julia voarão ●
  • pro outro lado longe de julia sim ●

 

  • na verdade apartadas de nos ●
  • q não saberemos viver sem elas ●
  • as mãos de julia q rira de nos ●
  • como se ela entendesse isso ●

 

  • um dia desses vimos as mãos ●
  • de julia voando de arvore ●
  • em arvore gritamos pra elas ●
  • q nos reconheceu e vieram ●

 

  • pousar entre nos sentadas isso ●
  • na grama entre ventos e verdes ●
  • elas brincaram muito entre nos ●
  • julia nem ficou sabendo so nos ●

 

o escravo e o imperador

 

  • o escravo sonha com o imperador ●
  • desde criança sonha com o imperador ●
  • variando seus olhos ali diante dele ●

 

  • o imperador espantado com seu corpo ●
  • ali diante dele como num espelho ●
  • ele era igual igual ao imperador ●
  • isso o imperador viu sem nada dizer ●

 

  • ?como poderia o imperador dizer isso ●
  • ?como o escravo q tambem notou diria ●

 

  • ?a quem dizer falou ao imperador ●
  • numa lingua q o imperador não vivia ●
  • q ninguem ao seu redor reconhecia ●

 

  • nem querem saber disse o escravo nu ●
  • se curvando enquanto o imperador sai ●

 

Fotografia de Alberto Lins Caldas

 

Poeta brasileiro, pernambucano, alberto lins caldas publicou os livros de contos “Babel” (Revan, Rio de Janeiro, 2001), “Wyk” (Bagaço, Recife, 2007), “Gorgonas” (Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2008), “as trinta metamorfoses de on foya” (JustFiction Edition, Riga, Letonia 2018); os romances “senhor krauze” (Revan, Rio de Janeiro, 2009), “Veneza” (Penalux, Guaratinguetá, 2016); “a grande morte do conselheiro esterházy” (Penalux, Guaratinguetá, 2018), “Samsara ou noturno em dó menor” (Penalux, Guaratinguetá, 2020), “ao redor do centro da noite” (Penalux, Guaratinguetá, 2021); e os livros de poemas “No Interior da Serpente” (Pindorama, Recife, 1987), “Minos” (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2011) e “De Corpo Presente” (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2013), “4×3 – Trílogo in Traduções” (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2014) com Tavinho Paes e João José de Melo Franco), “a perversa migração das baleias azuis” (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2015), “a pequena metafisica dos babuinos de gibraltar” (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2016), “minha pessoa sob o dominio dos barbaros” (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2018) e “tantalo” (Flan de Tal, Vila do Conde-Portugal, 2019).

 

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