Poemas | Pedro Jubilot
WALPOLE BAY | KENT | INGLATERRA
(‘Cartas da Mancha’, CanalSonora, 2018)
nem me lembro se foste tu que me beijaste
do nada, ou talvez eu, apenas impelido
por a constante brisa ter levado os cabelos
açoitados, da tua cara a se ajustarem na perigosa
curva à esquerda do teu pescoço, o que de certo
modo foi o suficiente para me transtornar
imaginando os esboços de céus que William Turner
incluiu nas suas pinturas, já não sei o que
nos aconteceu ali no paredão carcomido da baía,
onde todavia, o mar vai esventrando a pedra.
engole-a, para as suas entranhas, preparando
as margens para a próxima e sempre anunciada
grande desagregação fatal do cosmos
se calhar nada de muito importante
se passou ali naquele passeio, marginal,
enquanto esperávamos a abertura da galeria
de arte contemporânea, apenas devo eu ter
postais dali, como tenho de outros tantos lugares
onde podemos ficar a molhar os pés
nas piscinas de maré, sem desejarmos vincadamente
a impossibilidade das coisas simples
***
TANGER | TÉTOUAN | MARROCOS
(‘Telegramas do Mediterrâneo’, CanalSonora, 2016)
Tanger já existia, sem Paul Bowles,
no seu êxtase e sabedoria
contudo,Tanger não existiria assim.
existiria menos, sem o expatriado Bowles, Paul
e os desfasados aventureiros da vida moderna
não saltariam para um desterro de mundo
à procura da paz circunscrita, na crueldade
de imprimir as páginas perdidas num labirinto de fim de norte
Tanger continua a existir,
com mais turistas que viajantes, sentados
a tomar chá de menta à tarde no Hafa café,
sem Paul Bowles. desde que o levaram
da rue des amoureux em 1999, quando
o ainda possível mundo de presas delicadas
já estava a perder o seu interesse
temos a visão de tudo continuar a acontecer
na nossa presença, embora esta pareça
uma razão tão forte como qualquer outra
na abertura de apenas um dia novo
no enlevo da manhã mais fresca, escreve
n’os cadernos do meio-dia, enquanto um
corpo nu, imóvel a seu lado, estendido
no fulgor da madrugada, perdido
sobre a esteira arrefecida, terá de
ressuscitar os seios, ao sol quase a pino
em diferentes estações, de longos anos,
em vários portos, de todos os continentes,
casimiro de brito deixou um livro aberto,
como um filho, uma amante lendo numa
árvore, e poemas bonsai, embondeiro, sobreiro….
descer a rua de stº antónio, passar
pela porta do centenário aliança,
na esperança de a ver aberta a girar,
e de encontrar gastão cruz lá sentado
disseram-me que costumava estar ali
com os outros loucos da poesia 61,
a compor plaquetes, dando privilégio
à linguagem na sua opacidade
espreito pelas vidraças fechadas ao pó
dos tempos. lá estão as mesas e as cadeiras,
onde eu deixei minutos sobre horas de dias,
no café que agora, ainda está ali e não
existe mais. não deixa passar a luz
no entanto a vida está cheia desta
poesia do abandono, de livros que se
decantam, e que depois as circunstâncias
das idades arrumam nas prateleiras
nuno júdice decalcou diligentemente
para o caderno azul nº23, das publicações
dom quixote, a noção do poema
e nós, fiéis observadores de litorais,
levados para as margens do texto,
também recusamos as palavras brancas
ou transparentes na permeabilidade da folha
no arrefecer das manhãs pressentimos
a vida imaginária dos meses prévios
a afastar-se do quadro dolente, suave
e impermanente com que preenchíamos
os dias nas vastas horas deste sul
onde deixamos os corpos ao acaso no areal,
os livros espalhados pelos espaços do dia,
e o lânguido sorriso que não conseguimos disfarçar
PEDRO JUBILOT (Olhão, Portugal).
Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, é professor no ensino básico e secundário.
Editou fanzines, webzines e outras folhas volantes. Em 2001 foi vencedor do concurso “Micro Contos de Natal”, do jornal Público com «Visita».
Em 2013 saiu o seu primeiro livro «Postais da Costa Sul», que serviu de incentivo para criar a CanalSonora ― uma pequena estrutura independente, sem fins lucrativos, que se centra na divulgação artística, essencialmente da escrita e da imagem.
Em 2015 publicou o conto «Alma» (4Águas editora), uma ficção sobre o famoso anarquista olhanense Bartolomeu Constantino.
Lançou «Telegramas do Mediterrâneo» em 2016 e «Cartas da Mancha» em 2018.
Tem participado em diversos eventos poéticos e colaborado em várias revistas de poesia, em Portugal e Espanha
É membro da direcção da Associação cultural Casa Álvaro de Campos de Tavira, onde desde 2018, coordena o ciclo de poesia e música ‘Poemus’.
email – pedromalves2014@hotmail.com