Cultura

Poemas | Luiza Nilo Nunes

POEMAS

 

SUBTERRÂNEA

 

Este poema é sobre a luz e a escuridão de uma mulher,

é sobre a hipótese remota de acordar uma mulher,

de lentamente erguer a prumo 

o seu cadáver tenebroso.

 

Este poema tem a fórmula litúrgica, infinita, 

tem o códice secreto e a urdidura de um milagre,

tem a lírica insolência de clamar pela mulher,

de convocá-la sobre as águas do seu sono tumular

e pôr um sopro a circular nos seus pulmões 

enquanto despe o seu vestido apodrecido.

 

Ninguém sabe que um poema, este idioma 

subalterno, é como a boca fabulosa de um profeta: 

tem o dom de erguer os mortos dos seus berços 

sepulcrais, de levantá-los como espíritos 

caídos nas cisternas,

de pôr júbilo e alegria 

nas caveiras floridas.

 

Quando é tarde e ponho a língua 

sobre a crosta de um poema 

ou na ferida enfio os dedos por limpar,

ouço bater o coração dessa mulher subterrânea,

desse fúnebre animal que espalha 

sarna nos meus ossos,

desse espírito febril afeiçoado à excruciação

que em mim se oculta e estertora roucamente.

 

Então levanto-a do caixão 

em que os seus dedos escavam. 

Beijo as joias dos seus membros 

embrulhados em cetim 

e limpo os grânulos dos seus dentes silvestres.

 

Com vigor e uma baqueta incendiada de perfume 

incenso as pontas dos cabelos 

e costuro-lhe no peito um pombo ávido de luz, 

esse vislumbre ornitológico de Deus,

esse claríssimo fulgir de camisolas no escuro.

 

Já sabemos, tu e eu: 

o meu poema magistral 

será aquele em que desperto o seu cadáver 

com os pássaros do êxtase, 

em que acordo com os olhos educados na caligem, 

ministrados pela espessa escuridão,

mas com um flash a acender-se 

na boca.

 


 

BATAILLE

 

Repara: tudo isto é erotismo. 

 

A tua pele de livor e a sua lírica veloz, 

a tua boca afeiçoada 

ao gosto bíblico dos frutos, 

 

os teus gestos onde incide a luz legítima das aves,

os teus ombros cortejados 

pelas plumas da nudez,

 

o melancólico despir da tua carne nos espelhos. 

 

Unhas sujas, mãos falíveis, golpes 

húmidos de flancos e cabelos, 

tudo isto, meu amor, exsuda sangue 

e languidez, 

 

exala aromas de suor e fruta escura, 

apodrecida, 

fruta adâmica e tocada pela língua viciosa. 

 

É uma extrema vocação pornográfica, 

repara: 

um banho lúbrico e feroz 

de onde emerges transformada,

ardendo nua para as coisas do espírito.

 

De Deus, da sua face hermafrodita, 

do seu anjo palescente, do seu sexo sem pudor, 

abarcarás a luz inteira: 

tu, secreta e obscura pitonisa.

 

Fotografia de Luiza Nilo Nunes

Luiza Nilo Nunes (1989), poeta portuguesa natural de Porto Alegre. É licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Mestre em Estudos Editoriais pelo Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. Traduziu e publicou a antologia Stigmata (Anjo Terrível, 2019) da poeta chilena Teresa Wilms Montt e o livro Os elementos terrestres e outros poemas (Anjo Terrível, 2020) de Eunice Odio. Dirige a revista Tlön. Está inédita e encontra-se a preparar os seus dois primeiros livros.


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