Cultura

Poemas | Leonora Rosado

 

1.

 

Quero adormecer 

Na pedra fria

Onde os burros vigiam 

A noite e a carga

 

E a sistemática dialéctica 

Profana campas e teares 

 

Quero adormecer sob torrões de xisto

 

Enganar o âmbar do relâmpago 

Estender búzios de vento

 

Unir-me à pulsação inerte de um rio

 

***

2.

 

Matéria 

E os canais do sonho levam-nos ao esgoto da cidade

Ao desmembramento dos seios de uma prostituta nas imediações do rio

Sigo o silvo de uma lâmina 

E ninguém assiste aos versos consumados

Há semáforos que nos dizem por onde olhar pelo retrovisor 

E vendedoras de flores azedas que contrastam com o perfume das suas belíssimas azáleas 

Tenho assistido às mansardas de onde derivam afluentes de cordas

E de noite escuto o seu diafragma ausente de coração perto da dor

As portas inclinadas dão acesso ao alçapão dos sinistros 

O mesmo é dizer que dão acesso a um fumo onírico 

A mão detém-se na amurada das águas que devolvem aos cais sentidos barcos de aéreo fogo

Tenho as mãos esbulhadas de vozes

Tenho o sextante da alma limitado aos sinais meteorológicos 

Mãos demagogas

Mãos de rio de fada de inverosímil 

Tocam as faces do choro 

Matéria 

O ar tem mercúrio e enxofre suficientes para alojar uma granada 

Matéria extinta 

Enfim, este subterfúgio de rosas

 

 

***

 

3.

 

A minha avó

 

Cobria com chão o relâmpago, não é a sua voz que por nós intercede é o âmago da tempestade que nos habita. É nos dias de muito vento que mais me recordo dela, à porta de casa dos bisavôs, desgrenhada, bruxa, sibila. Estendendo ao sol as peles de cobras que esfolara. A minha avó Ilda tinha um rosto a que agora se assemelha muito o meu. Morena, rosto fechado, poucas palavras. Aquecia ao lume as papas de milho com amêijoas, eu detestava, o xerém. Os seus figos secos eram iguarias únicas e indefiníveis, o seu folar na Páscoa transcende qualquer outro folar que tenha degustado.  A forma como demonstrava afectos era recatada, a minha avó não era dada a sentimentalismos de espécie alguma. Recordo ainda o modo como arrancava as pinças saborosíssimas dos caranguejos. Metia o braço inteiro na cova dos cavaletes e num instante arrecadava a boca. No sotavento algarvio chamam bocas a estes caranguejos.  

***

4.

 

Tenho vindo a construir

Hélices de fuga

Mas

Os gerânios tocam os meus lábios 

E dizem que a palavra não está ao meu alcance 

Tenho vindo a ruir todos os versos que não escrevi 

Aqueles que de um golpe eram cristal 

Nuvens defuntas para uma pavana solitária 

E as estrofes num madrigal impensável 

Corroíam a pele 

E o seu odor mortificado 

 

 

***

 

 

5.

 

Tenho a noite inteira 

Para seguir o segmento das rosas

Afagar o odor dos lírios numa tempestade menor 

Como se os meus dedos fossem dois acordes

Um maior

O outro esquerdo 

Na densidade das dunas o meu corpo floresce

E a lua (só a lua me viu) no esqueleto da minha infância 

Dobrando versos 

Imaginando sílabas que fossem como um barco de arrasto de encontro ao teu peito 

 

***

6.

 

Tenho em mim

A sedução de outras luas

A face negra que nunca vês

O cálamo e o açor

O grito que se estilhaça no vapor do musgo

E da serpente alada

A fachada invariavelmente fechada

Lua

Hipotética

Urgentemente calada

 

***

 

7.

 

Sentimos a voz argonauta 

Das sedas

Como um tempo perigosamente presente 

Murmuramos apenas 

A noite de cristal

A fadiga de um ouvido ignoto

E de negro vestimos o rosto em estilhaços 

A lua era um vocábulo descido

Em rapina sobre a inocência dos lobos 

E a fome e a sede vieram saciar-se de outonos 

 

***

 

8.

 

O céu não

Ama os rouxinóis 

Não de dia

Nunca de dia

 

O seu cântico

Anoitece

O luar

 

 

E a mão vazia de um ramo

Que se curva

 

Ao timbre do cantor

 

Estremece a rosa

Que incendeia

 

O sangue da pureza 

 

Num vermelho níveo 

 

De dor

 

 

Leonora Rosado, nasceu a 13/02/1971 em Algueirão, Mem Martins, Sintra. Cedo revela interesse pela leitura e pela escrita, poesia sobretudo. Tem publicados quinze obras de poesia e prosa poética. São então, as seguintes: Estreia-se em edições artesanais em 2012 com a parceria de Ricardo Rosado na que viria a ser até 2016 a sua editora, Nu Limbo Edições, com o livro Dias Horizontais Noites Assim, a que se segue o livro, O Ocaso e as Horas em 2013. Em 2014 traz-nos Argila e em 2015 A Voz Subcutânea, em 2016 Ruptura. E é ainda nesse ano que publica na Temas Originais, o livro Impurezas. Em 2017, sob a chancela da Editora Licorne, apresenta-nos A Fenda No Sangue. Nesse mesmo ano surge novamente pela Editora Licorne, O Livro do Sopro. No ano seguinte, 2018 surge Trauma, pela chancela da Licorne. Em 2019 a autora apresenta o seu primeiro livro de prosa poética, pela Edições Sem Nome, Há Ténues Sinais De Cristal Nos Espelhos e já no final desse mesmo ano, publica pela Editora Licorne, Pranto de Coral. Em 2020, Contágio e Álamo, pela Editora Labirinto e Editora Licorne, respectivamente. Este ano 2021 trouxe-nos da sua lavra, pela Editora Labirinto, o livro de poesia, Volúpia.

 

 

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