Cultura

Pensar sem margens: o olhar da criança em “Primeiras estórias” de Guimarães Rosa | Nuno Brito

Sou escritor e penso em eternidades. O político pensa apenas em minutos. 

Eu penso na ressurreição do homem. 

    Guimarães  Rosa

 

 

 

Comecemos por o momento de um encontro, o momento de um contacto, quando em Grande Sertão. Veredas se adivinha que Riobaldo pega na mão do interlocutor: “O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos… Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da bôca… O senhor crê minha narração?” (ROSA, 1965, p. 443). A intensidade sensorial  deste contacto potencia o poder sugestivo do aforismo: “aprender-a-viver é que é o viver”: aforismo central que se desdobra e multiplica ao longo da criação de Guimarães Rosa, a sua  força de máxima resume, nuclearmente, e numa visão de conjunto, a ideia de que a vida não existe enquanto forma acabada ou cristalizada, mas que só é possível unicamente enquanto construção continua, diluidora e fluida, que dialoga com a metáfora da vida enquanto travessia; esta, uma imagem central que percorre, de forma omnipresente, a criação de Guimarães Rosa. Travessia, a palavra final de Grande Sertão: Veredas, afirma-se como um símbolo central  que transporta em si mesmo a ideia de percurso continuo e unitário, de um aprender-a-viver que é o viver mesmo, percurso fluido, marcado pela sua incessante mutabilidade, que nos apresenta a ideia de que um estado adulto, concluído, ou fechado do ser, é talvez, na sua essência, impossível: “O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou” (1965, p. 24); esta é, também, a ideia que nos apresenta o conto “nenhum, nenhuma” quando o narrador nos introduz a personagem da Nenha: “uma velhinha de história, de estória-velhíssima” (1962, p. 52) como “menina ancianíssima” (1962, p.54), oxímero que se desintegra numa visão de conjunto “Antes, era a vida. Ali, num só ser, a vida vibrava em silêncio, dentro de si, intrínseca, só o coração, o espírito da vida, que esperava. Aquela mulher ainda existir” (1962, p. 53), ou em “A menina de lá” quando Nhinhinha chama a mãe de “Menina grande” e o pai de “Menino pidão” (1962, p. 21). É de realçar o destaque gráfico através do negrito como um reforço da impressão desta ideia. 

 

Viver, em si mesmo, inclui a sua aprendizagem e aperfeiçoamento contínuo e exclui, por isso, tudo o que nos remete para o estanque, esta ideia de movimento unitário remete-nos para a anulação do óbvio, do limite e da margem: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1965, p. 65).  Esta afirmação de Grande Sertão: veredas dialoga amplamente com “A terceira margem do rio”, ideia de que nada pode ser compartimentado, de que nada está concluído, mas apenas no meio do caminho, na sua travessia, no seu devir-outro, na criação de uma zona de confluência; trata-se de fazer coexistir, de possibilitar um encontro, de despolarizar e de aproximar do centro: “Tem horas em que, de repente, o mundo vira pequenininho, mas noutro de-repente êle já torna a ser demais de grande, outra vez. A gente deve esperar o terceiro pensamento.” (1962, p. 57). Podemos ver este terceiro pensamento como um pensamento sem margens, um pensamento sem formas que se afirma enquanto movimento pleno de libertação. Este é o olhar da criança, um olhar que liberta, que despolariza, que vê as coisas como se as visse pela primeira vez, ainda sem margens, e sem nome. livres de uma categorização e de um limite. Este é um olhar que possibilita a terceira margem ou o terceiro pensamento enquanto espaço de libertação e movimento: “A liberdade é assim, movimentação”. (1965, p 243). A travessia manifesta-se assim como metáfora de aprendizagem, de uma transmutação que se quer pura, permanente e ininterrupta: “A gente cresce sempre, sem saber para onde” (1962, p. 55). Sobre este olhar despolarizador é de salientar o que nos afirma Eduardo Coutinho:

 

Obra eminentemente desconstrutora de toda visão monolítica do real, a narrativa de Guimarães Rosa se erige, desde Sagarana até seus póstumos Estas estórias e Ave, palavra como o espaço da indagação, da busca, onde, como afirma Riobaldo, em Grande Sertão: veredas, referindo-se a si mesmo, não se tem certeza de coisa nenhuma, mas desconfia-se de muita coisa. Nesse universo, fluido, pantanoso, e marcado justamente pela coexistência de opostos em contante tensão, toda versão única e excludente de algo é desautorizada pela própria necessidade de conviver com outras que muitas vezes a contradizem, e a dúvida se instala, fazendo da narrativa um grande laboratório, uma teia de reflexão. Há um tecer ininterrupto que perpassa cada instante do relato, pondo em cheque todo o tipo de lógica alternativa, calcada em construções dicotômicas, e abrindo espaço para outras possibilidades, quiçá para uma lógica que poderíamos designar de “aditiva” e que se representaria por um dos mais expressivos leitmotivs do romance mencionado: Tudo é e não é. (2008, p. 365)

 

Olhar sem hierarquizar, desconstruir, aprender a não julgar, essa é definitivamente uma lição central da obra de Guimarães Rosa, e muitos são os aforismos que criam uma rede em torno da ideia de, que tal como nos afirma Edward Said: “nada é puramente uma coisa” (1994, p.336); mensagem plural que nos é concretizada através da metáfora da travessia, sobre ela, é também de salientar o que nos afirma José Carlos Garbuglio:

 

[..] as águas, especialmente as águas do rio, ou o Rio, desempenham papel de fundamental importância em Grande Sertão: Veredas, por múltiplas implicações. A constância do movimento que lembra o devir de Heráclito (panta rei), a realidade em mudança e troca ininterrupta, remete para o sentido da vida como fluir, onde a dinâmica imanente das coisas encontra sua expressão maior na palavra igualmente fluida, cuja reiteração, enfeixada em travessia, último signo do romance, seguida do símbolo do infinito, aponta o prolongamento da ação para além do real visível.” (1972, p. 61)

 

Se a travessia, enquanto criação de uma zona de devir e mutabilidade pura, representa um estado de continuidade e despolarização, o olhar da criança é, em si mesmo, um olhar que liberta, um olhar de dissolução, um lugar onde o aprender-a-viver acontece em toda a sua plenitude e potencia. Ele é, antes de tudo, um olhar que antecede a linguagem, que a cria e a revitaliza (tal como Guimarães Rosa), um olhar que lida com o milagre de nomear, que acende a linguagem e a faz vibrar. Tal é o caso que nos surge em “As margens da alegria” de Primeiras Estórias (1962); o Menino, personagem principal do conto, percorre as ruas de Brasília no jeep dos tios enquanto repete o nome de cada coisa:

 

O Menino repetia-se em íntimo o nome de cada coisa. A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame branco, de pelúcia. A cobra verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios. As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flôres em pompa arroxeadas da canela-de-ema. O que o tio falava. (ROSA, 1962, p. 5)

 

Para a criança a palavra é sempre uma fonte possibilitadora de novas cargas semânticas, por isso ela repete, porque a cada repetição há sempre estranhamento e acrescento, para a criança a palavra é uma fonte que nunca se estagna, ela lida, por isso, com uma linguagem primordial, a linguagem poética que antecede o prosaico; nomear é sempre possibilitar um milagre, concretizar um encontro, criar um contacto, tal como observa Ana Paula Pacheco “nomeação e cosmogonia vão juntas: seres e coisas ganham familiaridade com o universo infantil” (2006, p. 31), o poder de repetir um nome é o poder de intensificar a nossa relação com a realidade, de criar um estranhamento; para a criança a palavra terá sempre uma vibração nova, por isso ela pede sempre que lhe contem a mesma história, não é só a força da repetição da palavra, o seu poder reiterativo e mágico que atrai a criança, mas sim o renascimento da palavra, a sua constelação de significados a nascer a cada nomeação. O milagre de nomear é uma força mágica que a poesia e olhar da criança partilham, nos dois casos trata-se de um milagre, da criação de um contacto. Na linguagem prosaica ou na linguagem utilizada, de certa forma num estado adulto, há a criação de um hábito, de uma familiaridade com a linguagem que passa por um esvaziamento de singularização; no mundo da infância não há familiaridade, a palavra nasce cada vez que é nomeada. Nomear é por isso criar um vínculo e habitar um milagre. Tal como o olhar poético, o olhar da criança é um olhar intensificador da realidade, olhar que passa por um contacto de estranhamento da linguagem, um olhar que, como nos afirma Manoel de Barros, ilumina o silêncio anónimo das coisas:

 

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas. 

(1991, p. 48)

 

É de vital importância aquilo que nos afirma Guimarães Rosa quando entrevistado por Günter Lorenz em Janeiro de 1965:Primeiro, há meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original.” (1965); Fazer nascer a palavra ou utilizar a palavra como se ela tivesse acabado de nascer é limpa-la das suas impurezas, da sobrecarga que a familiaridade com o prosaico lhe impôs, trata-se de restitui-la a um fogo original, o momento em que ela foi inventada, o momento em que ela foi dita pela primeira vez, tal como a criança, nomear é permitir um movimento, libertar, fazer nascer:

 

Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. (ROSA, 1965)

 

O que Guimarães Rosa se propõe é ver a linguagem através do olhar da criança, ver uma linguagem original, primária, que só é possível enquanto transmutação pura, enquanto estado de completa mutabilidade, ver a sua corrente contínua em plena transformação; nesse sentido a criação de neologismos, a revalorização de arcaísmos ou regionalismos, os desvios sintáticos e a inversão de classes gramaticais podem ser vistos como uma aproximação à linguagem da criança, ao seu milagre de nomear, a uma linguagem primordial que a ampla experimentação linguística de Guimarães Rosa tenta renascer. Restituir a originalidade à palavra é restituir-lhe um fogo primeiro, iluminar (como nos diz Manoel de Barros) o silêncio anónimo das coisas. Intensificar a palavra até ela ser de novo vida é a visão de Guimarães Rosa e de todo o gesto poético: reproduzir a infância da linguagem e o olhar da criança sobre a palavra. A etapa infantil de aquisição de linguagem assim como a aprendizagem da leitura são, por isso mesmo, momentos amplamente privilegiados nos contos de Guimarães Rosa. Tal é o caso do conto “Partida do Audaz Navegante”

 

Brejeirinha é assim, não de siso débil; seus segredos são sem acabar. Tem porém infimículas inquietações: – “Eu hoje estou com a cabeça muito quente…” – isto por não querer estudar. Então ajunta: – “Eu vou saber geografia.” Ou: – “Eu queria saber o amor…” (…) –“Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?” – Brejeirinha especulava. – “É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo…” (…) Pois eu li as 35 palavras no rótulo da caixa de fósforos…” (ROSA 1962, p. 116)

 

Em pleno processo de aprender a ler, Brejeirinha propõe-se ler um livro aos seus irmãos, mas rapidamente eles se dão conta que a história que ela lhes narra está a ser inventada ao mesmo tempo por ela, o livro real torna-se assim o pretexto para a criação de uma outra história, a narrativa do Audaz Navegante:

 

-O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinários. Êle foi num navio também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O aldaz navegante estava com saudades, antes, da mãe dêle, dos irmãos, do pai. (…) Pele levantou a colher: – ‘Você é uma analfabetinha ‘aldaz’. – ‘Falsa a beatinha é tu!’ – Brejeirinha se malcriou. –‘Por que você inventa essa hitória de de tolice bôba, bôba?’ – e Ciganinha se feria em zanga. – ‘Porque depois pode ficar bonito uê!’” (ROSA 1962, p. 117)

 

A narração da história da Brejeirinha continua no exterior da casa, as crianças vão brincar para o riacho, e o momento central do conto é quando uma das crianças interrompe a narrativa e diz a Brejeirinha, apontando para um pedaço de excremento seco de vaca, “E-olha o seu ‘aldaz navegante’, ali. É aquêle…”, (ROSA, 1962, p. 120), num pacto imaginativo as crianças concordam: “Ah! Pois é, é mesmo! (…) Pronto. É o Aldaz navegante…”(1962, p. 121); este é um exercício de singularização que só o olhar da criança possibilita através de um elevado grau de concreção imagética. A personagem do Audaz navegante obtém, através deste olhar criador, uma presença física, um corpo, que as crianças decoram, um corpo que elas intensificam e mitificam: 

 

Era: aquêle-a coisa, vacum atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às portas dos capins-chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água, enchente, já o atingiam, quase. (ROSA, 1962, p. 121)

 

O Audaz navegante parte, então, com a chuva pelo riacho e a história da Brejeirinha ganha um fim real; através de um cruzamento de planos entre o imaginário e o real a história concretiza-se, adquire um espaço e um tempo, uma dimensão de experiência tocável e objetiva. Essa é a origem do jogo infantil, concretizar em objetos uma vida, (uma persona), dar-lhes um nome, conferir-lhes uma história, um passado, personifica-los, animá-los com uma vida, exercício máximo de criação que se aproxima com a criação da linguagem, nomear é, portanto, conferir vida, intensificar com o olhar, estranhar a matéria, possibilitar um milagre. Ver o mundo na sua zona de plena transmutação e movimento para algo mais, vê-lo sempre como se o víssemos pela primeira vez, este é para Shklovski o elemento principal do processo de singularização: “O procedimento de singularização em Tolstoi consiste em não chamar o objeto pelo seu nome mas sim em descrevê-lo como se o visse pela primeira vez e em tratar cada acontecimento como se ocorresse pela primeira vez” (SHKLOVSKI, 1978, p. 61). Este é olhar da criança enquanto espaço de revitalização continua e esta é a forma de Guimarães Rosa ver e recriar a linguagem, através do seu contacto com um estranhamento e singularização, com um batimento novo e mágico que se acende em cada coisa cada vez que ela é vivenciada ou nomeada. Por isso mesmo Brejeirinha nos afirma: “O amor é original (…) O amor é singular” (ROSA, 1962, p. 120). Trata-se em definitivo, de observar um milagre (de fundir plenamente, nas palavras de Guimarães Rosa: Linguagem e vida), de observar uma área de comunicação interminável, através dela o referente passa sempre a ser visto excentricamente pelo ponto de vista do emissor.  Guimarães Rosa insiste, através da linguagem, e através do olhar da criança em mostrar-nos um mundo fluido, ou em contacto com José Carlos Garbuglio, um mundo movente, em permanente devir. O olhar transformador da criança que dá vida a um pedação de estrume seco é um olhar de criação de ênfase, que em contacto com Emerson, observa o milagre no comum: “The invariable mark of wisdom is to see the miraculous in the common” (EMERSON, 2000, p. 38), aquilo que Guimarães Rosa nos refere através do narrador de “O Espelho”: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” (ROSA, 1962, p. 71). O olhar da criança é aquele que vislumbra esse milagre, que o possibilita enquanto percepção. O seu olhar intensifica, acende e faz vibrar. A criança rompe com um estado de familiaridade e hábito, o seu olhar é, por isso, sempre um olhar primeiro que funde linguagem e vida. Ele é um olhar que retira da palavra todas as impurezas e as restitui a um estado aberto e original do ser. Ele é um olhar que se alia a um encontro primordial, intemporal e absoluto; de novo através da imagem do rio: 

 

Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens. Amo ainda mais uma coisa dos nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade. (ROSA, 1965)

 

Criança, travessia, rio, eternidade são palavras que formam entre si uma constelação em torno da ideia de um movimento ancestral, de um estado plenamente poético do mundo. O olhar da criança é um olhar que intensifica a realidade até esse estado original e essa intensificação é feita enquanto um exercício de criação de ênfase; para a criança, a luz que bate no tecto num quarto semiescuro é um elemento de continua surpresa e admiração, ele tem o efeito de um momento mágico, ela aponta e tenta nomear, criar um contacto, o seu olhar intensifica, ou dito de outra forma, ele faz vibrar com mais força, ele acelera até um estado original (o mesmo milagre que passa com a palavra), ele restitui e limpa, ele anula o óbvio, ele instaura o novo. Se, como nos afirma Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas: “Tudo nesta vida, é muito cantável” (1965, p. 398), o olhar da criança é aquele que mais se aproxima deste canto, ou dizendo de outra forma, é ele que o instaura e o habita em toda a sua plenitude, é ele que possibilita a poesia. Restituir a tudo um olhar primeiro é, por isso, o exercício a que se propõe Guimarães Rosa ao longo da sua obra, e a revitalização da linguagem é já, em si, a primeira aproximação a esse olhar. Trata-se de criar uma impressão máxima, de intensificar a relação com o mundo através da linguagem, de instaurar um canto e um fogo primário, restituir um sentido original, acelerar a palavra até ao seu início. A este estado original do mundo Guimarães Rosa opõe um estado adulto, prosaico, marcado pela perda de um contacto com essa origem, é disso que nos fala o final do conto “Nenhum, nenhuma” quando o menino chega a casa e interpela os pais: “Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!… E eles abaixaram as cabeças, figuro que estremeceram. Porque eu desconheci meus Pais – eram-me tão estranhos: jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?” (1962, p. 57)

 

Centremo-nos no primeiro e no último conto de Primeiras Estórias. “As Margens da alegria” e “Os Cimos” estabelecem entre si uma zona de continuidade e um diálogo unitário; os dois contos dialogam desde logo, nos seus começos, com a revitalização de uma forma tipificada de introduzir o conto maravilhoso para a infância, o típico Era uma vez: “ESTA É A ESTÓRIA. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz.” (ROSA, 1962, p. 3), e em “Os Cimos”: “OUTRA ERA A VEZ. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade” (1962, p. 168). Nos dois contos realiza-se uma travessia aérea que o menino, personagem principal, realiza em direção a uma Brasília em construção, espaço híbrido, inconcluso e permanentemente mutável, lugar, também ele de uma infância urbana. 

 

Enquanto mal vacilava a manhã. A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-êrmo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo de pouso ficava a curta distância da casa-de madeira, sôbre estações, quase penetrando na mata. O Menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido – as novas tantas coisas – o que para os seus olhos se pronunciava.” (ROSA, 1962, p. 4) 

 

O olhar da criança intensifica a cidade. Ele é em si mesmo um olhar gerador de movimento, um olhar que acelera, um olhar de ênfase que absorve os movimentos e as transformações do espaço urbano (querer poder ver ainda mais vívido). É então que nas traseiras da casa onde iria ficar o menino avista um peru:

 

O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber a sua admiração. Estalara a cauda e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão – brusco, rijo, – se proclamara (…) completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-prêto-o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento.” (ROSA, 1962, p. 4) 

 

A imagem de um transbordamento é aqui de vital importância, imagem que comunica diretamente com o título “Margens da Alegria”, transbordar é exceder ainda um estado de completude e de sentido de totalidade, é extravasar, inundar tudo em redor. Neste caso, a imagem do peru, intensificada pelo olhar da criança leva-a um estado de êxtase e de felicidade suprema, a um contacto com um estado de estesia “Belo, Belo!”; podemos dizer, que o universo poético e o universo infantil detonam esse transbordamento, esse estado de continuidade que nos dá acesso ao eterno, ao absoluto, ao intemporal, “o peru para sempre”. Nesse sentido, o olhar da criança, e através dele, o olhar de Guimarães Rosa estão fora do tempo, encontram-se num lugar de origem, lugar mítico e mágico em que os seres se encontram livres de impurezas; restitui-las a esse estado puro é, na visão de Guimarães Rosa, a função do escritor. É interessante notar como o transbordamento da alegria nos alia, tal como a experiência da travessia, à anulação das margens, nos dois casos a imagem passa-nos pela ideia de um estado contínuo, infinito e interminável, (o aprender-a-viver), a evolução, o intemporal. Nos dois casos podemos ver como Guimarães Rosa nos sugere, sempre a ideia da anulação de um pensamento meramente dual, em detrimento de uma libertação, um terceiro espaço ou um transbordamento, a criação de uma confluência ou de uma continuidade. E através desta imagem podemos ver o olhar da criança como um pensar sem margens, detonador de um olhar que liberta a linguagem e as coisas, que não consegue ver os seus limites (as suas margens), o olhar da criança é, por isso, sempre um olhar gerador de um encontro, de uma fusão, de um ato de libertação. Ele intensifica a realidade até um estado de êxtase, o seu olhar acelera. Podíamos dizer, em diálogo com o fragmento de Novalis que “Cada objeto amado é o centro de um paraíso” (NOVALIS, 1988, 64), tal é o ocaso do peru, ele: “Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta” (ROSA, 1962, p. 4). Através do estranhamento da realidade, a criança observa toda a realidade como se tudo acabasse de nascer, disso nos fala Nhinhinhia, de “A menina de lá”, quando observava as estrelas repetia: “Tudo nascendo” (ROSA, 1962, p.21). Ver tudo nascendo: ofício poético e visão da criança, essa é a dimensão em que se move a menina de lá, menina de três anos, em plena fase de aquisição da linguagem; a ela não lhe interessam os brinquedos, a sua brincadeira é com a linguagem, ela renomeia constantemente os diferentes elementos da realidade: “De por diante Ninhinha passou a chamar o sabiá de ‘Senhora Vizinha’” (ROSA, 1962, p. 21), e as estrelas de estrelinhas pia-pia. Trata-se, outra vez em contacto com o diálogo entre Guimarães Rosa e Günter Lorenz, de fazer do idioma o espelho da personalidade, ampliar as possibilidades expressivas da língua, torna-la plenamente espelho de uma expressão, aumentar-lhe o grau de sinceridade (a sua originalidade), por isso Ninhinha renomeia, por isso ela habita plenamente a linguagem e a eleva a um grau de estranhamento a que rapidamente a família se habitua, levando-os a um estado continuo de alerta à novidade: “O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: – ‘Alturas de urubuir…’ Não, dissera só: – ‘… altura de urubu não ir…’” (ROSA, 1962, p. 61). Ninhinha começa então a desenvolver a capacidade de realizar milagres, os desejos que ela quer realizar: “Eu queria o sapo vir”, ou “Eu queria uma pamorinha de goiabada”, tornam-se realidade em poucos instantes. Mas esses desejos têm de partir dela e nunca da pressão exercidas pelos outros, por isso mesmo a família tenta ocultar a realização dos milagres para não atrair atenções externas. O milagre físico e concreto que provém da transformação dos desejos em manifestações reais pode ser também visto como uma metáfora do milagre de nomear, de fazer nascer a palavra, e nesse sentido, através da personagem da Ninhinha, Guimarães Rosa estabelece também um diálogo consigo mesmo enquanto autor: “A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente (ROSA, 1965). Restituir a linguagem ao seu estado original só é possível assim a partir do olhar da criança, a um uso reacionário da língua (a um uso, ainda sem norma, sem estado adulto), “eu preferiria que me chamassem de reacionário da língua, pois quero voltar cada dia à origem da língua. É de salientar o que Elide Valarini Oliver nos afirma: 

 

Vale também lembrar o recurso ao uso primordial da força mítico-poética invocada em cada palavra. Toda palavra está viva, pulsando em sua essência e, ao ser nomeada, invocada, vem, com a força total da presença diante de nós, como a revelação de um deus. É o uso da linguagem como troca e não como numen que esmaece, mata essa relação mágica entre ser e palavra, que é uma só. O ser e a palavra são um. (2008, p. 135)

 

É a esta linguagem como numen, em que palavra e ser estão unidos por um vínculo mágico, que a criança e a poesia têm pleno acesso. Nos dois casos trata-se de um olhar transfigurador da realidade, mas também, como vimos, de um olhar despolarizador, um olhar que desconhece um estado fechado da linguagem e das suas catalogações, um olhar que não hierarquiza, que liberta e gera movimento, um olhar de singularidade e estranhamento que intensifica a nossa relação com a realidade e com a linguagem, um olhar de transmutação pura e de diluição das formas, que nos ensina a pensar sem margens: um olhar de travessia e de transbordamento que nos prova que “todo o limite é ilusório, e toda determinação é negação” (DELEUZE, 1992, p. 156). Por isso mesmo a criança e sobretudo a etapa de aquisição de linguagem e alfabetização interessaram tanto a Guimarães Rosa, porque ela tem acesso à poesia (inexplicável) da vida que nos fala Carlos Drummond de Andrade: “Se procurar bem, você acaba encontrando / não a explicação (duvidosa) da vida, / mas a poesia (inexplicável) da vida.” (2004, p. 1256).

 

Aquilo que no estado adulto se tem de procurar bem, é um dado adquirido na criança, ela vive sempre, de certa maneira, naquilo que Clarice Lispector chamava de estado de graça; por isso mesmo, como nos afirma Novalis: “O primeiro homem é o primeiro visionário de espíritos. A ele tudo aparece como espírito. O que são crianças, senão primeiros homens? O fresco olhar da criança é mais transcendente que o pressentimento do mais resoluto dos visionários.” (1988, p. 163). A procura poética encontra a sua origem num estado mágico do mundo, como afirmou Guimarães Rosa a Günter Lorenz: “Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista” (1965), o mesmo é dizer que ele deve acender sempre um fogo primordial, e ele, só pode, por isso mesmo, permanecer, sempre com um olhar de criança, ver e criar a linguagem como uma criança, ser, finalmente uma criança: sentir e vislumbrar como um compromisso do coração que “a poesia é também uma irmã tão incompreensível da magia”. (1965)

 

REFERÊNCIAS

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

 

BARROS, Manoel. Concerto a céu aberto para solo de aves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.  

 

COUTINHO, Eduardo. Discursos, fronteiras e limites na obra de Guimarães Rosa. In: A Poética Migrante de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.  

 

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

 

EMERSON, Ralph Waldo. The essential writings of Ralph Waldo Emerson. New York: The Modern Library, 2000. 

 

GARBUGLIO, José Carlos. O mundo movente de Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1972.

 

NOVALIS, Friedrich. Pólen, fragmentos, diálogos, monólogo. São Paulo: Iluminuras, 1988.

 

OLIVER, Elide Valarini. Guimarães Rosa e os astros: com reflexões em Machado de Assis. Revista USP,  n.76, p. 129-148, dezembro/fevereiro 2007-2008.

 

PACHECO, Ana Paula. Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006.

 

ROSA, Guimarães. Diálogos com Guimarães Rosa, entrevistado por Günter Lorenz. Disponível em: http://www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-rosa-entrevista.html. Acceso em: 02 de Fev do 2021.

 

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1965. 

 

ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1962.

 

SAID, Edward. Culture and Imperialism. New York: Vintage, 1994.

 

SHKLOVSKI, Viktor et al. Teoría de la literatura de los formalistas rusos. Madrid: Siglo XXI, 1978

 

Nuno Brito nasceu no Porto em 1981.  É autor dos livros de poesia: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015) e O Desenhador de Sóis (2017).

É leitor do Instituto Camões na Universidade da Califórnia em Santa Barbara onde vive desde 2015 e onde obteve o Doutoramento em Literaturas Brasileiras e Portuguesas, foi professor de Literatura Portuguesa na Universidade Nacional Autónoma do México onde viveu entre 2012 e 2014. 

Foi editor da revista literária Cràse e publicou em diversas antologias de poesia em Portugal, Espanha, México e Grécia, entre as quais a Antologia da Jovem Poesia Portuguesa (Atenas, Valkixon, 2021), a Antologia Lluvia Oblicua: Poesía Portuguesa Actual. (México: Círculo de Poesía, 2018), O Binómino de Newton e a Vénus de Milo: Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa, organização de Vasco Graça Moura e Maria Maria Bochicchio (Lisboa: Aletheia, 2011) e Antologia Jovens Escritores 2008 (Lisboa, Clube Português de Artes e Ideia). Foi distinguido por duas vezes com o Prémio da Associação de estudantes da Faculdade de Letras do Porto na categoria de Poesia e Conto e foi selecionado para a Mostra Jovens Criadores (Literatura) 2008 em Lisboa.   É coordenador editorial juntamente com Maria Bochicchio da colecção Novíssima da editora Exclamação. 

Ode Menina é o seu quarto livro publicado pela editora Exclamação e reúne textos escritos entre 2018 e 2021, assim como alguns textos publicados anteriormente em livro.

 

 

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