Cultura

“O ÚLTIMO ENDEREÇO DE EÇA DE QUEIROZ”, um capítulo, “Para conhecer Lisboa” | Miguel Sanches Neto

novo romance – O ÚLTIMO ENDEREÇO DE EÇA DE QUEIROZ entrou em pré-venda.

 

Portugal – com sua história milenar e rica tradição literária – ocupa lugar destacado em nosso imaginário de nação colonizada. É a relação com este país que move o narrador do novo romance de Miguel Sanches Neto a cruzar o oceano em busca de, em suas palavras, “civilização”. Assim começa uma jornada que se equilibra entre a ironia cáustica e a homenagem ao panteão de escritores que ergueram a literatura lusa.

 

Nesta história contada de maneira nada confiável por um sujeito com aspirações vagas de escrever um romance, a questão da identidade toma o primeiro plano. O narrador assume o pseudônimo Rodrigo S. M., sequestrado de A hora da estrela, de Clarice Lispector, e busca deixar para trás seu passado ordinário e uma solidão apaziguada por encontros mensais com uma prostituta.

 

Ele deseja “beijar casas velhas” e “se entregar àquilo que nos atrai de forma obscura”, entrando em comunhão com o que acredita ser suas origens. Assim, logo ao sair do aeroporto em Portugal, quer alugar uma casa de mais de 500 anos, para afirmar que vive em um edifício mais velho do que o Brasil. O acaso o leva à residência que José Saramago dividiu com a esposa Isabel e onde produziu suas primeiras obras de sucesso. Lá, conhece a tão encantadora quanto enigmática Txel, jovem catalã que o guia por um apaixonante itinerário pelo vazio deixado pelos gênios da literatura portuguesa.

 

Seu alvo logo se torna o lendário Eça de Queiroz, cujos caminhos o narrador procura refazer atrás de inspiração para um novo livro. Feito um Dom Quixote lusófono, precisa amargar que os cenários idealizados de suas leituras não coincidem com a realidade que o aguarda nos mais diversos destinos, o que inclui uma bizarra celebração ao aniversário de Hitler. Navegando entre a imaginação desvairada e ironia aguda, Miguel Sanches Neto compõe um romance que ousa tratar o cânone com humor, tirando do pedestal os nomes europeus que assombram a literatura brasileira lá do outro lado do oceano. Jornada desmistificadora e magnética, O último endereço de Eça de Queiroz nos conduz, eletrizados, até seu luminoso desenlace.

 

Segue o capítulo em que o personagem visita uma instalação do Livro do Desassossego.

 

Para conhecer Lisboa

 

Miguel Sanches Neto

 

Caminhar à tarde por Lisboa, depois de vinhos e bochechas de porco estufadas, é uma experiência meio onírica. As ruas se fazem paisagens impressionistas e sentimos nossos passos levitarem. Subimos ladeiras, extasiados com o cheiro do reboco úmido dos casarões, ouvimos trechos irreconhecíveis de idiomas e, por algum equívoco, seguramos a mão de uma mulher.

 

— Cheguei virgem a teus lábios — digo, enquanto a beijo com a boca mole.

 

Um gosto de uvas e gordura insiste em minha língua, intensificando o que há de podre em todo beijo. Seguimos para um ponto qualquer que não sabemos onde é. Mas que nos chama. A vontade que tenho nesse momento não é de acariciar as paredes, mas de lamber o reboco velho, sujo, coberto de fuligem. Lamber cada casarão. Quero beijar casas velhas. Vim aqui para isso, lamber civilização. É preciso não ter dignidade alguma para se entregar àquilo que nos atrai de forma obscura.

 

Estendo a língua para as paredes e sinto a carne do rosto dela. Quem é essa mulher? A própria cidade. Beijo amorosamente paredes, postes, monumentos, salivo de forma excessiva sobre bancos de praças e de bondes, chupo os dedos das estátuas, mamo nas quinas dos muros. Quero o sabor podre de tudo. E enfio a língua na boca meio fechada de quem me acompanha.

 

— O que fazes lá no Brasil?

 

— Roubo pessoas. Nisso somos muito bons. E cá estou para investir o dinheiro dessas pilhagens.

 

Digo isso passando a mão numa de suas pernas. Ela ri de minhas bobagens e de minhas investidas, mas não se afasta. Está ali com o investidor brasileiro. Tiro uma nota de cinquenta euros e enfio no bolso da frente de sua calça.

 

E ela ri pela primeira vez. Quer saber para onde vamos. Já estamos, respondo. E tento alcançar em público seu seio. Ela retira minha mão de sua blusa. O cheiro doce do reboco me acalma e me escoro em seu tronco rijo. Tem mãos de colona, unhas roídas, um corpo que é uma casa com medidas de outras eras. Medidas largas, generosas. Abra a porta, imploro. Ela dá uma gargalhada e me conduz a um prédio sem elevador. Vejo apenas os degraus de madeira gasta que vencemos sem esforço e me pergunto se aquelas tábuas vieram do Brasil. Há quantos anos essas árvores foram cortadas? Imagens de troncos caindo sobre árvores menores, o barulho das fibras se rompendo, o cheiro da seiva de madeira verde, tudo me vem à mente, de forma embaralhada, enquanto subo degrau após degrau, puxado por ela, e olho seus dedos cabeçudos com vontade de roer ainda mais suas unhas, até sangrar, por isso ergo sua mão até minha boca, passo a língua em seus dedos com cheiro de cigarro e maconha. Roer a unha seria uma forma de autofagia? Começamos por elas, depois comemos nossos dedos. Lentamente. Ela retira a mão da minha e se afasta com um gemido quando mordo uma pontinha de pele solta de seu dedo e puxo.

 

— Canibal — ela me acusa.

 

Chegamos ao andar em que mora, ela abre a porta do apartamento e vem um odor de poeira, roupa suja, toalha molhada e esperma velho, e é essa mistura estonteante que encontro nas ruas antigas. Ouço a porta se fechar e encontro o corpo daquela mulher imensa e escorrego por seus peitos inflados, e logo estou de joelhos diante de seu sexo com odor ardido de urina e deixo meu corpo escorrer, como se ele perdesse a estrutura óssea, sentindo no rosto o fêmur dela, seus pés, e eis que beijo o assoalho de madeira do apartamento. Beijo florestas do Brasil? Peças de roupas começam a cair sobre minha cabeça, continuo com a face no chão, esfregando-me sexualmente nas tábuas, enquanto também me livro das roupas.

 

Suas mãos me erguem e logo os corpos caem sobre a cama. Estamos sobrevoando a cidade e nos debatemos como aves sem asas que se sonham no ar, acasaladas nas alturas a que o álcool nos eleva.

 

— Nunca confessei isto a nenhuma mulher: eu vos amo.

 

— Acho muito bonita vossa maneira de fantasiar.

 

Acordei apenas de madrugada, com ela ao meu lado. Desmaiara por causa da bebida. Nossas roupas estavam no chão como corpos depois de um massacre. Não entendi num primeiro momento o que estava fazendo ali. Havia sido capturado numa armadilha, estava preso nesse quarto? Quem era a mulher com quem dormira? Tentando não fazer barulho, me vesti, para em seguida ver com a lanterna do celular se meu dinheiro ainda estava na barrigueira que havia embolado em minhas roupas (estava!), mexi nos bolsos da calça dela e recuperei a nota de cinquenta. Com todo o cuidado, saí do apartamento em que ela vivia e trabalhava. Antes de fechar a porta para aquela noite, olhei o assoalho estragado.

 

Uma dor de cabeça suave me acompanhava enquanto descia as escadas, pensando no bom hábito de madrugar. Nunca ser surpreendido na cama pelo sol. Na rua, o ar limpo me renovou. Andei com calma, encontrando um ou outro madrugador que saía de casa, e notívagos, que retornavam. Eu não fazia nenhuma das duas coisas.

 

A tarde anterior estava distante, mas me voltava inteira com uma nitidez matinal.

 

Depois que deixamos as margens do Tejo, comemos algo rápido e fomos a um lugar que Txel queria me apresentar. Era uma livraria-instalação, feita por um artista de Hong Kong chamado Cheung. Ela não quis me dar mais informações para que eu fosse surpreendido. Chegamos ao porão de um prédio perto do Campo de Santa Clara, na Feira da Ladra. Passamos pelas bancas, indiferentes às bugigangas vendidas lá, e seguimos direto para o edifício. O lugar tem janelas fechadas, e se desce a ele por uma escada de granito até se ver, escrito no chão, num capacho: Edição Móvel, Livraria-Instalação.

 

Txel me explica que o artista quer inverter a lógica da vitrine, não alardeia o produto. É uma livraria especializada num único poeta. E só os íntimos de sua obra a procuram. Foi aberta há poucos meses e determinou a vinda de Txel, para finalizar sua tese de doutorado, que desenvolvia em paralelo ao guia. Visitava a livraria sozinha todas as tardes, por isso me descartava nesses passeios.

 

— Por que tantas vezes no mesmo lugar? — perguntei.

 

— Logo entenderás.

 

Na entrada havia um caixa, e ali pagamos cinco euros pelo ingresso. Depois de receber uma pulseira de papel com um número — eu era o visitante 1666 —, ingressamos por um painel preto, com cortina de veludo, como se estivéssemos entrando em velhos cinemas. A primeira coisa que me surpreendeu: o salão é totalmente iluminado, com muitas lâmpadas no teto, jogando luz nas paredes que funcionam como quadros-negros. Cheung está diante de uma dessas paredes, transcrevendo textos de um tablet que carrega na mão esquerda. Várias delas trazem inscrições que os visitantes, umas vinte pessoas, leem como se fossem informações de uma tela que não existe.

 

— Ele está representando o Livro Móvel — Txel me explica, completamente fascinada pela magia daquele momento.

 

Ainda não entendo que livro é esse. Vejo Cheung escrever em transe na parede negra, numa grafia com traços orientais.

 

— É um mestre da caligrafia. Escrever nessa rapidez com giz é difícil. O giz tem de ser muito macio. A parede deve ser preparada de forma a não conter falhas.

 

Observo a habilidade do artista enquanto corre os olhos entre o tablet e o quadro. O branco do giz vai surgindo em linhas espontâneas. As palavras aparecem como numa tela negra de computador. Ele não enxerga ninguém. Está sozinho em seu mundo, num autismo programado. As pessoas tiram foto das paredes já preenchidas. Txel saca o celular da bolsa e também se põe a registrar. Alguns fazem selfies entre os mosaicos.

 

— As paredes internas são dispostas de maneira diferente todos os dias, para que nunca habitemos a mesma obra.

 

Estamos percorrendo o interior de um livro, refeito diariamente, nunca igual — ela me explica. Por meio de um simulador de roleta no tablet, os parágrafos do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa — ele, sempre ele! —, são sorteados pelo artista, que os transfere às lousas. E tudo, no dia seguinte, acaba apagado. Então, para ler o livro temos de visitar a livraria várias vezes, e jamais o livro será o mesmo. Ele poderá passar anos transcrevendo. Dia após dia. O livro nasce e fenece nessas paredes. Não tem começo nem fim. Quando acabarem as frases do tablet, ele reiniciará.

 

— Você entende que essa é a única forma de entrar no Livro do desassossego. Ele estará em construção permanente.

 

— A escrita como acaso.

 

— Sim, a aplicação da teoria de Um lance de dados, de Mallarmé, na escrita-leitura do livro de Pessoa. E também um tributo ao I Ching.

 

— Numa época em que tantas livrarias são fechadas, ele cultiva um livro-livraria — concluí.

 

Tinha passado cinco anos de minha vida numa livraria com milhares de títulos idiotas, que se repetiam em sua obviedade de best-seller. O que estava matando as livrarias era o excesso de títulos. Aqui havia a solução extrema no sentido inverso. Uma livraria de um só livro. Que nunca ficaria completo. Que estaria numa escrita constante, convidando o leitor a acompanhá-la.

 

— Cheung não fala português. Para ele, esse idioma é apenas grafia. Copia as palavras como se fossem rabiscos infantis. Fez dezenas de manuscritos do livro em cadernos, preparando-se.

 

A escrita apenas como plasticidade, ela sussurrou, como se me contasse um segredo. Circulamos pelas paredes, lendo trechos, sempre em pé. Ali não há bancos para se contemplar a escrita, como nos museus. Quando estamos eretos, nosso cérebro é mais bem oxigenado e permite uma leitura mais aberta — outra senha que recebo. Além de reproduzir a sensação de que caminhamos entre as palavras. Por isso elas têm dimensões maiores, próprias dos cartazes.

 

As explicações vinham em voz baixa. Chueng representava Fernando Pessoa na hora desvairada da escrita.

 

Mais para o final, depois de um tempo silencioso de leitura, encontrei esta passagem que me feriu. Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado com uma carícia não propriamente materna. Eu queria a carícia que não fosse materna e também o perdão pelos crimes que não cometi mesmo tendo cometido. Estava diante de uma verdade biográfica.

 

Fiz uma leitura curativa. Se não voltasse mais àquele lugar, essa antologia provisória ficaria valendo. Se voltasse vezes seguidas, teria uma compreensão única dele, em sua sequência sempre outra.

 

Deixamos a sala assim que Cheung terminou de registrar na parede mais uma sequência. A saída do livro-salão levava, por um corredor escuro, à loja que continha apenas livros de Pessoa, nas principais línguas do mundo. E muitos souvenirs. Ímãs de geladeiras com seus principais heterônimos. Réplicas dos óculos. Do chapéu. E do guarda-chuva. Era a loja da fantasia pessoana. Saca-rolhas com sua frase: Em flagrante de litro. E marcadores de página numa caixa imensa de vidro com fragmentos do Livro do desassossego. Nunca repetidos. O processo de compra reproduz a Edição Móvel. Enfiamos a mão na caixa e retiramos o primeiro marcador que alcançamos.

 

Depois de ficar um tempo olhando as prateleiras da loja, saímos para a rua.

 

— Agora vou ter de seguir sozinha.

 

E Txel partiu em meio às tendas da Feira da Ladra. Fiquei sem saber o que fazer com meu desejo. A amada foge. O amado tem carências. Quando nos encontraríamos? Devia esperar. Era um jogo o amor. Para onde iria Txel? Quando acabaríamos unidos? Para mim só havia o agora.

 

Fui até uma tasca, pedi um vinho, entrei em sites de acompanhantes pelo celular, escolhi uma portuguesa com feições colonas e a contratei com uma ligação. Morava perto, mas antes eu queria que viesse à tasca e fosse minha namorada por algum tempo, para que víssemos Lisboa juntos. Lisboa precisa ser vista a dois.

 

Fotografia de Miguel Sanches Neto

Miguel Sanches Neto é doutor em Letras pela Unicamp (1998), professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Romancista (Chove sobre minha infância, Um amor anarquista e A máquina de madeira), poeta (Venho de um país obscuro e Pisador de horizontes), contista (Hóspede secreto) e cronista (Herdando uma biblioteca), também escreve para crianças (Estatutos de um novo mundo para as crianças, Amanda vai amamentar, O rinoceronte ri, A cobra que não sabia cobrar, Amor de menino e A guerra do chiclete). Recebeu, entre outros, o Prêmio Cruz e Sousa (2002) e Brasil-Argentina (2005).

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