Cultura

A morte de George Sand por Fiodor Dostoievski | Joana Ruas ; Fiodor Dostoievski

Nota por Joana Ruas

 

Ao propor-me escrever uma obra sobre o processo histórico timorense, tive que vencer o despotismo dos cânones literários e não menos velhos preconceitos. Para escrever sobre a história de Timor desde 1875 até à proclamação da independência em 2002, tive necessidade de conhecer a abordagem dos escritores no seu ficcionamento das guerras. Foi este processo que me levou, entre outras, à obra de George Sand, Jean Ziska, épisodio da guerra dos Hussitas, romance histórico sobre a vida de Jan Zizka, chefe guerreiro hussita. Da leitura desta obra de George Sand me veio o estímulo de me aventurar no «coração da barbárie e contemplar o espetáculo das terríveis dores humanas no meio das quais desabrocha a fraternidade e se desenvolve a virilidade da inteligência. Encontrei, nessa vigorosa  narrativa de uma guerra de religião e de política, a mesma ferocidade com que no século XX se travaram as guerras da chamada «guerra fria». A guerra que os homens das FALINTIL travaram não se achava nem nos antigos manuais de guerra, nem na experiência das guerras passadas. Este punhado de homens intrépidos ousava uma obra patriótica enfrentando um dos mais bem apetrechados exércitos da região. Na guerra total moderna o combate tornou-se um assunto de massas com o sistemático recurso ao recrutamento forçado de homens, mulheres e de crianças para operações especiais destinadas ao  assassinato dos líderes políticos e quadros da Resistência e a sistemáticos massacres das populações desarmadas. O povo timorense, cioso da sua independência, não suportando o ultraje de ver dizimados por um exército estrangeiro os seus líderes políticos, não se rendeu e resistiu corajosamente até às cinzas pós-Referendum em 1999. 

 

Em  memória de George Sand, ao seu génio e à sua ousadia, divulgo as páginas que Dostoievski lhe dedicou no seu Diário quando da sua morte a 8 de Junho de 1876.

 

Joana Ruas

8 de Junho de 2022

 

….No entanto, não foi senão depois de ter lido a notícia da sua morte, que eu compreendi inteiramente o lugar que este nome  ocupa na minha vida mental, todo o entusiasmo que o escritor-poeta  tinha outrora excitado em mim, todas as alegrias da arte, toda a felicidade intelectual de que lhe sou devedor. Escrevo cada uma destas palavras de propósito deliberado porque tudo isto é literalmente verdade.

 

George Sand era uma das nossas contemporâneas (quando digo nossa, quero dizer para nós), uma verdadeira idealista dos Anos trinta e quarenta. No nosso século enérgico, orgulhoso e no entanto doente, animado da mais sombria idealidade, trabalhado pelos mais irrealizáveis desejos, é um desses nomes que, vindos de lá, do país dos «santos milagres», fizeram nascer entre nós, na nossa Rússia sempre em «mal de devir», tantos pensamentos, sonhos, fortes, nobres e santos entusiasmos, tanta atividade psíquica vital e tantas convicções que nos são queridas! Nós não temos de que nos queixar. Ao glorificar, ao venerar tais nomes, os Russos prestaram e prestam um serviço à lógica do seu destino. Não se admirem pois com as minhas palavras sobre George Sand, que até mesmo hoje pode ser contestada pois está, em parte, se não quase totalmente esquecida entre nós. No seu tempo a sua obra fez o seu caminho no nosso país. Quem pois se associará aos seus compatriotas para proferir uma palavra junto ao seu túmulo, quem senão nós, — nós os «compatriotas de toda a gente»?—porque, afinal, nós, os Russos, nós temos sempre duas pátrias: a Rússia e…a Europa, mesmo quando nós nos intitulamos eslavófilos. (Que me não acusem!) Não há nada a discutir. As coisas são como são. A nossa missão — e os Russos começam a ter consciência disso, é grande entre as grandes missões. Ela deve ser universalmente humana. Ela deve ser consagrada ao serviço da humanidade, não só da Rússia, não só do mundo eslavo, do pan-eslavismo, mas ao serviço da humanidade inteira! 

 

Refleti e concordareis que os Eslavófilos reconheceram-no igualmente. Eis pois porque razão todos eles nos exortam a mostrar-nos como Russos, mais nitidamente, mais escrupulosamente russos, mais conscientes da nossa responsabilidade de Russos; porque eles compreenderam que, precisamente, a adoção dos interesses intelectuais de toda a humanidade é a missão característica do Russo. Tudo isto, por sinal, exigiria ainda muitas explicações. É preciso que se diga que devotar-se a uma ideia universalmente humana e vagabundear à aventura por toda a Europa, depois de ter deixado levianamente a pátria e na sequência de um qualquer imperioso capricho, são duas coisas absolutamente opostas, ainda que tenham sido confundidas até hoje. Muito do que nós temos adquirido da Europa e trazido para cá, não nos limitámos a copiá-lo como servis imitadores, como o queriam os Partidos. Nós assimilámo-lo ao nosso organismo, à nossa carne e ao nosso sangue. Aconteceu-nos mesmo sofrer de doenças morais voluntariamente importadas para cá, tal como padeciam os povos do Ocidente, entre os quais estes males eram endémicos. Os Europeus não vão querer admitir isto de forma alguma. Eles não nos conhecem e, até hoje, talvez seja melhor assim. O inquérito necessário, cujo resultado, mais tarde, deixará o mundo admirado, far-se-á mais pacificamente, sem perturbação e sem agitação. E o resultado desse inquérito, podemo-lo desde já entrever com bastante clareza, pelo menos em parte, através das nossas relações com as literaturas das outras nações: os seus próprios poetas são tão familiares à maior parte dos nossos homens cultos como aos leitores ocidentais. Eu afirmo e repito que cada poeta, pensador ou filantropo europeu é sempre compreendido e aceitado na Rússia mais intimamente do que em qualquer outro lugar do mundo, e mesmo  no seu próprio país. Shakespeare, Byron, Walter Scott, Dickens são mais conhecidos dos Russos do que, por exemplo, dos Alemães, ainda que das obras desses escritores, não se venda aqui a décima parte do que se vende na Alemanha, país por excelência dos leitores.

 

A Convenção de 93 (1), ao conceder  o título de cidadão de honra da República Francesa, ao poeta alemão Schiller, o amigo da Humanidade, realizou um belo ato, admirável e mesmo profético; no entanto, a Convenção jamais suspeitaria que no outro extremo da Europa, na bárbara Rússia, a obra de Schiller está mais divulgada, de certo modo mais implantada que em França, não apenas na época mas mais tarde durante todo o século. Schiller, cidadão francês, amigo da Humanidade, só foi conhecido em França por professores de literatura e ainda assim não de todos, — mas apenas de uma elite. Entre nós, ele influenciou profundamente a alma russa, com Joukovski, e nele deixou traços da sua influência; ele marcou um período nos anais do nosso desenvolvimento intelectual. Esta participação do Russo aos préstamos da literatura universal é um fenómeno que  não se verifica quase nunca com a mesma intensidade entre homens de outras raças, em qualquer período da história do mundo; e se esta aptidão constitui verdadeiramente uma particularidade nacional russa, muito nossa, que patriotismo melindroso, que chauvinismo se arrogará o direito de se revoltar contra um fenómeno semelhante, e não quererá, pelo contrário, ver nisso a  mais bela promessa para os nossos destinos futuros. 

 

Oh, certamente, encontrar-se-á pessoas que sorrirão da importância que eu atribuo à ação de George Sand, mas os trocistas procedem mal. Muito tempo já se passou; George Sand morreu, velha, septuagenária, depois de ter talvez por muito tempo sobrevivido à sua glória. Mas tudo o que nos fez sentir, desde os seus primeiros passos de poeta, logo que uma palavra nova retumbasse, tudo o que na sua obra era universalmente humano, tudo isso teve imediatamente eco entre nós, na nossa Rússia. Sentimo-lo com uma impressão intensa e profunda, que não se dissipou e que prova que todo o poeta, todo o inovador europeu, todo o pensamento novo e forte vindo do Ocidente torna-se fatalmente uma força russa.

 

Por outro lado, eu não tenho a intenção de escrever uma crítica sobre George Sand. Quero tão somente dizer algumas palavras de adeus junto do seu túmulo ainda recente.

 

                                                           *    *    *

 

Os primeiros passos literários de George Sand coincidem com os anos da minha adolescência. Fico, hoje, feliz ao pensar que foi há tento tempo já, e que agora que mais de trinta anos passaram, se pode falar quase francamente. É de salientar que naquela época a maior parte dos governos europeus não toleravam nos seus países literatura estrangeira, nada a não ser romances. O resto, sobretudo o que vinha de França, era severamente confiscado na fronteira. Oh, de facto, na fronteira não se sabia discernir. O próprio Metternich não sabia discernir melhor que os seus imitadores os géneros literários. Eis pois como «coisas terríveis» conseguiram passar (toda a obra de Bielinski passou sem dificuldade!). Mas, em contrapartida, um pouco mais tarde, sobretudo perto do fim desse período, com medo de se enganarem, puseram-se a proibir quase tudo. Os romances foram aceites em todas as épocas e, neste país aconteceu o mesmo quando se tratou dos romances de George Sand para os quais os nossos guardas foram cegos.

 

Lembrai-vos destes versos:

Ele sabe de cor os volumes

De Thiers e de Rabeau

E fogoso como Mirabeau

Ele glorifica a liberdade…

 

Estes versos são tanto mais preciosos pois foram escritos por Denis Davidov, poeta e bom Russo. Contudo, se Denis Davidov considerou Thiers perigoso (sem dúvida por causa da sua História da Revolução) e relacionou-o no poema citado ao nome de um tal Rabeau (havia pois um escritor que assim se chamava e que, de resto, eu não conheço), nós podemos afinal estar confiantes de que então se admitia oficialmente bem poucas obras de autores estrangeiros .Eis pois o resultado que isso teve: as ideias novas que entre nós fizeram irrupção nesse período sob a forma de romances eram bem mais perigosos sob a sua aparência fantasista pois que Rabeau não teria tido senão poucos amadores, enquanto George Sand teve-os aos milhares.

 

Deve, pois, ser aqui novamente salientado que, entre nós, desde o século passado, e que isso apesar de todos os Magnitzki e de todos os Liprandi, tivemos muito rapidamente conhecimento de todo e qualquer movimento intelectual na Europa. E que toda a ideia nova era imediatamente transmitida pelas nossas altas classes intelectuais para a massa de homens com qualquer tipo de pensamento e de curiosidade filosófica. Foi o que se passou como consequência do movimento de ideias dos anos «Trinta». Desde o início deste período, os Russos estiveram de imediato a par da imensa evolução das literaturas europeias. Novos nomes de oradores, de historiadores, de tribunos, de professores, foram prontamente conhecidos. Sabíamos mesmo mais ou menos bem o que pressagiava a chamada evolução que revolucionou sobretudo o domínio da Arte. Os romances sofreram uma transformação muito particular e foram os de George Sand que nos mostraram mais do que os outros. É verdade que Senkovski e Boulgarine alertaram o público contra George Sand ainda antes do aparecimento das traduções russas dos seus romances. Estes esforçavam-se sobretudo por escandalizar as nossas damas russas revelando-lhes que George Sand «vestia calças»; bradava-se contra a sua pretensa libertinagem; tentava-se ridicularizá-la. Senkovski, sem dizer que se preparava para traduzir os seus romances na sua própria revista , a Biblioteca de Leitura, começou a nomeá-la, nos seus escritos, de Madame «Egor» Sand, e houve quem assegurasse que ele estava perfeitamente encantado com esta sua tirada de humor. Mais tarde, no ano 48, Boulgarine, na sua Abelha do Norte, publicou  sobre George Sand que ela se embebedava todos os dias na companhia de Pierre Leroux em botequins de má fama e que participava em saraus  «atenienses» dados no ministério do interior pelo «bandido» Ledru-Rollin. Li tudo isto eu próprio e lembro-me    muito bem disso. Mas então, em 48, George Sand já era conhecida por todo o público letrado, e ninguém acreditou em Boulgarine. As primeiras obras dela traduzidas para russo apareceram na revista Anos Trinta. Lamento não me lembrar qual foi o primeiro dos seus romances cuja versão foi dada na nossa língua; em todo o caso, qualquer que tenha sido a obra, devia ter provocado uma enorme impressão. Creio que tal como eu, que era ainda um adolescente, toda a gente foi tocada pela bela e casta pureza dos tipos encenados, pelo elevado ideal do escritor, pela forma como as histórias são contadas. E queriam que uma tal mulher «trajasse calças» e se «desse à libertinagem»! Eu tinha dezasseis anos, penso eu, quando li uma das suas primeiras obras, uma das suas mais encantadoras produções. Lembro-me bem dela; durante toda a noite que se seguiu tive febre. Acredito que me não engano ao afirmar que George Sand ocupou, para nós, quase imediatamente, o primeiro lugar na hierarquia dos novos escritores cuja jovem glória ecoava então por toda a Europa. Mesmo Dickens, que surgiu entre nós quase ao mesmo tempo que ela, passava depois dela na admiração do nosso público. Não refiro Balzac que se tornou conhecido antes dela e que publicou na revista Anos Trinta obras como Eugénie Grandet e o Père Goriot, de Balzac, escritor em relação ao qual Bielinski foi tão injusto ao desconhecer o elevado lugar detido por este escritor na literatura francesa. Por outro lado, eu não pretendo dar aqui a menor apreciação crítica; contento-me em lembrar o gosto da massa dos leitores russos de então e a impressão neles produzida.

 

O ponto essencial é que estes leitores podiam familiarizar-se, nos romances estrangeiros, com todas as ideias novas contra as quais os «protegiam» tão ciosamente. 

 

O facto é que por volta dos «anos quarenta», a maior parte do público russo sabia mais ou menos bem que George Sand é um dos mais brilhantes, mais dignos, mãos íntegros representantes da nova geração europeia desta época, dos que mais energicamente  recusaram as famosas «aquisições positivas» através das  quais a Revolução francesa     ( ou antes  europeia)  de finais do século passado completou a sua obra. Depois da Revolução — depois de Napoleão I—tentou-se revelar, através do livro, novas aspirações e um ideal inteiramente novo. Os espíritos de vanguarda compreenderam rapidamente que não era esta ou aquela modificação aparente de um real despotismo que podia conciliar-se com as necessidades de uma era nova, que o «tira-o daqui para eu entrar» dos novos senhores não resolviam nada, que os novos vencedores do mundo, os burgueses, eram talvez piores do que os nobres, estes déspotas de ontem, e que a divisa «Liberdade, Igualdade,  fraternidade» não está composta senão de palavras sonoras. E não é tudo. Surgiram então doutrinas que provaram que estes vocábulos sonoros não especificavam senão impossibilidades. Os vencedores logo as não proferiram, ou melhor não mais se lembraram das três palavras sacramentais senão com uma forma de ironia. Mesmo a Ciência, na pessoa de alguns dos seus mais brilhantes adeptos (os economistas), que pareciam então trazer fórmulas inéditas, vieram em auxílio da zombaria e condenou precisamente as três palavras utópicas pelas quais tanto sangue foi derramado. Assim, ao lado dos vencedores exultantes, apareceram rostos tristes e sombrios que inquietaram os triunfadores. Foi então que de repente uma palavra verdadeiramente nova se ouviu e que novas esperanças nasceram. Homens vieram e proclamaram que era errada e injustamente que a obra de renovação tivesse sido interrompida; que não se tinha conseguido nada com a mudança da configuração política; que a obra de rejuvenescimento social precisava que se atacasse as próprias raízes da sociedade. Oh! certamente, às vezes, vamos longe demais nas conclusões. Teorias perniciosas e monstruosas surgiram; mas o essencial é que, de novo, brilhou a esperança e a crença recomeçou a germinar.

 

A história deste movimento é conhecida. Ele continua ainda hoje e não parece ter nenhuma tendência para parar. Não é de forma alguma meu propósito pronunciar-me a seu favor ou contra ele. Eu só quero especificar a parte da ação de George Sand neste movimento. Nós  encontramo-la desde os seus primeiros passos de escritor. Ao lê-la, a Europa declarava que as suas palestras tinham por objetivo conquistar para a mulher uma nova situação na sociedade e que ela anunciava já os futuros direitos da «esposa livre» (a expressão é de Senkovski); no entanto isto não é de forma alguma exato, uma vez que ela não apregoava apenas a favor da mulher e não imaginava nenhuma espécie de «esposa livre». George Sand associava-se a todo o movimento progressista e não a uma campanha unicamente destinada a fazer triunfar os direitos da mulher.

 

É evidente que, enquanto mulher, ela pintava com mais vontade heroínas do que heróis; já não é menos claro que as mulheres de todo o mundo devam hoje andar de luto por George Sand, porque um dos mais nobres representantes do sexo feminino morreu, porque ela foi uma mulher de uma força de espírito e de um talento extraordinário. O seu nome, a partir de hoje, tornou-se histórico, e é um nome que não temos o direito de esquecer, que não deve nunca desaparecer  da memória europeia. Quanto às suas heroínas, repito que eu tinha dezasseis anos quando as conheci. Eu estava todo perturbado com os juízos contraditórios feitos sobre a sua criadora. Algumas das suas heroínas encarnavam um tipo de uma tal pureza moral que é impossível não imaginar que o poeta que as criou à imagem da sua alma, uma alma muito exigente quanto à beleza moral, uma alma crente, amante do dever e da magnitude, consciente do supremo Belo e infinitamente capaz de paciência, de justiça e de piedade. É verdade que a par da piedade, da paciência, da clara inteligência do dever, adivinhava-se no escritor um muito alto orgulho, uma necessidade de revindicações , até mesmo de exigências. Este orgulho era ele próprio admirável, porque vinha de princípios elevados sem os quais a humanidade não saberá viver em beleza. Este orgulho não era feito do desprezo do vizinho a quem se diz: eu sou melhor que tu; tu nunca terás o meu valor; este orgulho não era senão a altiva recusa de pactuar com a mentira e o vício, sem que, repito-o, esta recusa significasse a rejeição de todo o sentimento de piedade ou de perdão. Este orgulho impunha-se também a si mesmo imensos deveres. As heroínas de Georg Sand tinham sede de sacrifício e sonhavam apenas com grandes e belas ações. O que nas suas primeiras obras me agradava, eram alguns tipos de raparigas dos seus contos ditos «venezianos», tipos cujo último exemplo figura no seu genial romance intitulado Joana, em que resolve de forma luminosa a questão histórica de Joana d’Arc. Nesta obra, Georg Sand ressuscita para nós, na pessoa de uma jovem camponesa vulgar, a figura da heroína francesa e torna de certa maneira palpável a probabilidade de todo um ciclo histórico. Era uma tarefa digna da grande evocante, porque, única entre todos os poetas da sua época, ela carregou na sua alma um tipo ideal tão puro de rapariga inocente, poderosa pela sua própria inocência.

 

Todos estes tipos de raparigas acham-se mais ou menos modificados nas suas obras posteriores; um dos mais notáveis pode ser estudado na magnífica novela A Marquesa. Nela George Sand apresenta-nos a personagem de uma jovem leal e honesta, mas inexperiente, dotada dessa castidade honrada que nada teme e que não se deixa contaminar em  contacto com a corrupção. Ela vai direita ao sacrifício (que ela julga que se espera dela) com uma abnegação que desafia todos os perigos. O que ela encontra no seu caminho não a intimida de forma alguma, pelo contrário. A sua coragem exalta-se. É pois no perigo que o seu jovem coração toma consciência de todas as suas forças. A sua energia exaspera-se; ela descobre caminhos e horizontes novos à sua alma, que a si mesma se ignorava, apesar de ser fresca e forte, não estava ainda maculada pelas concessões feitas à vida. Com isso, a forma do poema é perfeita e encantadora.  George Sand amava os finais felizes, o triunfo da inocência, da franqueza, da coragem jovem e simples. Era então tudo isto o que podia perturbar a sociedade, fazer nascer dúvidas e temores? Pelo contrário, os pais e as mães mais rigorosos permitiam à sua família a leitura de George Sand e não deixavam de se espantar ao vê-la  denegrida por todos os lados. Foi então que eclodiram protestos. O público foi alertado contra essas arrojadas revindicações femininas, contra esta temeridade de impelir a inocência à luta contra o mal. Dizia-se então que se podia descobrir lá as provas do veneno do «feminismo». Talvez se estivesse certo ao falar de veneno. Havia lá um veneno que se delineava, contudo nunca se chegou a acordo sobre os efeitos desse veneno. Afirma-se — será que isso é verdade?— que todas estas questões estão hoje resolvidas…

                                                *    *    *

É necessário que observemos, a este propósito, que ao longo dos anos quarenta, a glória de George Sand era tão alta e a fé que foi professada pela sua genialidade era tão completa, que todos nós, seus contemporâneos, nós esperávamos dela algo de imenso, de inaudito, num futuro próximo, ou até mesmo soluções definitivas.

 

Estas esperanças não se realizaram. Parece que desde esta época, isto é, no final dos anos quarenta, George Sand tinha dito tudo o que estava na sua missão de dizer, e agora, sobre o seu túmulo acabado de fechar, nós podemos pronunciar as palavras definitivas.

 

George Sand não é um pensador, mas é dessas sibilas que discerniram no futuro uma humanidade mais feliz. E se, durante toda a sua vida, ela proclama a possibilidade, para a humanidade, de atingir o Ideal, é que ela própria estava armada para o conseguir.

 

Morreu deísta, crente firmemente em Deus e na imortalidade. Mas é dizer muito pouco e eu estimo que ela foi, entre os escritores do seu tempo, a cristã por excelência, embora não acreditasse na divindade de Cristo. Esta Francesa não teria admitido que a glorificação de Cristo tinha em si eficácia bastante para conferir salvação, conceito que está na base da fé ortodoxa. Contudo, a contradição está neste caso mais na terminologia mais do que na essência, e eu reitero que George Sand terá sido um dos grandes adeptos de Cristo.

 

O seu socialismo, as suas convicções, as suas esperanças, fundou-as ela sobre a sua fé na perfectibilidade moral do homem. Ela tinha, com efeito, uma alta noção da divindade humana, que ela exaltava de livro em livro, assim se associando pelo pensamento e pelo sentimento a uma das ideias fundamentais do cristianismo. Quero dizer ao princípio do livre arbítrio e da responsabilidade. Daí o seu claro entendimento do dever e das nossas obrigações morais. Talvez, entre os pensadores ou escritores franceses, seus contemporâneos, não há um só que tenha compreendido tão fortemente que «nem só de pão vive o homem». Quanto ao seu orgulho, às suas exigentes revindicações, repito que elas jamais excluíam a piedade, o perdão da ofensa ou mesmo uma paciência sem limites, que ela tinha descoberto na sua piedade mesmo para o ofensor. George Sand celebrou muitas vezes estas virtudes nas suas obras e soube encarná-las em tipos. Foi escrito sobre ela que, mãe excelente, ela trabalhou assiduamente até aos seus derradeiros dias e que, amiga sincera dos camponeses da sua aldeia, ela foi por eles amada com fervor.

 

Ela obtinha, parece, alguma satisfação de amor próprio da sua origem aristocrática (pela sua mãe estava ligada à casa Saxe), mas mais que a estes ingénuos prestígios, ela era sensível, é preciso que se diga, a esta verdadeira aristocracia cujo único apanágio é a superioridade da alma.

 

Ela não teria sabido amar senão o que era grande, mas era pouco apta a perceber os elementos de interesse que encobrem as coisas mesquinhas. Nestes casos ela mostrava-se talvez demasiado altiva. Na verdade ela gostava pouco de incluir nos seus romances seres humilhados, justos mas passivos, inocentes mas maltratados, como podemos ver em quase todas as obras desse grande cristão que é Dickens. Longe disso. Ela instalava orgulhosamente as suas heroínas e conseguia fazer delas quase rainhas. Ela amava esta atitude dos seus personagens e convém mencionar esta particularidade pois é uma característica sua.

 

Diário de um escritor, junho de 1876,

traduzido do russo para o francês por J.-W. Bienstock

e John-Antoine Nau,

Paris, Biblioteca Charpentier,1904.

Traduzido do francês por Joana Ruas,

Lisboa, Junho de 2022.

 

NOTAS da tradutora Joana Ruas

 

    1. Agosto de 1792, a Assembleia Legislativa concede a Schiller o título de cidadão de honra da República Francesa, nomeação devida à sua obra de 1784, A Conjuração de Fiesco baseada na conspiração histórica de Fiesco, conde de Lavagna, contra Andrea Doria em Génova em 1547. Esta obra que foi um fiasco na Alemanha teve  um grande sucesso em França. Numa carta a Campe em 1798, Schiller afirma que o título que lhe fora concedido se devia apenas às ideias que ele de todo e coração tinha adotado e que estavam na divisa «liberdade, igualdade e fraternidade». E acrescenta que se os seus compatriotas de além Reno agissem segundo esta divisa teria todo o gosto em ser um deles. Contudo, em 1798, todos os que tinham assinado a lei e o diploma já não estavam entre os vivos. Assinaram: Danton, Clavière, Roland, membros do Conselho Executivo eleito no dia seguinte ao das jornadas insurrecionais de 10 de Agosto  pela Assembleia Legislativa, tiveram um fim prematuro e trágico. 
    2. A imagem de George Sand com um  leque é um desenho do poeta  Alfred Musset (1810-1857), autor da obra prima Lorenzaccio, que lhe afirmava :«Não estou enamorado. Não se trata disso. Amo-vos perdidamente.» Em 1859, George Sand rende homenagem a Alfred Musset de quem se separara em 1835, alguns anos após a sua morte, escrevendo Elle et Lui, em que conta a tumultuosa história desses amores em busca desesperada do amor sublime. O especialista de George Sand, Thierry Bodin afirma que o livro é «a constatação sem amargura do fim de um amor perdido, da impossível busca romântica do amor absoluto».

Desenho de George Sand com um leque, por Alfred de Musset, 1833.

Fotografia de Fiodor Dostoievski

 

Fotografia de Joana Ruas

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