Cultura

O rapto de Europa │ Iolanda Aldrei

O RAPTO DE EUROPA

 

α

 

Esta e a tragedia subliminar, a que os ecras ocultam.

 

Uma merla choca ovo de cuco num tempo impreciso para o amor. Esta e a tragedia de uma voz alheada, de uma paz ainda por viver.

 

Esta e a tragedia amplificada desde o olho da mosca que na bosta do touro soube ver a ultima lagrima engolida, o devir do deus que a devorou, as palavras cultivadas e os canticos.

 

Este e o rapto de Europa relatado no virar da historia, a epopeia da pequena que o touro levou. (Desde as constelacoes, os deuses depravados ainda rim o seu pranto e vendem mar).

 

Enquanto o lume e roubado, enquanto os soldados nascem no ninho da melra, os povos fogem de si. Esta e a tragedia da destruicao. Este e o seculo das nomadas. As torres sao alcadas com o entulho das suas vozes…

 

Este e o rapto de Eros, a viragem da nascente e do rio, a barragem do touro sobre a Europa presentida, sobre a dilatacao do ser na humidade das alvoradas.

 

Esta e a tragedia contada por cochinilhas.

 

Velaqui a voz da rapariga que caminhou as aguas. Velaqui a voz da vaga que berrou.

 

Sobre as linhas de metal pousou um passaro.

Discorda uma nota de calor no estendedouro frio,

no desamparo da manha cinzenta. Desde a beira da estrada ve-se o mundo transformado por arte migratoria

no cruzamento antigo

que ficou ao pe da mancha de cor guardada na memoria

pelo passaro solitario que pousa nestas duras linhas de metal.

Alinharam-se os destinos dos vetores nas rotas desde o Sul,

neste regresso

para as terras de frio e solidao.

 

Sentou na beira da noite

a costurar a luz, a costurar as sombras, a escutar no ritmo daquele chio

o informe da fome de alvoradas.

So nessora percebeu

que tambem queria renovar

o ovo azul, de tato estranho,

sobre o ramo sonambulo do espinho.

 

Tambem por ti teci as ervas, tambem por ti enlameei a casa,

o tempo cucou tambem no vento, na lembranca mais velha dos orvalhos sobre a pele azul da tua casca.

 

Sofria de acrofobia

Apanhara o dia do primeiro encontro

sobre o abismo que unia as duas montanhas. Ninguem criara ainda as pontes novas.

Persistia a distancia entre as estrelas e

o silencio emergia desde a entranha colmada de versiculos vazios.

Ascendeu lentamente as escadas de corda,

hoje uma, amanha outra,

para vencer o medo concavo do ventre, enquanto escutava, You’ll never walk alone, e adivinhava que tambem Nina Simone

teve cravada uma espinha na gorja.

 

Voou outrora ao ramo.

Procurou o intervalo das espinhas para pousar o amor entretecido com o primeiro barro do universo.

O ninho da melra foi gerado

em conspiracao mitocondrial de sedimentos sob a chuva de abril,

na luz obliqua da colina de Tara. As asas estendidas eram cupula, canticos de fel dulcificado

pelos frutos oniricos

e as tardes no quarto das ervas

entre o aroma espiral e o ritmo antigo.

Deixaram a ferida estremecida

para que o frio acreditasse na derrota das penas caidas junto ao mar.

 

Se fechava o tempo era capaz

de escutar todas as vozes em conversa errada,

de escutar os cruzamentos de ninguem. Escutou o tempo das luas segredas, que marcavam o climax nascido

nos intervalos da luz.

O tempo das luas calidas,

quando o segredo de todas as descobertas tinha mapa na pele e no gemido.

Escutou a volupia solitaria na rota da luz palida,

no orvalho que molhava as suas pernas,

na montanha medrada tras o tremor da inocencia, na pureza entre-cortada do prazer.

Quem roubou as ultimas tardes do outro lado da terra,

para que so ficasse a beira-mar?

 

Acordou com frio nos pes.

Sentiu a falta dos figos doces no calor.

Lembrou que so acordava para alimentar o pesadelo na pausa inutil

do tempo de dormir.

Passou o comboio sem deter-se com viageiros fantasmas a saudar e ficou, estatico, o ceu

de nuvens brancas,

como os seus pes imoveis, alvos e frios.

Passou um carro sem deter-se para marcar as rodeiras

e a saudade

dos tempos de palmas e calor.

Apenas os mamilos assinalavam a ultima hora do sentir.

 

Fotografia de Iolanda Aldrei

Iolanda Aldrei (Compostela, 1968)

Escritora, docente e activista. A sua obra literária procura o diálogo entre os géneros e os espaços, participando em múltiplos projetos coletivos. Individualmente tem publicado: “A palavra no ar” (1990), “Memória de nove luas” (1994), “Grimório Azul de Samaná” (2011), “O segredo de Sheela na Gig” (2017),  “Quando a Joana voltou” (2018) e “Entrecontar” (2020). É membro da Academia Galega da Língua Portuguesa, Patrona da Eira da Joana e  participa de múltiplos projetos culturais, ecológicos e sociais. 

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