Cultura

Modos de ser Fresta | Letícia Ferro

 

Publicada pela 7Letras, Fresta (2018) é obra crispada de frames cotidianos reversos, cujos recursos expressivos, francamente poéticos, funcionam como fermento da crônica diária com indistinção de fundo entre as vozes que a pronunciam. O valor da palavra, aqui, é de alta voltagem poética e ressoa sobre o e(n)xame da vida, (com)prometendo a poesia à letra de Daisy Justus, Gilda Lima, Márcia Clayton e Margarida Corção, cujas identidades se apresentam antes pelo deslinde particular do mundo (com o pensamento em Adorno), que por suas assinaturas. (Não por acaso, a autoria de cada poema só se apresenta no índice localizado ao final). Nesses termos, Fresta urde sobre o chamado lugar-comum da literatura, mas que, por vezes, passa despercebido aos olhos ou, ainda, ao estreito da bitola do sentido – ou da falta dele (seu “desmonte” (Lima, 2018, p.9) ?) –, sob o foro rotineiro. Daí a necessidade acertada de se prestar atenção no que, numa perspectiva ampliada das coisas, no front das imagens, e, temporalmente, falando, possa dar a ver suas “plasticidades”, “ritmos e embates”, em meio às inúmeras “fraturas” (Didi-Huberman, 2015, p. 15), em realidade silabada – ou “melodia sibilada”, como vai dizer Corção (2018, p. 52). Ao valor da citação do filósofo, historiador e crítico de arte, agrega-se o efeito sortido da autoria da obra em análise, uma vez que as quatro poetas habitam a memória no seu combinado mais sensível: a edição subjetiva do instante, que, em se “[…] guardando dúvidas/ e incertezas,” (Corção, 2018, p. 14) torna “[u]m minuto […]” que seja essencial “para poder te olhar mais uma vez, /para apreciar a primavera florida no muro”, como para “[…] rever as viagens,/ os amigos de sempre,/ as partidas de pôquer” (Corção, 2018, p. 25). 

 

O título da coletânea, assim, antecipa o seu mote, sendo ele próprio de sintomática irresolução. É, pois, que advindo da ideia de fissura, frincha, em intermitente formalização, qual a paciência do próprio conceito de poesia (aqui, notadamente, crivado de experiências cotidianas), Fresta grassa por entre “qualquer coisa de compreensão sutil” (Lima, 2018, p. 95), transformando “coisas que resist[a]m/ coisas do não/ frente ao exílio de tudo” (Justus, 2018, p. 12), em lugar, tempo e ethos da abertura de sua própria forma. Sua escrita de “entretantos” autoriza os muitos tantos entres – enleados em “luz fosca” do “fio suspenso ao caminhar” (Justus, 2018, p. 69) que, de tão “entreaberta/ devaneio e realidade” (Clayton, 2018, p. 100), permite “enfrentar apesares e desconsolos na ultrapassagem/ de jardins de ervas daninhas em livre expansão no cimento/ das calçadas” (Justus, 2018, p. 69). E tudo isso duplamente visualizado: entre versos e imagens que os acompanham no curso do livro. 

 

Com efeito, os dias de inflexão ordinária arrolam os modos de pensar e ser da escrita aos da imagem existencial, na medida em que assopram a urgência de uma significância, quando dos momentos “sem aplauso moeda sorriso”, das “personagens [que] procuram o amparo de sombras” e do “[…] rastro de um doce entorpecente [que] nos leva/ ao fio da navalha/ a noites sem teto/ a um fio d’água” (Justus, 2018, p. 41). Mas a angústia cortante experienciada no dia a dia, de outra parte, é justamente uma das formas de se compreender a fresta – na esteira de Christian Prigent (2017, p. 31-33) – qual a “simbolização de um furo”, entendendo esse furo como sendo o “real”, cujo início se dá “[…] onde o sentido se detém”, malgrado seu esvaziamento ou rasura ocorra, qual “[…] sentido [que] se desfaz e se refaz”, se desmonta e se monta novamente. Também não é demais assentir a ideia de que a maneira como as poetas recebem a impressão do real mais nítido possível é dada pela imagem na qual ele se esvai, e essa penetração fugaz, esse empenho em tornar presente o passado, em avivá-lo de novo, enfim, é a demonstração da potência forçosa de uma escrita fundada na sua própria volatilidade, à maneira de uma “pluma sem destino” (Justus, 2018, p. 33), mas que, não obstante, resiste a isso, quando “[…] ignora neblinas/ o efêmero/ [e] com cera de vela/ escreve cartas e versos” (Justus, 2018, p. 36) vazados de lirismo.

 

Assim, é que as poetas recorrem à memória (instantes) para expandi-la, percebendo que à medida que os versos se sucedem, a estrutura do tempo se desarticula e se reestrutura sob forma de revisitação, hesitante, porém, a despeito da lembrança que jaz, sem ter a certeza “[…] se voltarei. / Vou partir amanhã ao entardecer/ com a mala quase vazia:/ ficam minhas gavetas/ as estantes guardando dúvidas/ e incertezas, / meus odores no quarto desarrumado/ e flores, muitas flores, no banheiro azul” (Corção, 2018, p. 14). Não se trata – nunca é demais dizer – de se auscultar a poesia pelo real, mas de interpelá-la segundo o que de mais tensional e inerente há em ambos, acirrando àquela a radicalidade deste, na sua forma mais original, sobremaneira, em termos fenomenológicos.

 

Em sendo isso uma das astúcias encontradas nas páginas de Fresta, vai-se, a exemplo tomado da aporia, à motivação da obra, quando elas parecem trazer, para o debate da escrita poética, a perspectiva, digamos, enviesada do real, que, ao largo do decalque, se insere por meio de novas formas de insurgência, como o devaneio – qual seu “exílio”, e que “pergunta: de que cor devo pintar o muro/ dos meus sonhos” (Lima, 2018, p. 102). A resposta, como não poderia deixar de ser, é de “vermelho de sangue coagulado nestas mãos nesta areia/ [que] denuncia relações sem reverso mergulho na banheira de/ maçãs [e que] permeia verão fragmentado em busca de sonhos […]” e ainda “[…] atravessam infâncias/ cardumes [bem como] lutam contra o peso do tempo que escorregou/ para ontem […]” (Justus, 2018, p. 12). 

 

Em meio aos “diferentes sotaques […]” (Justus, 2018, p. 47), dispostos a (de)cantar a existência e a poesia, reflexo e reflexão de uma e de outra amealham o propósito de ser, em que frestas fazem sonhar com “noite nua de nuvens” (Lima, 2018, p. 42), porém “sem esperar nada de ninguém” (Clayton, 2018, p. 34). Tal forma de ver as coisas, “que não aceita […] um corpo” apenas (Corção, 2018, p. 91), é também a que alia verve metafórica ao rigor da imagem-viva – vida! – em constante transformação e de “[…] ruídos farelentos […]” que “[…] não d[ão] ponto ao fato”, mas “[…] dorme[m no seu] aceso” (Justus, 2018, p. 45).

 

Referências

 

Didi-Huberman, Georges. Abertura. A História da Arte como disciplina anacrônica. In: _____. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Trad. de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. p. 15-68.

 

Justus, Daisy; Lima, Gilda; Clayton, Márcia; Corção, Margarida. Fresta. Rio de Janeiro: 7Letras, 2018.

 

Prigent, Christian. O ausente de todo livro. In: _____. Para que poetas ainda? Trad. de Inês Oseki-Dépré; Marcelo Jacques de Moraes. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2017. p. 30-39. 

 

Fotografia de Letícia Ferro

 

Letícia Ferro é editora e crítica literária, com graduação, mestrado e doutorado em Letras, pela UFG. Possui diversas publicações em periódicos especializados. E-mail para contato: let_ras@hotmail.com.




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