Cultura

Metacrítica – questão de método | Oscar Gama Filho

A História da Literatura Brasileira, de Carlos Nejar (ed. Noeses, São Paulo, 4ª edição, 2022, 1127 p.) é uma maravilhosa surpresa que o inclui na categoria poundiana de inventor – descobridor de um novo processo – nesse mar em que navega por sobre tantos diluidores e tão poucos mestres (ABC da Literatura, Ed. Cultrix). Esse trabalho de fato contribui para melhorar as obras criticadas por ele, como prescrevia Pound, imprimindo-lhes seu personalíssimo e inimitável estilo sobressimbolista.

 

Resgata inúmeros autores esquecidos do público – e de outros estudos de literatura brasileira – ainda que presentes na eterna História do Absoluto hegeliana – com H maiúsculo.

 

Não, não se trata de um romance, como, à guisa de elogio, mencionou o inesquecível Ricardo Moderno em seu prefácio. A novidade do inventor confunde os olhos do perito. Porém não há trama, personagens, orientação, complicação, avaliação, clímax, anticlímax, resolução nem coda (Labov e Waletzky, 1967). O brilhante texto de Carlos pode levar a este engano, pelo seu uso inusitado de metáforas, de metonímias e de inumeráveis figuras de linguagem que caracterizam o Sobressimbolismo – de que é o autor clássico, como mostraremos à frente. Além disso, ele se vale da função metapoética, característica da literatura, não da referencial, geralmente empregada com o objetivo de informar, notificar, jornalisticamente, no que Barthes chama de grau zero da escritura.

 

E o brilho desta história cega o próprio Nejar, levando-o a se enganar consigo mesmo, ao afirmar que sua História é autobiográfica, fruto de uma antologia pessoal. Não, não é, pois seria uma biografia de si mesmo, com seus dados e seu ambiente, como desejavam o Positivismo de Sílvio Romero ou o Naturalismo de José Veríssimo. É antes uma Fenomenologia, que é sempre pessoal – estudo daquilo que se manifesta ou que aparece. Quando analisa um autor, coloca a realidade entre parênteses – o que sobra é a obra estudada pelo gênio de seu olhar único, não por elementos de sua própria vida. Ou melhor: por um processo empático, Carlos despe-se de si mesmo e se coloca dentro do escritor visado, passando a senti-lo e a compreendê-lo como se fosse ele uma extensão de seu ser, simbiótico, mas ainda nejariano. Enxerga-o de dentro para fora, acrescentando facetas jamais percebidas por alguém.

 

Metacrítica significa a crítica que explica a crítica. Na função metapoética, o poema interpreta o poema, por meio da Poética – não a de Aristóteles – e sim da nova, que ele estabelece com sua História da Literatura Brasileira. Ou seja, desde a Ilíada e a Odisseia de Homero, poemas épicos, nasce o gênero… épico, a que pertence o romance. Dele, surgem as novelas e o conto. A Ilíada e a Odisseia são escritas em versos, como os das tragédias gregas. Assim, podemos considerar que um bom romance seja um poema em prosa e que o bom teatro seja um poema em prosa. Qualquer coisa é a mesma coisa em literatura. Por extensão, como foram os aedos que cantaram, ao som da lira, os versos de Homero, preservando-os para o futuro, canções com letras=literatura. Daí, compreendemos que é justo que Bob Dylan tenha obtido o prêmio Nobel de Literatura e que, da mesma forma, Gilberto Gil e Fernanda Montenegro tenham merecido a acolhida na Academia Brasileira de Letras.

 

Por isso Carlos emprega a Ficção Crítica como Processo, a Subdivisão Prismática da Ideia como Método e a Beleza como Objeto Formal Abstrato de estudo, transformando em ciência seu trabalho.

 

Na literatura, repito em tom de tragédia grega, qualquer coisa é a mesma coisa seminal, desde seu início até o futuro.

 

A metapoética arredonda e amplifica as obras estudadas, sem reduzi-las para encaixá-las, a golpes de martelo, em determinado estilo de época, para uso acadêmico.  Mas sua erudição não os ignora, pois há um colossal esforço classificatório e enciclopédico dispendido. É o primeiro trabalho sobressimbolista que conheço na área. Ao seu lado, só Otto Maria Carpeaux, pelo seu estilo envolvente e literário, que não chega, no entanto, a ser Ficção Crítica.

 

A crítica de ficção comum se coloca como parceira da “vida real”, como juíza do que “realmente” há. Suas ideias pertencem ao reino da denotação, da objetividade e da racionalidade, não ao mundo do belo, da conotação, da subjetividade, do imaginário e do jogo ora em julgamento. Ela se esquece de que o imaginário só pode ser assimilado integralmente pela loucura. A razão, ao entrar em contato com a fantasia, tem o objetivo de descobrir ou de inventar sua lógica, domesticando-a para reconstruí-la à sua imagem e semelhança, apropriando-se ideologicamente dela e destruindo sua pluralidade de sentidos.

 

Um suposto diálogo entre a conotação e a denotação seria impossível: a conotação encontraria segundos sentidos em tudo que a denotação expusesse, e a denotação compreenderia somente um dos muitos significados presentes no que a conotação quisesse expressar. Um poema diz tanto e, por isso, tão pouco, devido à pluralidade de sentidos de sua mensagem. Nunca se pode afirmar que ele declara o que parece afirmar.

 

No entanto, a crítica, aos olhos da lógica, seria imune a ataques, se abandonasse sua posição de parceira da vida real para se tornar também ficção: a Ficção Crítica não seria reducionista, nem buscaria verdades ou argumentos para justificar uma aprovação ou uma rejeição. A Ficção Crítica, que ele propõe, acrescentaria novas facetas à obra de arte casando-se com ela, completando-a, arredondando-a, com seu estilo cheio de figuras de linguagem, e ampliando, por isso, seu alcance, sua conotação e sua fantasia. 

 

Ficção Crítica não se dedica a revelar verdades ou invariâncias. Ela funciona meramente por uma armadilha lógica: os analistas convencionais não poderiam metacriticar a Ficção Crítica porque não disporiam de meios mais eficientes. A Ficção Crítica, graças a este artifício de cálculo, não empobreceria nem diminuiria o potencial de ambiguidade de seu objeto de estudo. Muito pelo contrário, esse potencial seria aumentado e enriquecido, conforme desejava Pound. 

 

O Método da História da Literatura Brasileira faz com que ela só possa ser adequadamente compreendida por meio da estrutura criada por Mallarmé e lançada em Un Coup de Dés Jamais n’Abolira Le Hasard — a Subdivisão Prismática da Ideia, que o leitor deve usar como óculos de leitura. O brilhante conceito, que jamais foi executado para reger uma História da Literatura, é lógico, rígido, e não permite excessos: cada cristal vai refratar a luz e produzir algo diferente, outra ideia, outro texto-cristal edipicamente diferente de seu pai, apesar de ser uma continuação sua.  Não é uma obra aberta nem desmontável, como preconizava Umberto Eco. As pérolas só se tornam colar quando estão reunidas: há uma unidade histórica hegeliana.

Qualquer estilo de época é capaz de gerar novas interpretações, de que nascem várias outras análises, que assim se bifurcam, à Borges, referindo-se aos caminhos que se abrem para o ser enquanto escolhas existenciais: os seus destinos os produzem.

O mesmo fenômeno ocorre em cada um dos condensados parágrafos de Nejar, que, pelo seu estilo, são arte em si mesmos, e fornecem material, eventos e autores suficientes para a produção de outras interpretações alheias – como fazem seus prefaciadores mais ou menos intercambiáveis no seu conjunto e totalmente independentes entre si. Nejar larga pérolas em sementes que não colhe e de onde outros livros poderiam nascer, se suas histórias, estilos, imagens e figuras singulares não fossem cortadas pelas suas Parcas mãos deusas, que tecem, cruzam ou cortam o fio do destino literário com precisão, e deixam pelo caminho o texto-tecido-mãe-de-que-muitos- seriam-capazes-de-nascer-dele, a partir da visão dos leitores, expandidos cognitivamente e agradavelmente confusos pelo seu drible de Pelé.

Ou seja, a História é seminal. Cada prismático autor se subdivide em outro que se subdivide em outro — e todos são doadores potenciais de sêmen capazes de produzir outros textos ou…

Carlos confirmou esta tese em conversa comigo. De fato, ele afirmou que se autocaracteriza pela existência da técnica da “Imagem Eidética”, varando sua obra de fora a fora. Desde há muito tempo, Nejar a definiu e a vem definindo como uma imagem “que continua na outra imagem que continua na outra imagem que continua na outra imagem na outra imagem e assim vai infinitamente”. Ou seja, um estilo de época ou autor estudado continua em outros, que continua em outros…, conferindo uma unidade estrutural à sua História. Ao final, formam um conjunto, um bloco associativo de imagens que tem como linha condutora a Subdivisão Prismática da Ideia

Seguindo a Epistemologia de Bachelard e de Althusser, toda ciência deve possuir um Objeto Abstrato Formal de estudo, para ser considerada como tal. Como exemplo, a Biologia tem a Vida como Objeto de Estudo.  O Objeto Formal Abstrato da História da Literatura é a Beleza.

Seu corte epistemológico foi empreendido pelos gregos, que descobriram as bases da ciência literária e criaram o conceito da intemporabilidade do belo, e culmina com a impressão da Bíblia por Gutenberg. O Formalismo, o Estruturalismo –bem como as diversas teorias críticas–, levaram este movimento ao seu auge, implantando as leis da agora ciência.

A estrutura, a organização e a ordenação da História da Literatura Brasileira de Nejar se valem da Subdivisão Prismática da Ideia como Método sobressimbolista peculiar, usado para estudar seu Objeto Formal Abstrato: a Beleza.

Eis então, senhoras e senhores, o graal: a Beleza. Podemos não ser felizes e até tristes, mas há Beleza também nas cores, vistas ao microscópio, das chagas do câncer. Ela nos redime e nos abençoa com a sua maldição continuada que nos conduz em direção ao reino da beleza da luz.   

Há algo de essencial que emerge da busca em que todo o ser original do escritor se insere, entrelaçando-se inseparavelmente ao texto, palavra que, etimologicamente, significa tecido e se aparenta com teia, trama, tela. Enfim, teia em que alguns são capturados, se deixam capturar ou se capturam como mera presa, espectadores de um espetáculo em que são marionetes distantes daqueles que manipulam os verdadeiros fios – que dão sentido e forma ao tear literário. E a forma é sempre a realização do antes impossível, executado com uma competência harmônica capaz de transformar mesmo o horrível em belo. Forma é trans-fôrma.

 

Na teia textual, os fios são palavras em harmônica trama. Não há opção para quem vive no tecido da palavra: nela se acha ou se perde nela e por ela. Ou trama para a palavra ou a palavra trama contra a pressa da presa. E tramar a favor significa resgatar a ressurreição do sentido descoberto do código-primeiro: a palavra, linguagem das linguagens, pois ninguém pensa além do que ela possibilita. A não ser o escritor, cuja função exploratória, exprimindo o inexprimível, leva a humanidade a aumentar a sua capacidade de expressão e a pensar além do que, humanamente, poderia.

 

Uma nova ciência precisa de novas palavras e conceitos para expressar o continente epistemológico recém-descoberto — ou inventado. A língua nos obriga, ditatorialmente, a pensar dentro de certas limitações e determinações do idioma. Se, para ser original, o artista subverte o código estético dominante — revolucionando a gramática, a sintaxe, os valores existenciais ou criando palavras e inter-relações —, então ele também contribui para aumentar a capacidade de expressão e o alcance do pensamento da humanidade pela criação da nova linguagem que a sua estética pessoal deve, necessariamente, propor. Além desta primeira, a Beleza também tem as seguintes funções:

 

2 – Transformação em código estético de qualquer tipo de ocorrência, possibilitando sua incorporação ao tesouro humano e contribuindo para a preservação de uma reserva das características humanas que ajuda a alterar.

 

3 – Criação do futuro, graças ao seu papel na mudança do mundo por meio do lastro cultural fornecido pela originalidade. Esta é uma função muito mais matemática — no sentido de análise combinatória — do que mística. A busca de originalidade instaura uma ruptura com o presente e faz com que sejam criados, simultaneamente, inúmeros futuros alternativos possíveis, multiversos, com novas formas de vida propostas. O futuro real é um subconjunto derivado do arranjo, da combinação ou da permutação dos infinitos elementos do conjunto sonhado. 

 

Por mais real que pareça uma indústria, houve um arquiteto que a idealizou em um projeto antes de edificá-la. Em suma, o real é construído por sonhos de Beleza que se transformam em “realidade”. E são tantos os fios-possibilidades originais e novos do continuum existencial propostos pela arte, que alguns acabam acontecendo — entrelaçando-se no tecido do continuum —, em um processo de deslocamento e de condensação metaforonímico, por meio de arranjos, de combinações e de permutações de seus elementos. 

 

A arte propõe um conjunto infinito mais-do-que-estético — contudo, paradoxalmente, suas interseções com a realidade o lançam, big bang, na mesma expansão incomensurável do universo — e dele as pessoas extraem, aleatoriamente, o subconjunto de elementos que comporão os caminhos futuros. 

 

4 – Fornecimento de um caminho (tao) para a iluminação (satori) superior ao da “realidade”.

 

Todas as coisas e todo o universo possuem um algoritmo linguístico. E ninguém pensa além da linguagem. Se nós descobrirmos qual é o algoritmo linguístico mais original de palavras das coisas, nós teremos a equação perfeita que abre todas as portas, chave mestra atrás de que está todo escritor — e teremos todas as coisas. Por trás dela, reflexo em decúbito no espelho, a Beleza mostra o algoritmo que conduz à perfeição.

 

Como exemplo da intemporabilidade do belo, a visualidade também é uma característica presente desde a antiguidade clássica. Os gregos chamavam de technopaegnia a trabalhos como os de Símias de Rodes (c. 300 A. C.), que produziu poemas em forma de ovo, de asa e de machado. Os romanos os denominavam de carmen figuratum, que podemos traduzir por poema figurativo. Guillaume Apollinaire (l880-1918) os intitulou de caligramas. Venâncio Fortunato (530-c. 600) criou textos em forma de cruz. George Herbert (l593-1633), de altar e de asa. William Blake (l757-l827), de rosa. O brasileiro Fagundes Varela (1841-1875), de cruz. Lewis Carroll (1832-1898), em Alice no País das Maravilhas, preferiu reproduzir o rabo de um rato. Mallarmé (1842-1898) experimenta sua subdivisão prismática da ideia no genial Um Lance de Dados (Un Coup de Dés Jamais n’Abolira le Hasard). Os autores barrocos portugueses e brasileiros (séculos XVII e XVIII) possuem inúmeros poemas visuais, entre os quais se destacam os de Manuel de Andrade de Figueiredo (c.1674-1735), primeiro vate nascido no Espírito Santo. 

 

Enfim, resta falar da literatura como produtora de um caminho (tao) para a iluminação (satori). Ambos são conceitos preciosos do pensamento zen que apresentam semelhanças com o processo de desenvolvimento de um artista. No oriente, as pessoas que desejam atingir o satori se dedicam, por tempo indeterminado, a um aprendizado de técnicas ligadas a atividades tão diferentes quanto a cerimônia do chá, as artes marciais, a caligrafia ou a pintura, entre inúmeras mais. Entretanto, reproduzindo o que acontece no domínio estético, segundo Fritjof Capra, embora “todas exijam uma perfeição de técnica, o domínio efetivo só é alcançado quando se transcende a técnica, e a arte se torna uma ‘arte sem arte’, brotando arraigada do inconsciente” (O Tao da Física, São Paulo, Cultrix, 1988, p. 98) e produzindo a beleza.

 

A iluminação gerada por ela é o raio de luz que dissolve a noite em que vivemos, permitindo que enxerguemos uma realidade superior ao real em que nos movemos aos trancos e barrancos.

 

E, convenhamos, se todo cavaleiro andante em busca do graal necessita de visões, as Iluminações são indispensáveis para que a saga prossiga. A existência pode ser comparada a um livro ou a um filme. Sem a arte para criar boas cenas e belas frases no espetáculo de nossa vida, o tédio invade os sentidos, o público se retira e passamos a ter vontade de abandonar o filme de nós mesmos para ingressarmos em uma outra aventura, além da natureza, nos limites do além-natural.

 

Por fim, o que é o Sobressimbolismo?

 

De fato, Nejar, na Apresentação à segunda edição de sua portentosa História da Literatura Brasileira, já anunciava a sua existência: “E, hoje, talvez estejamos em um novo Simbolismo.” (ed. Leya, São Paulo, 2ª edição, 2011, p. 23). A mesma frase se repete na 3ª edição (Ed. Unisul, Palhoça, 3ª edição, 2014, p. 11).  A afirmativa é ratificada na apresentação à 4ª edição de sua História da Literatura Brasileira: “E, hoje, talvez estejamos em um novo Simbolismo” (p. XIX).

 

Carlos Nejar, em entrevista ao jornal A Tribuna, de 20/12/2015, declarou: “Há um grande crítico em Vitória, que é Oscar Gama Filho, também romancista. Ele me revelou que, na poesia e na ficção, trago um novo movimento literário, o Sobressimbolismo. Depois verifiquei que há muito busco essa perspectiva. Ele descobriu o que me inventava”.

 

Mas de que se trata? Vamos delineá-la:

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Linhas Sobre a Superfície

 

Qual música ecoa de linhas sobre a superfície? Não de linhas complexas: — linhas simples, como as das letras.

 

Que quadro compõem essas linhas desunidas, que apenas se tocam nos seus vértices? Pontos em que se interseccionam, mas não se penetram. 

 

Toda escrita é formada de linhas sobre a superfície. As linhas podem ser cordas suspensas, como a língua inca. Ou gravadas na areia da praia.

 

Quem se dedica a descobrir o ritmo e a musicalidade dessas linhas sobre a superfície é. Música sem harmonia nem arranjos além da escansão greco-latina ocidental.

 

Quem se dedica a transformar letras em tintas espalhadas na tela branca da página e a compor cenas em quadros sem perspectiva, mas dotadas de plasticidade é.

 

É sobressimbolista.

 

Este estilo de época apresenta Carlos Nejar como seu autor clássico, no sentido de modelo a ser estudado em classes de aula. Por enquanto, o único 100% sobressimbolista.

 

A submersão no mistério dos inúmeros autores estudados pode nos levar a olhar em volta e a mergulhar nos enigmas que nos rodeiam, pequenas bolas de luz no meio do universo escuro que se infinitiza. Tal qual fazemos com as estrelas, não devemos nos preocupar com o seu significado ou com a sua compreensão. Em arte, o único esclarecimento necessário é a intuição de estar com mais coisas na saída da obra do que na entrada. Se essa fruição estética chegar, será o bastante para ouvir estrelas. 

Esta é uma história épica regional: o centro do mundo é o Brasil (o ponto comum a todos os conjuntos) e o centro do Brasil é Nejar, já que é a partir desses dois centros que ele lança seu olhar aos arredores constituídos pelo resto do planeta.

E, sim, existe uma literatura brasileira baseada apenas no critério geográfico, o único logicamente aceitável. Os elementos estilísticos ou lexicais não são suficientes para classificar uma literatura como brasileira, nordestina, baiana, capixaba, americana, inglesa ou italiana. Grandes artistas produziram esse efeito ilusório em lugares em que havia um Capital Cultural poderoso o bastante para alavancar seus autores. 

Pela teoria da intertextualidade, todos os escritores escrevem um só livro desde o princípio dos tempos até o futuro. À luz da teoria do intertexto, não existe divisão do mundo em diferentes escolas literárias. Os dados técnicos originais se perdem no tempo e o simples uso do mesmo alfabeto já é intertexto, com influências inevitáveis, pois cada língua nos obriga, ditatorialmente, a dizer algo diferente sobre a mesma coisa primitiva criada há 6.000 anos. Qualquer coisa é a mesma coisa e não há nada de novo sob o Sol, afirma há 2.000 anos o Eclesiastes.

A solução lógica é que o geográfico esteja por trás de cada divisão do Brasil em literaturas diversas, pois o argumento estilístico não resiste a uma análise mais profunda. Portanto existe literatura brasileira, sim, Nejar ajudou a descobri-la e se tornou um dos seus inventores.

Só como exemplo: são grandes artistas, como Shakespeare, que produziram a literatura inglesa. Mas ele poderia ter ajudado a criar a literatura italiana com obras parecidas e com recursos técnicos similares se tivesse nascido na Itália e se sua língua fosse o italiano: Otelo, o mouro de Veneza, bem como Romeu e Julieta, são temas  italianos. Em Verona existe até a casa de Julieta, criada para turistas e sabidamente falsa.

Dois fatores produzem o que se chama de literatura italiana ou inglesa:

  1 – A qualidade excepcional dos artistas dentro de uma unidade geográfica que os definiu a priori como italianos ou ingleses, obrigando-os a falar dentro do que a possibilidade da língua determinava;

  2 – O Capital Cultural circulante, como havia em Florença. De que adiantaria Shakespeare, com toda a sua genialidade, ter nascido no Brasil pobre e subdesenvolvido, como foi o caso do genial Machado de Assis?

Defino Capital Cultural como a quantia que, derivada direta ou indiretamente do enriquecimento de uma sociedade, é empregada no setor cultural, levando a um aumento de suas atividades. 

Assim, o trabalho que analisamos contribui decisivamente para estruturar a identidade cultural brasileira.

 

É desnecessário mencionar a generosidade dos capítulos de sua História, em que todos são bem acolhidos, pois são elaborados com a pena cheia de amor, fraternidade e esperança sinceros – nem sempre retribuídos pelo livro analisado. Se bem que não costuma usar a caneta cheia do venenoso fel que era de posse de Agrippino Grieco.

 

Aprendemos, com ele, que a maior missão de um escritor é fazer-se literatura, tornar-se literatura. Escrever bem qualquer um consegue. O diferencial é conseguir metamorfosear-se em O Escritor, transformar-se em matéria-prima de lendas, em homem santo da religião sem deus dedicada à adoração do hegeliano espírito da literatura, entronizar-se como Filho do Absoluto.

 

Este é o caso de Nejar, que saiu da vida e abandonou seu lar para dormir, nas mãos de seus leitores, bem como nas estantes de bibliotecas e de livrarias, tornando-se pedra fundamental da literatura brasileira. Ao artista, tudo é permitido em nome da literatura. Até a transmutação.

 

A sua abrangente obra realiza o sonho de um autor completo, pois o envolve com os trajes de inigualável poeta, romancista, autor infantojuvenil, dramaturgo, cronista, memorialista, historiador e crítico. O prodígio da beleza de seus textos produziu milagres inexistentes, mas em que todos creem, pois são verossímeis, como deve ser a literatura, como deve ser qualquer material real ou estético produzido por um artista. 

 

A determinação e o brilho deste caminho de peregrinação literário e humano fizeram com que Carlos Nejar deixasse de ser mais um na multidão e o transubstanciaram em O Escritor

 

A marca de seus passos o segue pela eternidade.

 

Casamar, 26/02/2023

 

 

 

Fotografia de Oscar Gama Filho

Oscar de Almeida Gama Filho nasceu em Alegre, em 31 de março de 1958. Publicou: De amor à política, poemas, edição marginal, em conjunto com Miguel Marvilla, em 1979; Congregação do desencontro, poemas, em co-edição do autor com a Fundação Cultural do Espírito santo, em 1980; História do Teatro Capixaba: 395 anos, pela Fundação Cultural do Espírito Santo e pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida, em 1981; Estação Treblinka Garden, peça de teatral, na Revista Letra de 1982; Onaniana, poema dramático, na Revista Letra de 1983; A mãe provisória, tragicomédia, nos números de 1984 e de 1985 da Revista LetraTeatro romântico capixaba, pelo INACEN, MINC, DEC, e CECES, em 1987; O despedaçado ao espelho, poemas, pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida, em 1988. Realizou, em 1978, a exposição poético-plástica de arte ambiental “Varais de edifícios”. Participou, como idealizador, da tentativa de criação de uma Editora Cooperativa de Escritores Capixabas, em 1978, durante a qual, em 1978, organizou a primeira oficina literária do Espírito Santo. Dirigiu, em 1978, A mãe provisória e, em 1979, Estação Treblinka Garden. É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e do Grupo Letra. Atua profissionalmente como psicólogo. Em 2001, publicou O relógio marítimo. A essência da poesia e Os últimos poemas-desesperados de amor. RJ: Imago.





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