Ler ou Ver TV? Eis a Questão
Sempre nas passagens do ano se repetem as reportagens televisivas e fico curioso em saber o que os entrevistados pensam e se propõem a fazer. Muitos falam sobre o que planejaram para o ano findo, o que conseguiram e pretendem para o que se inicia. Citam o trabalho, estudos, relacionamentos, emagrecimentos, viagens, mas de vez em quando alguém surpreende o telespectador com algo inusitado. Vi/ouvi de uma bonitona siliconada uma das suas metas a serem alcançadas. Estranho, para dizer o mínimo.
Com ares de sapiente, revelou que planejara ler um livro por mês durante o ano, mas, questionada pela repórter, acabou confessando que só conseguira ler um livro e meio nos últimos 12 meses, não sabendo informar os nomes das obras.
E para o próximo ano? – quis saber a repórter. “Vou me esforçar para cumprir a meta!”
Como é que alguém pode dedicar tão pouco tempo ao prazer da leitura? E ainda encarar a missão como se fosse um exaustivo exercício físico?
Para escrever, basta laçar no imaginário as palavras que expressem ideias; ler é bem mais fácil e enriquecedor. Ver televisão pode não prejudicar, mas em excesso cansa a visão; e as telinhas de computador e assemelhados, em demasia, secam os olhos e provocam desconforto.
Ler, entre as mil vantagens, cito outra, dita pelo poeta Mário Quintana (1906-1994):
“O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.”
Quem me conhece, sabe muito bem: traço todas!
Não, não me refiro ao verbo politicamente incorreto quando a referência é à conjunção carnal. Isso é coisa de façanheiro, desses que contam lorotas em mesas de bar e nas esquinas dos desocupados. Quando revelo que traço todas, me refiro a obras literárias, não tantas quantas gostaria de ter lido, mas um pouco além da maioria.
Isso é fato a se vangloriar? Não, apenas um deleite para o espírito. Quando asseguro que traço todas é por me julgar uma verdadeira traça, aquele bichinho que devora livros, jornais, revistas e até alfarrábios históricos, se a eles tiverem acesso.
Não traço como as traças, traço com os olhos; leio tudo que é possível, mesmo ciente de que não conseguirei ler um mínimo do que gostaria. A média de leitura é de 20 páginas por hora, cinco horas por dia, o que totalizam três mil páginas por mês.
É muito? Uns acham, eu não. Poderia ser bem mais se controlasse a dispersão e fosse disciplinado. O Sylvio Abreu, jornalista e escritor, parceirinho de aventuras e escrevinhações, por exemplo, é um cabra que lê muito, talvez mais do que eu.
Perco tempo garimpando filmes antigos na TV a cabo ou no youtube, torcendo pela sobrevivência dos últimos animais selvagens, vibrando ou sofrendo nos jogos do Galo nas rinhas pátrias ou além fronteiras. E escrevendo, embora seja aprendiz nessa labuta.
Isso sem falar nas horas perdidas assistindo aos jornais televisivos, quase sempre uma sucessão de miudezas espetaculosas, sem qualquer relevância para o comum dos mortais. E tome manipulação política e enganação consumista!
A Apple, por exemplo, quando abriu mais uma lojinha de bugigangas informáticas, para lá correram os viciados em aplicativos que logo serão descartados. A repórter informou que eram mais de 1.500 jovens, todos pilhados e aflitos, não se sabe se para se endividar com mais uma novidade ou apenas aparecer na telinha. Afinal, qualquer um pode ser herói por um segundo. Se muito. Quem é santo ou demônio no Olimpo das nulidades?
Cito uma fala e desafio.
Quem disse que “a única diferença entre os santos e os pecadores é que todo santo tem um passado e todo pecador tem um futuro”?
Foi um nobre, o lorde Illingworth, personagem de Oscar Wilde (1854-1900), gênio irlandês, visto como o doidivanas que escandalizou a Europa com escritos e atos fora do script da tolerância.
A citação é gratuita? Nada disso, é que estamos nos aproximando das urnas, onde uns vencem, a maioria dança e é aí que a equação se elucida: os santos têm um passado límpido, podem até votar no erro, mas não se corrompem.
Os outros, os pecadores vitoriosos, asseguram um futuro de benesses; mas qual será a tonalidade da alma deles? A cor do breu dos infernos, o azeviche das aves de mau agouro?
E por favor, descartem o viés do preconceito racial por ter associado negro às coisas ruins do demônio. Foi só um jeito de escrever, uma figura de estilo, se preferem sofisticar.
A sabedoria popular tem longo alcance. Outro dia, ao lamentar a vitória nas urnas de certos pilantras de bote certo, o Zé da Guga, filósofo barranqueiro de largo saber na escola da vida, foi direto ao ponto, sem nem nunca ter lido a frase urdida pelo Oscar Wilde.
“É, hoje eles comem o churrasco da vitória, mas amanhã quem vai pro espeto do tinhoso serão eles!”
Pode ser e pode não ser, mas como “a ambição é o último recurso do fracassado”, ainda segundo Wilde, desde agora a inveja campeia solta.
Prefeito reeleito já pensa em quem apoiar na próxima eleição para manter o controle do feudo e os que inauguraram mandato espicham os braços para abarcar a reeleição.
Voto – saibam todos – é sinal de prestígio, mas pode ser uma casca de banana na caminhada dos vitoriosos. Afinal – garantiu o debochado escritor -, “a cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre”.
Ele pegou pesado e alvoroçou corpetes e coletes da conservadora elite europeia, mas deixou nome na história.
No único e famoso romance, “O retrato de Dorian Gray”, Wilde negocia com o improvável e pressupõe o mito da beleza e da juventude eterna. Mefistófeles é ardiloso e fisga os incautos no tropeço das fraquezas.
Assim foi com o mocinho que se manteve belo e saudável até que …
Não leu o livro e sequer viu o filme? É uma pena.
“O retrato de Dorian Gray”, todos sabem, é um exemplo de literatura gótica, iniciada no século XVIII, na Inglaterra, com a obra “O castelo de Otranto”, em 1764, de Horace Walpole, (1717-1797).
O livro de Wilde se reporta a Fausto, personagem de uma lenda alemã, sobre um pacto com o demônio, baseada no médico, mago e alquimista alemão Johannes Georg Faust (1480-1540).
O nome e o mito de Fausto têm sido usados como base de diversos textos literários, o mais famoso a peça de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
Outro escrito do dublinense que muito aprecio é o conto “O príncipe feliz”, uma alegoria sobre as ilusões da vida e a insensibilidade dos homens. A fidelidade de uma andorinha que abdica do verão para se dedicar à estátua do príncipe comove uns e revolta outros que não admitem os revezes sociais. Vivo, o príncipe só conhecia o luxo entre os muros do palácio; morto, descobre a miséria dos súditos.
É subversão explícita, diria um crítico neoliberal ou um iludido com a verbosidade patética de um messias bufão.
Ainda há quem duvide dos prazeres da leitura? Revelação de Mario Puzo (1920-1999):
“Tenho duas razões para continuar a escrever as histórias que tenho para contar; primeiro, porque me divirto; e segundo, porque cheguei à conclusão de que ler é muito melhor que comer, beber, jogar e ter mulher. Enfim, tudo o que já conheci na vida.”
Discordo apenas do último item porque mulher… vocês sabem. Para encerrar, cito outro dito que muito aprecio:
“A vida é muito importante para ser levada a sério”.
Assim falou Oscar Wilde que, pela prática do “amor que não ousa dizer o nome”, desafiou a moral vitoriana e padeceu dois anos na prisão.


Regina Helena Magalhães
Hermínio Prates é jornalista, escritor, ex-professor universitário de Jornalismo, Rádio e Teoria da Comunicação na UFMG, UNI-BH, PUC e Newton de Paiva. Foi repórter e redator do Diário de Minas, Jornal de Minas, Minas Gerais, Rádio Itatiaia, diretor de Jornalismo da Rádio Inconfidência, chefe das Assessorias de Comunicação das Câmaras Municipais de Sabará e de Belo Horizonte e da UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais. Publica regularmente contos, crônicas e artigos em vários jornais mineiros. Autor dos livros Família Miranda – Vidas e Histórias ( ensaio historiográfico) e A Amante de Drummond (contos).