Cultura

Incêndio, de Cecília Barreira: o caos ordenado do fogo

 

“Incêndio” de Cecília Barreira é uma obra que irrompe e alastra sob a toponímia de uma “cidade branca” onde o lirismo, por vezes torrencial, respira “os tetos que em cada um perduram”, assentes num traço de intrincada melancolia, em que o verbo respira e sufoca na incompletude de um “voo livre” que, apesar da perseverança, nunca conseguirá vislumbrar o olfacto do real na (13) “cidade branca”.

 

É um traço poético que brota “das eternas dissonâncias” dos sonhos e da crença, um salto mortal nas “horas enredadas dos abrigos e dos estilhaços”.

 

Poder-se-á afirmar que estamos perante uma poesia que em grande parte, nessa incompletude essencial da criação, matéria vislumbrada no acto sagrado da crença, sempre jorrando e brilhando “nos incêndios de amígdalas” de um oxímero divino, como a poeta declara no poema “Prometeu”:

 

   “Estas vértebras / Os ossos numa pia / O pus (possibilidade de dúplice leitura) / A mão que já não cheirará mais o perfume que é o teu” (o dele, o nosso, o da poeta…).

 

Ao longo de(o) “Incêndio”, alguns dos temas que de alguma forma se colaram ao corpo (poética e carnal) da autora desde sempre, quer seja na poesia, na prosa ou até ensaio, como o frequente questionamento  do absurdo mundo (deste nosso actual mundo…), a sexualidade, em sua exponencial amplitude (heterossexual, homossexual e bissexual), os complexos e tóxicos relacionamentos (amorosos, de amizade e sociais), ou seja, “os mundos” sob  “a densidade dos que acenam as lamas” em falas paralelas onde muitos se escondem e/ou perdem a liberdade e o seu “peso” e, ainda e apesar de tudo, a viva crença na humanidade e, nomeadamente, na POESIA. Pois, como afiança no poema “Acendo uma desordem”:

 

    “Abro as persianas / O dia oblongo acorda devagar / Acendo uma desordem” – e desperta e reergue-se, resfolga e respira “deslizando na folhagem”: vive!

 

Ou seja, na desordem (da poesia, da palavra, do centro sísmico da poiésis…) há ainda uma visão de crença na selva (a natural, mas sobretudo, a humana) deste mundo actual, desta “casa” em que hoje sobrevivemos (por combate ou indolência), já que a criação se faz inesgotável e insaciável (20)e um ovo estrelado por cima daquela gaveta / onde cuspimos a nossa dignidade amarela” fervilha sísmico.  

 

Para a poeta, “Incêndio” será o fogo que alimenta a desordem da linguagem primordial, uma vez que o poema (a poesia…) será o lugar onde a linguagem e a fala se podem transformar, se podem metamorfosear. Aquele lugar aonde um certo caos ordenado se poderá constituir o espanto, fogo divino, (11)a orquestra da língua o ventre do avesso”. Se assim não for, nada valerá a crença nos silêncios bruscos do mundo, (11)qual Prometeu / com a escarpa rente de quem nunca creu”.

 

Dito isto, há que exorcizar e expor um dos pontos fulcrais da poesia deste livro. Sob o aparente espelho em que aflora uma lírica e melancólica voz, por vezes em sua delirante torrencialidade, divisa-se uma explícita problematização da própria poesia enquanto linguagem incrédula, mas concomitantemente crédula, “nesta” infinita e desconhecida viagem (metafísica e real…) em que, sob o beneplácito de um deus (espiritual ou verbal) ou deuses, percorremos, sempre, sob o terrífico peso da nossa solidão. Da sitiada solidão dos “cinzentos outonos do verão da nossa identidade”.

 

Concluindo, e como já referi, sob o nevoeiro e/ou manto dessa “lírica melancólica”, vislumbra-se uma concepção de verbo voltada para dentro, numa derivação da palavra, da fala, da poesia, ambicionando ainda e sempre, ser um corpo orgânico e físico em seu hálito seminal. O próprio sentido ilativo e conclusivo de muitos dos poemas da obra apresenta-se como um mergulho catártico (da poeta, mas essencialmente da (sua) fala primordial) da POESIA.

 

É, pois, notória uma ambição-testemunho nestes poemas, no sentido de problematizar e simultaneamente celebrar a poesia entre os dois centros que a podem delimitar: o amor e/ou crença em seu sopro e a sua problematização (por vezes próxima do abjeccionismo) a partir da sua impossibilidade, que, todavia, não deixa de ser imbuída de uma exponencial embriaguez.

Diria, neste corpo indiferente ao caos ordenado do fogo que o saúda, esta é a pura e ébria silenciosa arte de Sífiso: (112)Um imenso plural / Uma interrogação letal”.

 

Fotografia de Carl Blomberg

 

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