Cultura

Hô-bá-lá-lá | Sara Neves

 

Hô-bá-lá-lá 

Numa conversa sobre músicas que marcaram os anos 90, uma amiga disse não ter grande opinião sobre o assunto, uma vez que “nunca foi muito de ouvir música”. Para ela, uma constatação absolutamente casual, para mim um choque. Parece-me que, fora estes casos quase clínicos, a música é a expressão artística que está mais presente no nosso quotidiano. Em certos momentos, uma determinada música tem o poder de mudar o nosso dia, as escolhas que fazemos, o nosso estado de alma. Pode até trazer memórias sensitivas de outros tempos. Memórias individuais ou colectivas uma vez que tem a vantagem de poder ser apreciada com outros, com amigos, a dois, com desconhecidos. Concertos que enchem estádios, viagens de carro que se transformam em sessões de karaoke, bandas de garagem, festas de verão. No meio de um dia agitado, receber de alguém “ouve isto, fez-me pensar em ti” aproxima o que milhas separam.

 

 

A música brasileira é uma constante na minha vida. Na casa dos meus avós, onde os luxos eram poucos, os discos de Caetano e Elis tocavam repetidamente. A bossa nova foi a banda sonora para a minha melancolia clássica dos adolescentes. As rodas de samba o destino para noites de farra. E até hoje, para qualquer emergência, receito-me um retiro na voz de João Gilberto. 

Uma mudança para um país novo é sempre uma história por contar onde a personagem principal ainda não está totalmente definida. Essa sensação, no Rio foi diferente. Pela música, eu já estava um pouco lá, antes sequer de cruzar o oceano. 

 

 

Não é fácil falar sobre o Rio de Janeiro sem cair em clichês. Gringos apaixonados pela cidade maravilhosa são um clássico. Há quem diga que Deus é brasileiro, e até agora parece-me a teologia mais plausível. Os cenários de fundo, o Redentor, o pão de açúcar, o verde luxuriante. Os corpos morenos, sarados e cheirosos da praia, a música, a  dança, as frutas com nomes exóticos. Uma leveza, sentida até nas curvas da arquitectura de Niemeyer. Uma vida simples de sandália no pé, roupa leve e colorida, e uma predisposição para se deixar apaixonar. Uma grande metrópole onde, como que para um ritual, pessoas se juntam ao final do dia para apreciar e aplaudir essa coisa tão simples e garantida que é o pôr do sol. 

 

 

Cheguei ao Rio em Agosto de 2012 para um ano de intercâmbio da faculdade. Por toda a situação política e de eventos próximos – Jogos Olímpicos, Copa do Mundo – havia uma crença de que o amanhã seria melhor. O foco no futuro e fé no “Progresso” que se lê na bandeira eram altamente sedutores, especialmente para nós que, por condição da portugalidade, sofremos de saudade e nostalgia crónicas. 

 

 

Lembro-me de o meu pai me dizer: atenção, o Brasil não é como se vê nas novelas. De facto não é, e esta vida simples que vos descrevia não está à disposição de todos, muito embora o famoso jeitinho carioca às vezes nos faça acreditar que sim. É, por isso, fácil cairmos na ratoeira dos discursos de romantização da pobreza, também clássicos sobre a cidade, muitas vezes proferidos pelos mesmos gringos apaixonados que, como é tipico dos apaixonados, preferem, moldar a realidade para que os defeitos se tornarem qualidades. Por sabermos que a vida não é como nas novelas, preparamo-nos para lidar com o choque da pobreza. Curiosamente, o que realmente choca é o outro lado e o convívio tão próximo entre os dois. Na faculdade onde estudei, que partilha a colina com a favela da Rocinha, discutia-se qual o melhor lugar para um fim de semana de compras, se Nova Iorque ou Paris.

 

 

Pela sua morfologia, o Rio tem esta particularidade muito difícil de encontrar noutras cidades. Como a construção em colinas, morros, é difícil, estes espaços foram deixados vazios na expansão planeada da cidade. Ao contrário da maioria das cidades que vai expulsando os seus pobres para a periferia por falta de espaço, no Rio estes lugares vazios de difícil construção foram ocupados por auto-construções que criaram uma paisagem e  convivência únicas. 

 

 

A vida é a arte do encontro, como diz o poeta. Numa cidade de milhões, o Rio é de facto um lugar de encontros, entre o mar e a lagoa, a natureza e o “concreto”, o morro e o asfalto, onde é possível encontrar um amigo no meio de um bloco de Carnaval. 

Se cada lugar é uma história por contar, partir é deixar para trás capítulos, momentos que  abrimos mão de viver. Mas também é trazer sempre mais uma peça do nosso próprio puzzle. Do Rio, para além de muitas saudades e vontade de voltar, trago como lição que as coisas tendem a ser mais simples do que parecem, e mesmo quando não são, a gente pode sempre dar um jeitinho. Quem ouvir o hó-bá-lá-lá, Terá feliz o coração.

 

Fotografia de Sara Neves

 Arquitecta de profissão, Sara Neves é de Gondomar, estudou na Soares do Reis no Porto, e mais tarde, na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Durante o curso, fez intercâmbio de um ano no Rio de Janeiro. Desde 2017, vive em Macau onde trabalha num escritório de Arquitectura, principalmente em projectos de obra pública. 

O gosto pelas viagens começou cedo e hoje já visitou mais de 30 países, em 4 continentes e em diferentes tipos de viagens.

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