Cultura

Eternidade | Henrique Dória

Foto de Aziz Acharki na Unsplash

Não há maior desejo que o desejo de eternidade. É esse desejo que move os verdadeiros artistas, os verdadeiros escritores que tudo aceitam sacrificar por essa grande ilusão. A família, desprezada pela sua obsessão de beleza, sofre ou abandona-os. Os amigos chamam-lhes loucos, embora alguns os admirem. A solidão que era uma necessidade para perseguirem a beleza torna-se um vício. E se é verdade que o homem não pode conceber-se a si próprio sem o outro, é na solidão que eles alcançam o sentido da vida e a felicidade.

 

Mas esse desejo de eternidade, ainda assim, não é mais forte neles do que nos santos que, em vez da busca da beleza, procuravam alcançar a eternidade salvando a alma através da degradação do corpo. Uns praticavam o jejum, outros aplicavam em si mesmos instrumentos de tortura, uns flagelavam-se, outros faziam-se flagelar. Nestes talvez fosse difícil distinguir a dor do prazer do corpo, mas o que persistiu na lenda foi o sacrifício do corpo que tornava mais puro e mais grandioso o prazer da alma que, assim, mostrava a Deus o imenso amor do seu filho. 

 

O místico Orígenes, querendo anular o supremo prazer do corpo, seguiu à risca o conselho de Mateus que exaltava os eunucos dizendo e existem eunucos que se castraram a si próprios por causa do reino dos céus. Quem conseguir lugar para isto, que faça. Orígenes castrou-se a si próprio no que não foi compreendido nem aceite pelos contemporâneos que o marginalizaram da sua Igreja, nem pela posteridade que, por causa da autocastração, não o santificou, apesar de seguir apenas o conselho de outro santo evangelista.

 

Mas houve outros que não sabemos dizer se eram loucos de amor ou crentes de uma inocente ilusão ou, ainda, numa hipótese cínica, se eram simples mercadores que compravam a eternidade da alma com o sacrifício do corpo que Deus lhes dera. Esses eram os estilitas, capazes de passar trinta e sete anos sobre uma coluna, como o conseguiu Simão, o Velho. Subiam para uma plataforma no cimo da coluna e aí permaneciam enfrentando tudo, desde a fome, à sede, às chagas e às intempéries.

 

Claro que há necessidades de que o corpo não consegue prescindir por muito tempo: beber, comer, urinar, defecar. Mas tudo isso pode ser feito do alto de uma coluna. A água e a comida podem ser erguidas numa cesta puxada por uma corda para o cimo da coluna, e urinar e defecar podem daí, também, ser lançadas para a terra. Acumulavam-se as fezes em volta da coluna durante dezenas de anos? Não. Gentes piedosas e cheias de fé, querendo ter na sua posse algo que tivesse pertencido a um homem santo, recolhiam e guardavam as fezes num relicário, porque até as fezes de um santo são santas e podem obrar milagres.

 

Vinham de todo o império homens do povo, nobres, reis, imperadores, atraídos por verem e terem a palavra sábia de um santo e os seus conselhos, e nenhumas fezes se acumulavam à volta da coluna do estilita. A todos atendia, dava os seus piedosos conselhos e transmitia a sua fé. Só não queria que se aproximassem dele as mulheres. Elas tinham sido a causa do pecado original, por elas toda a humanidade tinha de expiar na dor esse primeiro pecado, por culpa sua o bom Deus teve de enviar o Seu próprio Filho e fazê-lo padecer, ser crucificado e conhecer a morte. A mulher era a fonte de todo o pecado e de todo o sofrimento. Por isso não as queria perto de si o estilita. 

 

Ou, talvez, não fosse por isso, talvez fosse porque a força que o fazia suportar tão grandes sacrifícios para expiação dos pecados seus e dos homens não fosse tão forte que fosse capaz de resistir à beleza e ao desejo de uma mulher, pois sabia ele, na sua imensa sabedoria, que a força da carne é maior do que dizem as escrituras.

 

Mas, um dia, à hora em que o sol acabava de se esconder e tingia o céu de sangue, surgiu do nada, sem que ele se  tivesse apercebido, sem um ruído ou um simples sopro do vento, uma figura que, à primeira vista, lhe pareceu um homem mas, depois, num olhar de espanto mais atento, percebeu ser uma mulher, de rosto duro, largo e esquálido, olhos iguais a poços profundos, queixo lançado em desafio para a frente, coberta por um manto branco imaculado na parte superior do tronco e na cabeça, e azul cobalto sujo da cintura até aos joelhos, deixando descoberta a metade inferior das pernas, dolorosamente  magras e musculadas, e dos braços que erguiam umas mãos ameaçadoras quais garras de um tigre. Uma segurando um cajado, outra agarrando o ramo de uma árvore ressequida.

 

E alma do estilita, tão cheia da força que lhe era dada pela fé em Deus e pelo sacrifício, tremeu pela primeira vez imaginando que aquele espetro seria o próprio Satanás, e não resistiu a perguntar:

 

– Quem és tu?

 

– Nada e ninguém, respondeu-lhe o espetro.

 

– Então por que vens perturbar a minha entrega a Deus?

 

– Só venho dizer-te a verdade a ti que estás a levar a aniquilação  do corpo para alcançares uma absurda eternidade.

 

– Quem és tu para me dizeres onde está a verdade? Só o Eterno conhece a verdade.

 

– A verdade é que esse Deus em que acreditas e a quem te entregas para alcançares a eternidade é uma mentira. Ele apenas existe na fraca mente dos homens e morre com a morte de cada humano que Nele acredita.

 

– Mentes. Se eu O amo é porque Ele existe eternamente. Só o amor alcança a eternidade.

 

– És louco. Ele não é mais do que a grande ilusão que os homens inventaram. Eu que sou o Nada, eu sim tenho poder sobre Deus porque tenho poder sobre ti e, aniquilando-te, aniquilarei também uma parte de Deus. Eu sou a Verdade, eu sou quem tudo pode e tudo manda, o Nada. E em verdade te digo: tudo que é irá sofrer mortes sucessivas até à derradeira morte. Olha estas pedras à tua volta. Pensarás que elas estão mortas. E estão. Mas por elas outras mortes eu hei de fazer passar até se tornarem numa luz frágil e fria, uma luz morta em que tudo o que é se dissolverá para ser apenas morte.

 

– Afasta-te de mim demónio. Não sucumbirei à tua mentira. Só o Senhor é a verdade e a vida. Só Ele dominará a morte.

 

– Outra ilusão tua. Não há demónio a não ser na mente dos homens e, como Deus, o demónio há de morrer. Nada me dominará, nem Deus nem o demónio. Vive enquanto eu te permito. Vês aquelas jovens belas e nuas? Desce dessa coluna e vem aceitar os seus beijos e os seus encantos. Só neles está a tua salvação porque é neles que está o sentido da vida. Elas sim, são divinas porque são a verdade e a beleza que tudo tornam divino.

 

Pela primeira vez em tantos anos de fé e de certezas, o estilita sentiu o calafrio da dúvida. Mas esse calafrio foi desaparecendo à medida que aqueles belos demónios nus se foram aproximando até abraçarem a coluna do sacrifício. Então, o estilita não pode mais resistir ao chamamento da beleza. Desceu da coluna e, por um instante, abraçou e foi abraçado pela eternidade.

 

HENRIQUE DÓRIA

 

Fotografia de Henrique Dória

BIOGRAFIA: É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da Rádio Transforma.

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