Cultura

Dois poemas inéditos | Alberto Pucheu

 

 NÃO ANDAMOS SOZINHOS

 

Quando eu piso andando sobre a terra,

não é apenas o meu rastro que fica

marcado, mas o encontro do meu pé

com o movimento que a terra realiza 

ao receber o meu pisar. Esse rastro, 

que não é só meu, é rastro da terra 

a se acomodar à forma do meu peso 

contra o chão. Ninguém anda sozinho, 

isso é certo. Andamos com a terra, 

com o vento, com a chuva, com o sol, 

com os bichos, com os fantasmas,

apenas não andamos sozinhos.

 

Não andamos sozinhos, isso é bem certo,

andamos com quatro mil, duzentos e cinquenta mortos

nos agarrando, querendo nos levar,

andamos com quinhentos e oitenta e um mil

mortos nos agarrando, querendo nos levar, 

andamos com quatro milhões, quinhentos e quarenta mil

mortos nos agarrando, querendo nos levar,

andamos com todos esses mortos, mais 

ou menos próximos, com seus corpos 

ainda quentes querendo nos levar. Somos 

nós os rastros e os fantasmas desses mortos, 

cujos corpos, insistentemente, teimam 

em nos pisar, em fazer, de nossos corpos, 

a terra em que, escavando, querem se sepultar.

 

***

 

 

ANCESTRAIS DE MORADIA

 

Por aqui, por essa casa 

no meio da selva, incrustada

no vale, onde a neblina

se confunde pelas manhãs

com a fumaça do café,

e ambas esbarram nas paredes

da cozinha deixando seus vapores

cheirosos, passaram negros, 

indígenas e camponeses brancos, 

pessoas do Nordeste, ou do Norte

como elas chamavam o lugar 

de onde vinham, que me contavam 

histórias de seus muitos filhos 

que não vingaram, enquanto os vivos

eram meus amigos de todas

as horas. Por aqui passaram 

pessoas de Minas, que plantavam 

a terra colhendo mandiocas, 

abóboras, milhos e vegetais,

que ralavam as abóboras 

nas próprias pedras do terreno,

por aqui passaram pessoas, 

nascidas há tempos na região, 

que domavam cavalos

conversando com eles,

que cortavam amplas pastagens

à foice e me ensinaram andar 

de noite pelas montanhas.

Por aqui passaram famílias

inteiras, silenciosas e tagarelas 

à beira do fogão a lenha,

famílias pequenas e famílias

imensas, de risos e tristezas,

de vivos e mortos, de fantasmas 

ditos, sentidos e vistos. Por aqui 

passaram pessoas que ficaram 

cegas no trabalho, que se acidentaram

de carro e de moto na estrada, 

que morreram de picada de cobra 

no mato, de tuberculose

na cama, de esquecimento

em qualquer lugar, que tomavam 

álcool pelas vendas e barracas

das redondezas, que andavam 

trôpegas pelo chão de terra 

empedrado, que viraram pastores 

evangélicos, que amavam e, às vezes,

matavam por aquilo que chamavam

de honra, que morreram 

de facada dada por quem também

aqui morara anteriormente.

Por essa casa no meio da selva, 

incrustada no vale, passaram 

décadas e séculos de meus 

ancestrais de moradia, famílias

trabalhadoras com suas roupas 

rotas, peles curtidas a sol e chuva 

e mãos calejadas sempre prontas 

para o que quer que acontecesse.

Por aqui, por essa casa, passaram 

coveiros que enterraram seus mortos 

e os dos outros nos cemitérios 

das igrejas mais próximas,

por aqui passaram parteiras

que ajudaram as mulheres

dos três lados das montanhas

a colocar seus bebês no mundo.

Por aqui passaram muitas pessoas 

antes de mim, que permanecem 

ainda hoje com suas vozes, 

corpos e histórias saindo 

continuamente pelas paredes 

ou pelas portas, passeando 

muitas vezes para dentro de mim.

 

 

 

Professor de Teoria Literária da UFRJ, Alberto Pucheu publica livros de poemas e ensaios. Dentre os primeiros, A fronteira desguarnecida; poesia reunida 1993-2007, mais cotidiano que o cotidiano, Para quê poetas em tempos de terrorismos? (publicado também em Portugal), Poemas para serem lidos nas posses de presidentes e vidas rasteiras, este em 2020, pela Editora Cult. Como ensaísta, publicou, entre outros, Pelo colorido, para além do cinzento; a literatura e seus entornos interventivos, Giorgio Agamben: poesia, filosofia, crítica, O amante da literatura, Kafka poeta, e apoesia contemporânea e Que porra é essa – poesia? e, em 2020, Espantografias: entre poesia, filosofia e política. Organizou Não pararei de gritar, de Carlos de Assumpção, com quem fez um documentário. Realizou outros documentários com os poetas Leonardo Fróes e Vicente Franz Cecim, além da série Autobiografias poético-políticas, com André Luiz Pinto, Tatiana Pequeno, Bruna Mitrano e Danielle Magalhães. Foi o curador do primeiro número da revista Cult Antologia Poética.

 

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