Cultura

A máquina de guerra | Clécio Branco

Uma máquina de guerra é uma questão de vida. É o instinto de sobrevivência que inventa a máquina de guerra. Sempre que a vida se encontra encurralada dentro de um sistema fechado, onde situações intoleráveis subjugam a vida, impedindo-o de seguir a sua meta de expansão, uma máquina de guerra será inventada.

 

Por isso é correto afirmar que as máquinas de guerra não derramam sangue e não matam ninguém. Sendo elas mesmas a luta pela vida, como poderia ser concebida como máquina de matar? 

 

Uma máquina de guerra é uma estratégia política de engendramentos de fuga – fuga do morrer. Assim como na natureza, onde os animais inventam seus modos de escapar – camuflagens, mimetismos e desterritorializações –, na vida social os humanos criam as suas estratégias de sobrevivência.

 

A criação de uma máquina de guerra é precedida de uma situação intolerável – o intolerável é a condição insuportável em que uma relação de poder domina a vida dos indivíduos. Resistir a isso é uma condição para sobreviver. Direito natural, portanto.

 

As peças da máquina de guerra são as linhas de fuga, suas bifurcações, suas camuflagens e mimeses por onde o combatente se esquiva da opressão que leva à morte. Não se trata da morte biológica apenas, mas de todas as mortes, daquelas menos perceptíveis pelos sentidos.

 

Sempre que uma potência de vida deixa de ser afirmada, sempre que um indivíduo se afasta daquilo que pode, existe nisso uma morte. São as sucessivas mortes – pequenos espaçamentos de não-vida – que conduzem os indivíduos à morte biológica.

 

Pessoas morrem todo dia ainda que não tombem fisicamente. Milhares de crianças morrem em salas-de-aulas insipidas, ainda que voltem para casa com suas mochilas nas costas.

 

Famílias inteiras mortas em suas crenças limitantes. Nesse sentido podemos dizer que as instituições, muitas vezes, fazem morrer. Não há nada mais mortal do que uma organização de órgãos que submetem a vida a uma pirâmide de burocratização – da família aos espaços sociais mais abertos, como bem diz Foucault: “agora você não está mais na escola, está na igreja”, etc.

 

Muito provavelmente, Kafka é o escritor que melhor descreve essa realidade. Ele brinca inventando suas pequenas máquinas guerra.  Elabora planos de fuga com seus personagens, que sempre se encontram em situações intoleráveis. Todas as situações em que Kafka coloca seus personagens são “metáforas da escravidão do homem aos laços sociais” – da família à repartição pública. Tanto no caso do empregado comercial que se torna um inseto, em A metamorfose, quanto no do agrimensor, em O castelo, trata-se da mesma condição do intolerável – uma situação inexplicável se instala na vida dos sujeitos. Todas as saídas se encontram bloqueadas. O agrimensor, por exemplo, nunca encontra as respostas que precisa para esclarecer sua questão funcional.

 

Da mesma forma, Joseph K. nunca conheceu as razões das investigações e de sua condenação em O processo. Essas condições intoleráveis ficcionais são lúcidas metáforas de circunstâncias semelhantes às quais os seres humanos são constantemente submetidos em suas vidas.

 

Na literatura, são os personagens que se encontram sem saídas. Mas todos eles são representações de indivíduos reais em suas vivências reais. Na casa, na igreja, nas relações amorosas, nas repartições burocratizadas, esses indivíduos são lançados em situações em que o desejo se encontra impedido de afirmação. Kafka soube como ninguém dizer dessa condição.

 

Não há nada mais impotente do que depender de um bando de burocratas que se coloca na posição de decidir acerca da vida de muitos. Pior: quando o sistema guarda segredos sobre os passos de cada decisão, como, por exemplo, em momentos de ditaduras, tudo isso se agrava numa sociedade.

 

Nada mais intolerável do que um(a) pai/mãe autoritário(a) que submeta o desejo dos filhos ao seu arbítrio, é a decretada a sentença “eu pago eu mando”. 

 

Nada mais mesquinho e ultrapassado do que as religiões que se reúnem em comissões para julgar e punir supostos pecados de suas ovelhinhas – a metáfora da ovelha já constitui um intolerável.

 

Existe o intolerável das salas de aulas, o intolerável do hospital, o intolerável da repartição pública e o intolerável de dentro de casa. É a vida que se encontra em riscos de extinção.

 

Mas quando uma máquina de guerra se instala, ainda que pequena, é a vida que começa a florescer. O inseto de A metamorfose é a grande escapada do personagem que não suporta mais a tirania da vida familiar e social. É o personagem Kafka que está sendo salvo do intolerável que se instala. Toda a literatura de Kafka é a sua máquina de guerra. Para que o fardo da vida, sob o jugo das arbitrariedades possa ser mais suave, é necessário estar embriagado como diz Charles Baudelaire em seu poema “Embriagai-vos”. “Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor”, contanto que vos embriagueis.

 

No caso de Kafka, é ele que se embriaga com seus personagens ao denunciar o poder, com ironia e deboche. As situações que Kafka cria para os seus personagens são a forma dele dizer “é assim que vejo tudo isso”. De forma debochada, diz em O processo que a burocracia é uma forma de enfraquecer e entristecer as pessoas, de impedir que elas cuidem de suas questões, de afastá-las de suas próprias vidas e de seus interesses, ou seja, um meio cruel de tomar o controle das vidas das pessoas – nada mais cruel e injusto do que fazer esperar indefinidamente por justiça e ela não vir.

 

No atelier do pintor dos magistrados, Titorelli – que funciona dentro do tribunal –, Kafka mostra que ali há um agente que é muito mais que um pintor. Titorelli é também parte do tribunal, é um apêndice da justiça. Ele pinta os magistrados maiores do que o são e dá o tom às imagens performáticas do poder. Muitos poderão concluir que Kafka é um pessimista depressivo e que, nesse sentido, pode ser perigoso ler o que ele escreveu. Mas não é. Os personagens de Kafka não sofrem de um desejo de autoaniquilação, muito pelo contrário, eles são o desejo de vida do autor. São seus meios para continuar vivendo. As saídas são suas linhas de fuga inesperadas, cujo método é o deboche. 

 

Nada poderia ser mais debochado que fazer um homem-inseto sucumbir escondido dentro da casa de uma família idealista burguesa. Eis uma máquina de guerra que arranca risos e, ao mesmo tempo em que denuncia o poder, faz o autor se embriagar de vida, embriagando leitores onde quer que se encontrem.

 

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

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