Dois poemas do livro “passo os meses na biblioteca do ccbb lendo livros de história natural” (2019) | Bruno Domingues Machado
Frequentemente vistas como humildes e solitárias
uma pesquisa mostrou que não:
não:
realizada em biofilmes
“placas” bacterianas que formam o tártaro
(o que se aloja nos dentes) uma pesquisa mostrou que não:
não: as bactérias têm um sistema de comunicação
muito mais sofisticado do que o imaginado. São capazes
de resolver conflitos dentro de uma comunidade.
Assim como as sociedades humanas: foi descoberto
quando as placas bacterianas crescem até um certo tamanho, as células
de fora, que têm acesso irrestrito aos nutrientes do ambiente externo,
param de crescer para permitir que os nutrientes
sejam enviados também para as bactérias mais ao centro da colônia.
Assim, a estrutura se mantém viva e resiste aos antibióticos:
essas oscilações no tamanho do biofilme requerem
grande coordenação entre as bactérias periféricas e as centrais
o que levou os pesquisadores a imaginar que essa comunicação
era feita de forma eletroquímica. Essa descoberta
muda não só a maneira como pensamos as bactérias,
mas também a maneira como pensamos nosso cérebro,
declarou Gürol Süel, líder do projeto. Todos os nossos sentidos,
comportamento e inteligência emergem
de comunicações elétricas entre neurônios
no cérebro mediadas por canais iônicos. Agora,
nós descobrimos que bactérias usam canais iônicos
similares para se comunicar e resolver casos de stress
metabólicos. Nossa descoberta sugere que desordens neurológicas
desencadeadas por stress metabólicos
podem ter tido uma origem ancestral
através de bactérias, e podem assim nos dar uma nova perspectiva
sobre como tratar tais condições, completou Gürol Süel.
Os experimentos revelaram que as oscilações no tamanho
da membrana conduziam sinais elétricos de longo alcance
dentro do biofilme: conforme a energia se propagava, a atividade
metabólica das bactérias era coordenada; quando os canais iônicos
eram deletados das bactérias, a placa não era capaz de conduzir
os sinais elétricos e se desordenava. As comunidades bacterianas
parecem funcionar como verdadeiros cérebros prototípicos
disse um dos membros da pesquisa, que pediu para não ser identificado.
Hadeano.
A Terra e nada calmo.
12.000 °C, um oceano de magma.
A aproximação de um planeta
(Téia) a 15 km/s (“20 vezes mais rápido que uma bala”,
informa a voz em off do locutor). A força da sua gravidade
deforma a superfície (ainda toda líquida, ou já com formações sólidas?,
eu me pergunto, coçando a canela). Téia se choca com a Terra
o impacto liquefaz os dois planetas
trilhões de toneladas de poeira
e detrito se erguem ao céu, mil anos depois
esses detritos se tornam um anel de rochas
que anelam a Terra. Forma-se a lua.
1 bilhão de anos depois: já estamos no Arqueano
a Terra começa a esfriar. Vapor de água e gases ácidos
são liberados por vulcões, a computação gráfica
do documentário do Discovery Channel mostra vulcões
liberando vapor de água e gases. Uma atmosfera densa e vaporosa
com pressões cem vezes maiores do que a de hoje.
“Terreno ainda muito mal esculpido pela erosão”.
Troco de canal. Políticos falam.
Me vem à cabeça não um teatro, mas o cinema.
Mais especificamente um recurso cinematográfico: aquela
típica tomada que aparece nos filmes
simples indicação de passagem de uma cena à outra.
Tem a cena A, o diretor quer passar à cena C
mas não basta passar direto da A para a C:
é preciso inserir outra cena, normalmente breve,
a cena B
que intermedia A e C. É desse modo,
com esse recurso, que a cena de
uma conversa entre dois amigos num bar à noite
é cortada pela imagem muito breve da cidade amanhecendo,
indicando a passagem de tempo. É desse modo
que a cena de alguém
saindo de casa para ir a uma consulta médica
é cortada pela tomada muito breve
da imagem do edifício onde supostamente fica
o consultório em que o personagem vai se consultar.
E assim sucessivamente, essa tentação quase irresistível
de apaziguar o choque abrupto de duas cenas.
Até que vem Andy Warhol.
Ele liga a sua câmera no quadragésimo primeiro andar do Time-Life Building,
e dali enquadra o Empire State Building,
das 20h46 do dia 25 de Julho de 1964
até as 2h42 da madrugada do dia seguinte, pronto, eis o filme
o enquadramento
em plano único sem corte
8 horas seguidas de um dia da fachada de um edifício.
O lugar das cenas decorativas, sufocadas entre uma cena e outra:
Andy Warhol ocupa esse lugar. Ele ocupa
o lugar de possibilidade do sufocamento cinematográfico,
que, ocupado, se torna fresta. Ele escancara a fresta
até a maior extensão possível
estendendo-a por toda a duração do filme
resistindo à passagem de cena, resistindo
que a imagem acabe e o cinema tenha fim.
O julgamento de Dilma Roussef no processo de Impeachment
encontra subsistência aí: enquanto os articuladores do golpe tagarelam
as mesmas acusações que não se sustentam por mais de 10 segundos,
a golpeada escolhe responder a cada uma num julgamento
que não vai mudar seu veredicto. Por 12 horas,
por intermináveis 12 horas,
impede que a democracia tenha fim.
Bruno Domingues Machado nasceu em 1983 no Rio de Janeiro. É doutor em Teoria Literária pela UFRJ. Como poeta, publicou no ano de 2019 o livro “passo os meses na biblioteca do ccbb lendo livros de história natural”, pela editora Patuá.