Cultura

Às vésperas do suicídio | Demétrio Panarotto

Ilustração de Victor Zanini

Percebam o olhar caindo do rosto na direção oposta àquela que ele esperava quando firmou o olho para ver a cena na tela. Ao firmar o olho ele acabou por filmar algo que retornaria às memórias anos mais tarde, com a vida pendendo para a morte, sentado em uma mesa na parte externa do sempre elegante Grand Café, no Boulevard dos Capuccinos, à espera da vítima que, ao prever, imagino que tenha sido por conta disso, não apareceu e nem enviou mensagens justificando o motivo da ausência. Ele, com o peso da vida de um ancião sobre o corpo e as emoções, moeu e remoeu o quanto pôde os desgostos, as andanças esquemáticas, cheias de prevenções e de guarda-chuvas debaixo do braço em dias mais ou menos nublados, sempre tentando lidar com o imponderável, com aquilo que ele não conseguia controlar.

Sentiu que devia mandar às favas os metodismos de uma vida regrada e, num decair de consciência, levantou-se da mesa com destreza e, a poucos metros de onde estava sentado, já na calçada, sacou a arma da cintura e atirou em uma pessoa que andava em um ritmo mais lento que as demais e parecia zombar do mundo. Ele nunca soube zombar do mundo, mas é improvável que este tenha sido o motivo da ação, talvez a vítima fosse parecida com o convidado, aquele que não veio, ou quem sabe o próprio.

 

Sem efemérides ele havia se tornado refém da montagem submissa da narrativa e da necessidade da ação dramática que deixou os transeuntes que não paravam de passar em estado de amnésia.

 

Os corpos caem e as pessoas passam.

 

Ao fazermos um corte e posicionarmos a câmera para captar a ação do outro lado, bem em frente ao café, em uma loja de artigos para presentes, víamos Willian — passamos a chamá-lo assim agora —, em primeiro plano, a vítima já a seus pés e, ao fundo, o garçom que o havia atendido com o braço esticado segurando a conta na mão.

 

O entrecruzar de olhares entre o assassino e o garçom se traduziu na última imagem da cena do crime captada e congelada no seu ponto de erupção. Daí por diante o montador optou por mostrar, amenizando com o desenho de som o estardalhaço de parte dos passantes, algumas pombas que disputavam espaços com as pernas dos transeuntes. Acho que era milho de pipoca que víamos no chão.

 

Eleonora ainda esperou descer os créditos na tela. Levantou-se quando as luzes laterais foram acessas e indicaram a saída. Acomodou a bolsa no ombro, recolheu um ou outro papel de bala, colocou-os na lixeira na passagem e se retirou lentamente da sala de cinema que ficava na Avenida Liberdade, a pouco mais de um quilometro do café; caminhou lentamente até o espaço que, desde muito, era frequentado por personagens que se diziam amantes da sétima arte.

 

Depois de avistá-lo, como se olhasse mais que uma vez à procura de como devia fazer para ser atendida — para constar, nunca havia frequentado o local —, dirigiu-se à única mesa que estava disponível, oposta à cena que acabara de ver no cinema.

 

Eleonora queria observar a tudo a partir de uma panorâmica, projetando primeiro o moço sentado, logo em seguida o movimento que o levou a se levantar e a atirar em um transeunte. Queria, acomodando seus desejos, brincar com os detalhes da história que a tela de cinema não nos oferece.

 

Coisas da imaginação.

 

Logo após ter acomodado a bolsa e enquanto se preparava para se sentar, o garçom a avisou que aquela mesa estava reservada. Momento em que o rapaz, com um caderninho de notas na mão, percebeu que os clientes da mesa sete tinham acabado de pagar a conta, deixando os valores no pires sobre a mesa. O garçom brincou com a caneta na base entre a cabeça e a orelha, e fez sinal com o dedo se poderia ser aquela. Foi um jogo de olhares que se esbarraram na simetria dos fatos. Eleonora, como que se não pensasse duas vezes, disse que sim.

 

Abandonava, por conta da ocasião, o plano de ser uma figurante e agora se sentaria na mesa de onde partira a ação do crime.

 

Era uma mudança de mesa, mas era também uma mudança de sensações.

 

Em vez de se dirigir até a mesa pelo meio das demais (precisaria para isso pedir licença aos clientes), retirou-se por fora, dando uma volta maior do que, supostamente, o necessário, uma panorâmica que necessitava de um rebatedor de luz para que ficasse perfeita.

 

Ao sentar-se e depois de ter feito o pedido, ergueu os olhos para dali ter uma dimensão maior das pessoas que se encontravam sentadas e ocupando visualmente o mesmo espaço, bem como das pessoas que circulavam pelo calçadão, que compunha desde muito tempo a história daquele lugar.

 

Ela não tinha experiência alguma em set de filmagens. Mas dentro de si transbordou a impressão de que aquela gente toda, como se estivesse à espera dela, parecia tensa demais para se passar por figurante.

 

Ela agora tinha a mesma visão que o assassino teve quando se levantou e alvejou um perdido que por ali passava.

 

Bateu uma sensação de importância, sem entender ao certo o motivo pelo qual havia pensado daquele modo.

 

Enfim estava ali, e a ideia era esperar pelo momento certo.

 

Encontrava-se, como se estivesse sendo conduzida em cena, em um dos vários locais que por ora consideramos de espera; por quem esperamos e quem espera por nós nessas horas? Pensou ela a esmo.

 

Quando um dos rostos, de perfil, brotou diante dos demais, ela se sentiu reconfortada por perceber nele algum tipo de proximidade.

 

Isso tudo aconteceu em confluência com o garçom acomodando sobre a mesa o café com um biscoitinho e o copinho de água mineral.  O moço, depois de fazer um aceno com o rosto, para se certificar de que estava tudo do agrado da cliente, pediu licença e se retirou.

 

Foi no primeiro gole de café que ela, mentalmente, sobrepôs os rostos em sua cabeça e a certeza anulou a desconfiança.

 

À sua frente estava o senhor que havia cometido o crime e que antes de cometê-lo estava sentado no mesmo lugar em que ela se encontrava agora.

 

Só podia ser ele.

 

Não descartou a ideia de que pudesse ser um ator que gostava de frequentar o local em que havia se deixado filmar.

 

Um sósia, talvez.

 

Os balões de fala, esfumaçando o cérebro, permaneceram por alguns segundos sem serem preenchidos.

 

Ela sacudiu os ombros como se tivesse tirado ou incorporado um encosto e desferiu uma onomatopeia de espanto; ainda, mexeu com a bunda na cadeira, algo de modo involuntário e sem fazer alarido demais. Se recompôs, retirou da bolsa um livro e, com um olho nas páginas e o outro se fazendo de perdido na paisagem, passou a observá-lo.

 

Não muito tempo depois o garçom se aproxima dela e a avisa que um suposto convidado acabara de enviar uma mensagem ao bar dizendo que não viria ao encontro. Eleonora até fez menção de perguntar ao moço do que se tratava, afinal, ela não estava à espera de alguém, mas, no improviso da cena, agradeceu a gentileza e pediu mais um café, coisa que não tinha o costume de fazer. Tomar um café à tarde já era motivo para ter dificuldades em dormir à noite. Com dois cafés provavelmente colocaria em dia as leituras madrugada a dentro.

 

Após tomá-lo, e com a mira engatilhada, pediu a conta e, tomada por certa ansiedade — enquanto o garçom sumia desfilando no salão a dentro do estabelecimento —, abriu a bolsa para se certificar se tinha algumas moedas. Depois de revirá-la, mesmo que fosse uma bolsa pequena, deparou-se com algo estranho de que não fazia ideia do que era. Somente quando puxou uma parte para fora e colocou o olho praticamente dentro é que se certificou de que era um revólver.

 

Como assim, um revólver?

 

Nunca havia andado armada na vida.

 

Nunca havia pegado em uma arma antes.

 

Acomodou-o o mais rápido que pôde no fundo da bolsa puxando o restante dos pertences por cima.

 

A sua mira sorriu maliciosamente.

 

Sentiu uma sensação estranha, como se as duas mãos de um estranho lhe apertassem a garganta.

 

Tossiu para se desgrudar da sensação de asfixia e o suficiente para chamar a atenção de uma ou outra pessoa que ainda não a havia enquadrado desde que chegara.

 

Parecia um momento de transição. Repleto de cenas desnecessárias.

 

O fato é que, a partir daquela espera, carregava consigo algo mais do que uma arma.

 

Ter ou não ter uma arma na bolsa é uma mudança do tamanho de uma vida. Enquanto não carregamos mortes em nosso currículo, não sentimos a necessidade de tirá-las. Acho que ela havia ouvido essa frase em algum filme; e se perguntassem a ela qual, ela se esquivaria por não lembrar.

 

Mexeu na bolsa mais que uma vez.

 

Havia acusado o golpe.

 

Em um pequeno espaço de tempo foi acometida de várias sensações que a embrulhavam, como um pacotinho de presentes com um lacinho de fitas, e a entregavam aos passantes.

 

Com um sorriso amargo no rosto disse para consigo mesma, ”Sim, claro, Orlando não vem mais”. Momento em que percebeu que havia dado nome a sua suposta companhia de café do meio da tarde em diante.

 

 Não apenas isso, havia incorporado o papel, e numa crise auspiciosa se levantou da mesa puxando a bolsa para perto do corpo e colocando a outra mão dentro.

 

Num instante tomou o espaço da calçada fazendo com que as pombas, três ou quatro mais confiadas, levantassem voo rapidamente.

 

Sacou a arma da bolsa e, antes que pudesse atentar a seu estado de incitação teatral, foi alvejada no peito por um tiro que partiu do alto de um dos prédios.

 

Se houvesse uma câmera, em contra-plongée, que tivesse procurado de onde o tiro havia partido, provavelmente veríamos um dos atiradores posicionados no telhado, com sua arma de mira a laser e com o seu boné virado para trás, num Clichê maiúsculo do cinema. Veríamos um apenas, mas ficaríamos com a sensação de ter visto vários.

 

A cabeça sumiria rapidamente para deixar de ser alvo e, mera suposição, se da rua alguém gritasse que foi um drone, ninguém faria muita objeção.

 

A vida era um percurso de antemão cadavérico.

 

A imagem seguinte já não mostrava mais — somente os figurantes a viram —, a moça deitada no chão, de costas, com uma perna estendida e a outra levemente dobrada, uma das mãos sobre o corpo e a outra, esticada na perpendicular, segurando a arma na mão. Ah, a bolsa caída ao lado.

 

(“Não mostrar” é algo que qualquer professor de roteiro diz que não deve estar presente no texto. Usar esse tipo de recurso para explicar o imbróglio textual é algo que qualquer professor de literatura diz que o empobrece.)

 

A imagem agora se constituía, em uma elipse de tempo rápida e bem sucedida, de uma marcação do corpo dela, como num filme policial, nas pedras do calçadão, borrada pelas pombas a ocuparem o mesmo espaço.

Isso tudo para criar um clima de suspense.

 

A imagem do café, numa corredeira do tempo que se refazia em estalos, vista de perto ou à distância, era de uma tarde comum como outra qualquer. As mesas a essa altura estavam todas tomadas e o garçom que atendia uma das partes cenográficas se movimentava rapidamente para dar conta de todos os pedidos.

 

Otávio não esperou as luzes se acenderem.

 

Levantou-se rápido e foi esbarrando nas pessoas e pedindo desculpas antes que esbarrasse, mesmo sabendo que voltaria a acontecer.

 

A sala, para uma tarde de quarta-feira, tinha mais expectadores do que o habitual.

 

Otávio, em carne, pelo e osso, todos rangendo, queria sair da sala de cinema, se pudesse, correndo.

 

O dispositivo de pavor tomou conta dele quando percebeu que estava sentado no mesmo lugar em que Eleonora se encontrava na exibição anterior.

 

 A cena dele vendo a cara de Eleonora na tela se traduzia em uma mão cheia de pipocas parada, a pouca distância, perto da boca.

 

A cena durou sete segundos, assim, contados segurando os ponteiros do relógio para não desmontarem facilmente o pavor que tomava conta do rosto do jovem que, por mero ímpeto, entrou na sala de cinema, depois do trabalho, numa tarde de poucas coisas por fazer.

 

Em pouco tempo, na confluência da sequência anterior, Otávio, nervoso e desconfiado, levava à boca a mão cheia de pipocas deixando uma quantidade considerável cair e se espalhar pela barba, pela roupa e pelo chão.

 

Ao chegar na saída, após um certo alarido, bem próximo à bilheteria, disse à moça, de quem havia recebido o bilhete na entrada, que não havia nenhum tipo de referência na internet sobre o filme que acabara de assistir.

 

 — Explique-me, por favor, que merda é essa, como é que não há divulgação sobre o filme?

 

A moça respondeu sorrindo:

 

— O filme ainda está sendo rodado!

 

Otávio sorriu de volta aquele sorriso amarelo pós-verde, pós-pancada na panturrilha.

 

Uma cor fobia qualquer.

 

— Agora sim, entendi lhufas, disse ele.

 

— Já não temos poder sobre nossas vidas, senhor Otávio, se é que tivemos em algum momento, e como se fosse uma espécie de assistente de direção emendou:

 

 — E, pelo roteiro, o senhor deve, sem se demorar muito, se dirigir até o Grand Café — no Boul… o senhor sabe o endereço —, e escolher uma mesa pra se sentar.

 

— Você só pode estar brincando comigo, disse ele, eu não faço a mínima ideia de onde fica esse lugar… ah, e como tu sabe o meu nome?

 

Antes que pudesse continuar, a moça lhe interrompeu dizendo:

 

— Naturalmente o senhor — e nem a gente sabe quais são as confluências do zodíaco que criam esses acasos — vai ser levado até lá.

 

A moça, sem ser indelicada, pediu licença dizendo que precisava preparar a sala para a próxima sessão.

 

Ah, e já se retirando respondeu:

 

— O nome no crachá.

 

Otávio pensou em fazer um escândalo e pedir os valores da entrada de volta, ao mesmo tempo lembrou que as sessões, em todas as primeiras quartas do mês, eram gratuitas, e sorriu.

 

Mesmo que conjecturasse, no atropelo de seu pensar, que tinha direito a algum tipo de satisfação ou de indenização, resolveu deixar tudo para trás e seguir o seu trajeto que, em outro dia qualquer, seria de volta para a região onde mora mais ao norte da cidade. Algo que não era longe, mas que requeria algum tipo de estratégia para conectar o horário do metrô ao do ônibus e não ficar no trânsito mais tempo do que o necessário. No entanto — e vocês que estão lendo já imaginam o que vai acontecer —, Otávio foi tomado por um grau bem engendrado de curiosidade.

 

A curiosidade quando potencializada pela energia do corpo e não da mente é mãe de todas as desgraças.

 

 Daí em diante, já dento do carro, é como se não precisasse ter dito ao motorista do aplicativo onde gostaria de ir.

 

O motorista, como boa parte deles faz, confirmou o endereço por confirmar, chamou-o pelo nome, ofereceu umas balinhas de menta e, num tom de cordialidade e com um sorriso maroto no rosto, conduziu o carro até o local combinado.

 

Otávio, bem provável que por conta do sorriso do motorista, voltou a olhar para o peito à procura do crachá, mesmo que tivesse tirado na saída do cinema e colocado no bolso da calça.

 

O motorista deu uma volta maior do que a necessária para poder deixar o passageiro na rua acima do café. Poderia, se fizesse o roteiro direto, ter ido pela lateral, chegaria mais rápido ao seu destino.

 

Depois que parou o carro em um local improvisado e com o passageiro já para o lado de fora, o motorista indicou com a mão onde o café se localizava e se despediu dizendo para Otávio que, mesmo que não tivesse tempo nem condições de frequentar, sempre gostou muito de cinema.

 

Otávio — distraído por conta das conjecturas fílmicas que lhe explodiam a cabeça e procurando se não havia atiradores no alto dos edifícios — só processou aquilo que o motorista havia dito com um certo retardo e já caminhando pelo calçadão. Fez menção de voltar, parou no meio do caminho, olhou por cima do ombro e voltou a se concentrar no percurso.

 

O café estava logo ali adiante.

 

Imaginou isso pela quantidade de pessoas que se aglomeravam nas imediações, muito mais do que em qualquer outro lugar.

 

Havia naquele dia uma fila de espera.

 

Todavia, quando se aproximou de um cardápio exposto no lado de fora para se certificar como a casa funcionava, o garçom o cumprimentou:

 

— Que bom que o senhor chegou, já estávamos todos a sua espera.

 

— Todos quem? Retrucou.

 

— Todos é maneira de dizer, senhor.

 

E prontamente lhe encaminhou para a mesa reservada e apresentou o cardápio perguntando se queria algo para comer ou se podia servir o de sempre.

 

Otávio, sem pestanejar, pediu o de sempre sem saber do que se tratava o suposto “de sempre”.

 

Sentou-se e não demorou muito para se sentir como se estivesse em casa. Situação atípica em lugares como esse. Otávio normalmente se sentiria desconfortável e louco de vontade de sair correndo.

 

Como vocês devem imaginar, ao seu lado, em uma das mesas, estava sentado Willian. Mais adiante, em outra, Eleonora.

 

Sentia naquele momento, depois que os viu, algum tipo de intimidade que o abraçava.

 

Havia ali configurado, no agora ator da própria vida, uma vontade de se levantar, ir cumprimentá-los e perguntar por coisas do dia a dia, como se fossem amigos de longa data.

 

Ao mesmo tempo Otávio considerou: se realmente se tratava de um filme, será que havia margem para algum tipo de improviso? Ou, porque não, como o filme ainda estava sendo rodado, deveria permanecer sentado esperando a deixa e o momento certo de reagir a uma situação qualquer na relação com o tempo e o espaço.

 

Pensou — e, nesse momento, o de sempre já estava sobre a mesa, no caso, um capuccino médio — que não se sentia muito à vontade em representar, afinal, e puxou pela memória, quando era criança, durante o período de escola, já sabia que não tinha jeito para essas coisas ligadas ao mundo das artes.

 

Se é que isso ajuda na conversa, nunca teve apego algum pela área das humanas. Não bastasse isso, os colegas de classe zoavam dele o tempo todo, diziam e repetiam sempre que podiam que ele “tinha cara de quem mordia a mãe na bunda”; nunca entendeu bem ao certo do que se tratava a expressão, qual sentido teria, ou, fingindo que não lhe incomodava, fez questão de não ir a fundo e desvendar o mistério.

 

Há momentos em que não perguntar do que se trata também tem o seu valor para aquilo que o mundo convencionou a chamar de autoestima.

 

Hão de considerar que depois que passou esse bando de coisas galopando por sua cabeça, em pouco tempo já estava de volta à sua condição de Otávio, suando frio e tentando controlar o quanto se expunha.

 

Daí olhou para o lado, com aquele olhar desconfiado para ver se os outros estavam prestando atenção nele, e pronunciou algumas palavras com os olhos concentrados no restante de bebida na taça que segurava com as duas mãos:

 

— Deixa de besteira, homem, filme, cinema, de onde é que tu acreditou nessa estória?

 

Falou assim, se dirigindo a ele mesmo e fazendo confusão com o uso do pronome e do verbo.

 

Nem deu bem tempo de pousar a taça sobre a mesa e, ao levantar os olhos, viu dois policiais militares próximos lhe darem voz de prisão.

Ele não esboçou nenhum tipo de reação.

 

Na sua honestidade com as coisas ainda anunciou que, antes de ir, precisava pagar o que havia consumido.

 

Momento em que Willian se levantou, assim, metade da bunda em relação a cadeira, e disse, com certa intimidade, para não se preocupar, que era tudo por sua conta.

 

— Como assim, tudo? Falou alto Otávio.

 

Depois conjecturou para consigo mesmo, era apenas um capuccino que, por conta da badalação do local, poderia custar muito mais caro do que nos outros lugares. Mas não devia ser um preço que não tivesse condições de pagar.

 

Ainda queria ter dito outras coisas mais, mas enrolou algumas sílabas nas outras e as deixou pipocando na boca.

 

Eleonora, por sua vez, parecia peça morta.

 

Foi como se não visse o que acontecia. Permaneceu concentrada no livro que segurava em suas mãos.

 

Quando Otávio e os dois policiais já estavam a uma certa distância, como se combinado, os clientes do café se levantaram em pé e bateram palmas coordenadamente, espaçando um pouco mais o estalo entre uma batida e outra, sem perder o ritmo, dando à cena contornos irônicos. Era a chacota dos colegas de classe que lhe estouravam nos tímpanos.

 

Otávio não entendia nada de captação de áudio, desenho de som ou qualquer expressão que pudesse ajudá-lo a perceber qual recurso havia sido usado na montagem. Apenas sabia que havia acontecido com tamanha eficiência e intensidade que ele sentiu, pela primeira vez na vida se apoderando do elemento irônico, vontade de aplaudir os aplausos.

 

A vontade foi contida e o que restou foi um elemento de resignação estampado em seu rosto. Ele parecia um quadro de uma pessoa que não teve nenhum tipo de importância para a história, pintado e exposto no museu das almas.

 

O desenrolar da cena, para aumentar a dramaticidade, foi em câmera lenta.

 

Aqueles que bateram palmas, ao reocuparem os seus lugares nas cadeiras dos cafés, chegaram ficar constrangidos pelo ato, como se tivessem exposto a mediocridade de uma sociedade e os seus decibéis de imbecilidade. Mas o constrangimento durou pouco, afinal, esse plano, que não estava no roteiro, só foi possível de ser percebido por uma ou outra mente mais alegre e atenta.

 

Todos já sabem que era um calçadão e que não era permitido a circulação de automóveis. Isso, naturalmente, até vermos o carro da corporação subindo a calçada e tornando mais fácil o serviço dos guardas que o conduziam.

 

A imagem que ficou congelada na mente de quem via a tudo sem entender do que se tratava foi a de Otávio, agora algemado, sendo colocado no banco de trás entre dois policiais.

 

Como o recurso das pombas já havia sido usado mais que uma vez, desta, enquanto o carro saía de cena sem ligar o giroflex para não badalar mais do que o necessário, a câmera fez o caminho oposto ao do carro — exatamente do lugar em que havia partido —, indo em direção ao café; um caminho em que se preocupou em mostrar alguns detalhes que demarcavam as pequenas pedras brancas, vermelhas e azuis que compunham o mosaico, algo que já era patrimônio do bairro boêmio e da cidade.

 

A cena terminou exatamente onde o pedaço de pedra azul não tinha mais continuidade, depois se espraiou pelas pedras brancas. Ainda, se não for um exagero retórico, havia, no desfecho da cena, uma propaganda de um boticário antigo da cidade, como se tivesse sido colocado ali propositalmente pela direção de arte.

 

[Confesso que não entendi o uso desse recurso].

 

Jandira quase explodiu de raiva dentro do cinema dizendo que o rapaz, que, segundo ela, conhecia da vizinhança onde morava, estava sendo levado ao xilindró injustamente.

 

– Não há provas…

 

A explosão dela aconteceu no momento em que a polícia deu voz de prisão a Otávio. Todavia, enquanto não se acenderam as luzes do cinema, as manifestações dela não causaram efeito. Depois, parece que a luz do holofote pousou sobre ela, que gritava e gesticulava, fazia discurso — de modo desproporcional — dizendo que a sociedade continuava hipócrita como sempre, que não havia mudado absolutamente nada.

 

A direção do cinema precisou chamar os seguranças para conter a mulher que discursava no vazio.

 

Uma das moças que acompanhava os seguranças, com uma voz doce e gentil, disse para ela:

 

— É apenas um filme, minha senhora, não deixe se levar pelas impressões… a senhora está precisando de um copo d’água.

 

— Um copo d’água é o caralho, eu preciso é ter a sensação de viver em uma sociedade minimamente mais justa.

 

— Mesmo o cinema, senhora… quando mostra ou não mostra uma injustiça, é, de uma maneira muito eficiente, financiado pela injustiça…

 

A senhora parou, em estado de choque, enxugou as lágrimas na manga da blusa e…

 

A moça seguiu,

 

— Somos, eu e a senhora, apenas números, imagens… vendemos alguns bilhetes e amanhã não lembraremos mais quem a senhora é. Desculpe-me pela franqueza.

 

Jandira ainda soluçou, como se carregasse um peso por aquilo que havia feito, disse que devia ser por conta dos remédios, que havia mudado o medicamento recentemente.

 

A moça perguntou se ela ainda precisava de algo, disse, com todo o jeito, que poderia acompanha-la até a saída.

 

Jandira agradeceu e respondeu:

 

— Como uma moça tão gentil pode falar em números desse jeito, quase como se não tivesse coração?

 

— Treinamento, senhora. Somos treinadas para parecer o que na maioria das vezes não somos. Por isso parecemos simpáticas aos olhos do mundo. Cumprimos o papel e pronto. Ao chegarmos em casa, depois que tiramos a máscara e a fantasia, voltamos a ser o que somos.

 

O nível de sinceridade foi tão assustador que parecia escorrer algo pelo canto da boca.

 

As pessoas não estão preparadas para a franqueza na lâmina da faca entre os dentes.

 

Foi um calmante associado a uma boa dose de depressão.

 

A senhora saiu do cinema jurando para ela que nunca mais voltaria. Estava confusa entre aquilo que era ficção e realidade.

 

Pegou uma via movimentada — pensem na cena a partir de uma câmera parada em frente ao estabelecimento — e desapareceu no meio de outros corpos ambulantes que iam e vinham. Em algum momento, talvez como uma miragem, ainda se tinha a impressão de que se podia vê-la. Não mais.

 

Dentro da sala, enquanto as atendentes davam uma geral no espaço, encontraram um rapaz franzino dormindo, encolhido em uma das poltronas.

 

A moça o acordou, disse que o filme já havia terminado.

 

O moço reagiu:

 

— Então já posso me matar?

 

— Como, senhor?

 

— Nada. Foi um sonho que eu tive quando era criança. Uma moça me acordaria em uma sala de cinema dizendo que o filme já havia terminado, que eu não tinha mais o que fazer naquele lugar e que eu deveria ir embora. A sensação daquelas palavras, no sonho, era como se a vida tivesse chegado ao fim.

 

— Moço, e com tremenda cara de espanto, disse apenas que o filme terminou.

 

— Foi o que eu entendi, grato.

 

Manoel saiu do cinema, caminhou por caminhar buscando juntar a parte do filme que havia visto com a realidade em que se encontrava, como se fosse uma espécie de continuidade. Depois de muito rodar, passou em frente ao Grand Café e, de longe, observou as pessoas ali sentadas, como se compusessem uma cena sempre montada de um filme qualquer em que a narrativa se estatelava junto com a vida de qualquer um deles. Sabia muito bem que se retornasse no dia seguinte, a cena se repetiria de uma maneira muito semelhante, na maioria das vezes com a mesma falta de graça que exalam naturalmente. Talvez fosse ele que não conseguia mais ver graça nessa repetição absurda de rostos esfarelados pelo assombro dos dias. Faltava nele um outro fio, desencapado que fosse, para mudar o que via e sentia e que pudesse reconfigurar o que pensava. Afinal, naquele momento, para ele, a vida de cada um terminava no fio narrativo que compreende cada olhar e que se apaga de uma vez quando a luz que incide sobre o pano branco e mal esticado de uma tela de cinema improvisada deixa de nos contar algo. Ruminou outras tantas coisas mais e foi cabisbaixo para casa.

 

Alguns dias depois, enquanto a cidade cinematográfica composta pelo cinema, pelo café e por algumas ruas da cidade mantinha a mesma imagem sendo projetada, foi encontrado sem vida deitado na cama do local em que morava.

 

Aqui o cinema deixava de existir.

 

Segundo a análise dos médicos legistas, a morte havia sido natural. Não havia sinais de violência, nem de ter ingerido algum tipo de entorpecente.

 

“Morrer assim tão cedo, de morte sem vida no corpo, deve ser coisas do mundo do desamor.”

 

Essa foi a última frase que se viu na tela depois dos créditos.

 

Os amantes da sétima arte, como se projetassem o seu presente no passado e tentando mediar o futuro, pediam, desesperadamente, para que não acendessem as luzes.

 

Demétrio Panarotto (1969 – ) nasceu em Chapecó SC. É um músico, compositor, pesquisador, professor e literato brasileiro. Paralelamente a uma carreira musical com a Banda Repolho e projetos alternativos, louvados pela sua originalidade e irreverência, desenvolve atividades como acadêmico, palestrante e escritor. Publicou vários livros de poesia e prosa que lhe valeram o reconhecimento como um dos nomes de destaque da nova literatura do estado de Santa Catarina.

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