Apanágios de um roedor de livros
(Em comemoração do dia internacional do livro)
Lendo uma obra do escritor israelense Amós Oz, reflito sobre a imensa diversidade de características que envolvem uma pessoa. E me dou conta de que cada ser humano tem a sua marca particular, que de certa forma o define, o descreve e o desnuda perante as demais pessoas. Esta marca pode ser representada por uma simples palavra, uma frase, um objeto, um inseto, uma ave, um animal doméstico ou selvagem, e mesmo por um elemento qualquer da natureza, como uma folha, uma flor ou uma pedra. Não é à-toa que as pessoas usam epítetos, ou estes lhes são atribuídos em razão de um caráter inerente, o mesmo acontecendo no caso dos apelidos.
Uma pessoa pode merecer vários epítetos, a depender do olhar que esteja pousado sobre ela. Se for o olhar de um intelectual, é um; se for o de um religioso, é outro; e se for o de um homem comum será um terceiro. Não seria incomum que viesse a ter até dezenas de epítetos, tantos quanto forem os olhares que sobre ela se debrucem, provocados pela curiosidade, a importância ou a ambiguidade que revele.
Bolsonaro é o personagem da história do Brasil que mais ganhou apelidos e epítetos até hoje. Consultássemos a imprensa escrita e as redes sociais desde o período em que o atual presidente ainda era deputado, e chegaríamos a encher algumas páginas. Cada brasileiro, no fundo, gostaria de dar-lhe um nome especial. Eu mesmo me sinto inclinado a dar-lhe um. E, certamente, estaria relacionado com a minha condição de escritor. A ideia até poderia ser motivo de um concurso nacional que, com certeza, teria ampla participação.
Artistas e escritores têm uma forma muito particular de enxergar as pessoas, já que trabalham sob a égide da observação e da reflexão, que são apanágios da criatividade. É dentro desse prisma que se pode compreender personagens como Gregor Sansa, que se transforma numa barata monstruosa, e que é um símbolo perfeito criado por Kafka para descrever as injunções da família Sansa e as contingências de Gregor perante o mundo e perante si mesmo.
Se alguém me perguntasse que epíteto eu daria ao poeta Paul Verlaine, isto é, como eu gostaria de chamá-lo, responderia imediatamente: “Folha de Outono”. Para alguns pode parecer estranho, mas é como a minha alma o sente, nem mais nem menos. Já para Walt Whitman eu guardaria um nome parecido: “Folha de Relva”, inspirado em seu livro mais famoso. E o vejo pintando os jardins de minha alma e transformando-os na mais bela e harmônica paisagem do mundo. Baudelaire, por sua vez, ganharia o nome de “Albatroz”. E o vejo atravessar largas distâncias, atingir grandes alturas e pousar, suavemente, sobre os meus ombros.
Estava há pouco escutando pelo YouTube uma canção de Barbara, a cantora francesa que mais amo e me dei conta de que ela é conhecida como “Águia Negra”. Nada mais adequado e mais perfeito. Realmente, ela se parece com uma águia negra: esguia, de voz estridente, de olhar penetrante e de indumentária quase sempre preta. É como se ela percebesse a própria semelhança com uma águia e se vestisse com suas plumas. Tanto que compôs uma canção intitulada “L’Aigle Noir”, assumindo, assim, a sua própria condição.
Há exemplos inversos. É o caso do cantor e compositor Roberto Carlos, que em nada se parece com um “Rei”, título que lhe foi atribuído por mero marketing comercial. Como suas composições estão muito distantes do patamar em que se encontram os melhores do Brasil, e como também não ocupa lugar de referência entre os melhores intérpretes, por que seria “Rei”? Não cabe! É uma imposição. Aliás, não caberia nem que tivesse maior valor, pois título como esse só se pode dar ao verdadeiramente melhor, como Pelé. Se tivesse um mínimo de humildade, ele o teria rejeitado. No entanto, assumiu a sua não-condição.
Há epítetos que me parecem perfeitos, como o de Noel Rosa, tão condizente com a sua personalidade irônica, crítica e polemista: “Filósofo da Canção”. E quem poderia tirar de Castro Alves os títulos de “Poeta dos Escravos” e “Poeta Republicano”? E de Ruy Barbosa o epíteto de “Águia de Haia”?
Por falar em epíteto perfeito, retorno ao escritor Amós Oz, que até agora o leitor não sabe porque entrou no começo desse artigo. Se me fosse dado conceder-lhe um epíteto, escolher como eu gostaria de chamá-lo, eu responderia sem pestanejar: “Livro”. Sim, tudo isso. Poderão estranhar novamente, mas é assim que o vejo, e este também me parece um epíteto perfeito. Amós Oz é um livro ambulante, andando pelas bibliotecas do mundo, a se nos ofertar, seus leitores. Um livro com todos os atributos humanos: pernas, braços, mãos e cabeça, se movimentando como gente viva e ativa. Sempre que o nome de Amós Oz é citado em algum lugar, revista ou veículo de comunicação, eu me digo: “Que belas palavras do escritor “Livro”.
Tenho certeza de que ele aceitaria meu epíteto de muito bom grado. Aliás, ele já declarou isso em sua consagrada obra “Amor e Trevas”. Sua casa parecia ser construída de livros. Seu pai, intelectual dedicado, chegava a ter uma relação sensual com os livros, a qual Amós herdaria. “Gostava de apalpar, sentir, folhear, acariciar, cheirar. Era um insaciável caçador de livros, ia logo pegando e folheando, mesmo na biblioteca de desconhecidos. E a verdade é que os livros daquele tempo eram muito mais sensuais que os de hoje.” A casa de infância de Amós era abarrotada de livros, que ocupavam todos os cantos, desde a sala até os quartos, o corredor, a entrada, os peitoris, a cozinha e o banheiro; a casa cheirava a livro, era um de reduto de livros, de cultura, de conhecimento e de ideias. Daí que, quando criança, ele tinha um só pensamento para o futuro: queria ser livro quando crescesse. Vejamos o que diz, textualmente:
“Quando eu era pequeno, queria ser livro quando crescesse. Não escritor de livros, livro mesmo. Gente se pode matar como formigas. Escritores também não são tão difíceis de matar. Mas livros, mesmo se os destruirmos metodicamente, sempre há chance de sobrar algum, nem que seja um exemplar, a continuar sua vida de prateleira, eterna, discreta e silenciosa em uma estante esquecida de alguma biblioteca remota em Reykjavik, em Valladolid ou em Vancouver.”
Quanta lucidez! De fato, os livros não morrem, apesar dos Hitlers da história, e dos Bolsonaros da vida. Não adianta queimá-los: eles rebrotam aqui e ali, como se fossem árvores. E se impõem, soberanos, pela eternidade.
Foi exatamente o epíteto que dei a Amós Oz que me fez imaginar o que eu daria a Bolsonaro. Não sei se eu deveria tomar algum cuidado, já que o atual governo tem respondido aos epítetos dados ao presidente com a Lei de Segurança Nacional. É como se decretasse: “fica proibido a partir de hoje a criação de epítetos ou apelidos para o presidente Jair Bolsonaro”. Só que isso não pode dar certo. O governo não tem como processar milhares de pessoas. Se o decreto fosse baixado a situação iria até piorar para ele. Ninguém respeitaria o novo ordenamento e os motivos de chacota se multiplicariam.
Se tenho de me preocupar com alguma coisa é no sentido de não repetir apelidos e epítetos, o que não é uma tarefa fácil. O povo brasileiro tem um espírito criativo admirável. Seu bom humor não é de perdoar ninguém. Quando Bolsonaro se elegeu, foi reduzido imediatamente a Bozo, um apelido pejorativo, de sonoridade que lembra alguém de curta inteligência. Como se isso não bastasse, logo surgiram derivações: Bozonaro, Bolsonazi, Bolsolixo, Bonossauro, Bostanauro, Bolsomico, Bolovo, Capiroto e tantos mais. Outro que nada agradou ao presidente e logo foi bloqueado nas redes sociais pelo Planalto, foi Biroliro. Afinal, era pesado, dado à sua proximidade de burro, sem inteligência, jumento. Apesar disso, continua sendo um dos mais usados.
Quanto aos epítetos, são também infindáveis, e numerosos jornalistas do país passaram a ter o seu predileto, a ponto dessa prática chegar ao exterior. O prestigioso Financial Times, de Londres, por exemplo, o elegeu como Capitão Corona e o Wiener Zeitung, da Áustria, como Capitão Insano. Já o jornal Estado de São Paulo o nomeou de “O Espalhador de Vírus” e a OAB o premiou com “República da Morte”. É também costumeiramente citado nas redes sociais como Capitão Cloroquina, Capitão Covid, Capitão Hidroxicloroquina e outros do mesmo quilate, pela sua conduta negacionista diante da pandemia. Ultimamente, foi consagrado nacionalmente como “O Genocida”, a ponto de ninguém mais se referir a ele sem este epíteto.
Mas não para aí. Acabo de ler um artigo do jornalista Juca Kfouri, no qual ele atribui a Bolsonaro dois novos títulos bem definidores do seu caráter: “Rato que ruge” e “Garganta Rasa”. O primeiro busca desmascarar suas constantes bravatas e ameaças à democracia, cujo objetivo não é outro senão criar um clima de medo e um sentimento de subjugação na população, mantendo seus seguidores em pé de guerra. De tanto blefar, suas ameaças estão caindo no vazio, já não assustam ninguém. O segundo tem significado similar, ao compará-lo, inversamente, com o Deep Throat (Garganta Profunda), codinome da fonte da famosa dupla de repórteres Bob Woodeword e Carl Bernstein, do Wasingthon Post, no caso Watergate, cujas denúncias levaram à renúncia do presidente Nixon. Bolsonaro mostra que não tem nada guardado no bolso para surpreender, como está sempre insinuando. Ao tentar mostrar os dentes como um bicho acuado, aparece banguela.
No dia 26 de janeiro passado, o consagrado jornalista Ruy Castro, em sua coluna na Folha de São Paulo, abordou este tema. Em artigo intitulado “Novos xingamentos contra Bolsonaro”, fez ampla seleção de substantivos e adjetivos que têm sido aplicados a ele. Foi um apanhado retirado dos mais diversos órgãos de imprensa do país, segundo esclarece, no qual aparece “cretino, grosseiro, despreparado, irresponsável, omisso, analfabeto, homofóbico, mentiroso, escatológico, cínico, arrogante, desequilibrado, demente, incendiário, torturador, golpista, nazista, xenófobo, miliciano, criminoso, psicopata, covarde, traidor” e vários outros. O articulista assevera que “nada ofende Bolsonaro. Ele se identifica com cada desaforo.” Evidentemente, tratando-se de manifestações de cidadãos comuns em mensagens para os jornais e publicações nas redes sociais, seria “divertido ver o governo processar tal multidão.”
Dois dias depois, após receber inúmeros aditivos, Ruy Castro precisou fazer uma complementação através do artigo “Novas definições para Bolsonaro”. Uma nova listagem foi organizada por ordem alfabética por seu amigo João Augusto, grande produtor musical, que começou a compilar já no dia da posse de Bolsonaro. Só que não dá para reproduzi-la na íntegra, pois o artigo de Ruy Castro é grande e se resume a ela. Lembremos somente dos termos mais ferinos: “abjeto, abominável, abutre, alimária e amoral; babaca, belicista, beócio, boca-suja e boçal; cabotino, cafajeste, canalha, cancro, capadócio, cavagaldura, charlatão, chulo, complexado e contagioso; daninho, dantesco, degenerado, demagogo, depravado, desbocado, déspota, desumano e doente; ególatra, embusteiro, energúmeno, esterco, estúpido e execrável; falso, fanfarrão e funesto; grotesco; hediondo, hiena, hipócrita e histérico; ignóbil, imbecil, imoral, ímpio, indecoroso, indigno e iníquo; judas, jumento; lixo, lunático; malfeitor, mesquinho, mitomaníaco e monstruoso; narcisista, necrófilo, nojento; obsceno, odioso e oportunista; paranoico, parasita, pária, parvo, patife, pilantra, pornográfico e pulha; rastaquera, recalcado, reles, réprobo e repulsivo; safado, selvagem, sociopata e sórdido; tirano, torpe e tosco; ultrajante; vândalo, vigarista e vulgar; xarope; zoilo”.
Mais recentemente, um novo epíteto veio de Palmas, no estado do Tocantins, da lavra do sociólogo Tiago Costa Rodrigues, que está respondendo a processo pela Lei de Segurança Nacional. Apareceu estampado num outdoor: “Bolsonaro não vale um pequi roído”. Aparentemente, “pequi roído” seria o mais inofensivo de todos os epítetos usados até agora. Todavia, é um dos mais sutis e contundentes para quem conhece a cultura do centro Oeste brasileiro. O pequi é uma fruta agreste da região, muito usada na culinária. Possui uma polpa amarela e um caroço espinhoso, de modo que não se aconselha mastigá-lo, sob hipótese de ter a boca ferida pelos espinhos. Roê-lo, sim. Do pequi só serve a polpa: retira-se esta e joga-se fora o caroço. “Pequi roído”, portanto, é algo que sobra: imprestável, sem serventia, destinado ao lixo. Esta é a imagem que Bolsonaro inspirou por aquelas bandas.
Quanto ao meu epíteto, pensei em algo inverso ao de Amós Oz. Bolsonaro é um iconoclasta da cultura. Tenta instituir uma chamada “escola sem partido”, cujo objetivo não é outro senão eliminar dos currículos escolares obras consagradas da literatura, da economia e da ciência universais, didáticas ou não, visando instituir a ideologia de extrema-direita em todo o sistema de ensino; com tal projeto, inspirou diversas manifestações a favor da queima de livros, o que já aconteceu algumas vezes; faz campanha aberta contra Paulo Freire, “Patrono da Educação” brasileira, espalhando mentiras e ódio contra o grande educador; persegue a educação de uma forma abjeta e sistemática, a ponto de Abraham Weintraub, seu segundo ministro da Educação, precisar ser enviado para um cargo no exterior para se resguardar dos possíveis processos que lhe seriam movidos por reitores, professores e estudantes por sua tentativa de desmantelamento do sistema de educação no país; extinguiu o Ministério da Cultura; nomeou para o cargo de Secretário de Cultura, um nazista declarado, que, ao participar do lançamento de um tal Prêmio Nacional das Artes, fez um discurso com trechos inteiros de Goebbels, o famigerado ministro da Propaganda de Hitler, como se fossem seus; rejeitou entregar o Prêmio Camões a Chico Buarque, ao contrário do presidente de Portugal, parceiro do Brasil na premiação; por último, cisma em taxar o livro com impostos abusivos, considerando-o inútil à sociedade, concordando com seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes, para quem o livro é coisa de rico; na verdade quer tornar o livro inacessível ao povo. Tem demonstrado ser um sujeito ignorante, inculto, insensível à cultura e uma vergonha para o mundo inteiro.
Se Bolsonaro é um predador de livros, que nome lhe dar? Quem destrói livros é cupim e traça. O cupim é roedor de madeira, papelão, tecido, plástico, pisos, paredes e muitas outras coisas ao mesmo tempo. Bolsonaro não deixa de ser um cupim. Mas, numa visão direcionada ao livro, acho que traça reflete com mais perfeição a sua imagem. A traça passa a vida roendo livros, não faz outra coisa. Seu objetivo é destruir bibliotecas inteiras, se pudesse. Onde há livros, ela aparece, espontaneamente. É uma praga difícil de combater e que requer inúmeros e constantes cuidados. Podemos matar uma traça com um simples golpe de mão, mas, para imunizar nossas bibliotecas, precisaríamos ser ubíquos nas estantes e miolos dos livros.
Jair Messias Bolsonaro se parece tanto com uma traça que só lhe faltam algumas pernas adicionais. Não precisamos agregar-lhe outro epíteto, pois traça incorpora, em sua essência, quase todos os que já lhe foram atribuídos. Um dos insetos mais primitivos do planeta, este roedor de livros indiretamente destrói ideias, teorias e ensinamentos, apaga a história e a ciência, frustra a inteligência, a sabedoria, o estudo e a criação, nega o prazer da leitura, a fantasia e a imaginação; concentra, assim, os apanágios de quase todos os nomes e adjetivos citados neste artigo em atribuição ao Bozo. Poderíamos chamar-lhe tanto de “alimária” como de “nojenta” e “malfeitora”. Por ela ser profissionalmente lesiva ao livro é que concedo a Bolsonaro o título “honoris causa” de “Traça Brasiliensis”; ou simplesmente “Traça”.
Mas mantendo a esperança e a convicção de que a “Traça” jamais vencerá sua infausta guerra contra o “Livro”.
Lisboa, 23 de abril de 2021, Dia Internacional do Livro
Nascido em Ipiaú, na Bahia, Paulo Martins passou quase que a vida inteira viajando: tendo morado em Jequié, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Pequim, Paris, Salvador, Porto Seguro e outras cidades. Reside atualmente em Lisboa, Portugal, onde se dedica a escrever e a desbravar novos países, além dos mais de 30 que já conhece. É poeta, letrista de canção popular, romancista, cronista e ensaísta, autor dos romances Glória Partida ao Meio (7 Letras 2010); Adeus, Fernando Pessoa (7 Letras, 2014); História de Roque Bragantim – Olhares do Campo (Cultura Editorial, 2017); e do ensaio biográfico Jacques Brel – A Magia da Canção Popular (7 Letras, 1998), entre outras publicações. Divide-se, desde a adolescência, entre as duas maiores paixões de sua vida: a política e a literatura.