Cultura

Antonieta: o doce remédio | Teresa Dangerfield

Conheci-a num período difícil da minha vida. Estava num hospital, em Londres, onde tinha sido operada de emergência.  

 

Antonieta encarregava-se de saber o que cada paciente desejava para as refeições do dia, e distribuía-as. Ficou muito feliz quando soube que na enfermaria havia uma ‘portuguesa’, pois gostava de conversar e o seu Inglês não era famoso. Foi assim que, no dia em que pôs olhos em mim, resolveu ‘adotar-me’. Fiquei a saber que nasceu naquela parte do mundo onde — como uma vez ouvi dizer — se fala  Portuguêscom açúcar. E era essa mesma doçura que, com os seus 75 anos, transmitia, irradiava e distribuía a quem se permitisse recebê-la.

 

«Maria,» — dizia-me ela, numa altura em que o simples cheiro do quer que fosse me agoniava — «você precisa comer. Vai querer ficar aqui para sempre? Olhe que eu sei que não vão deixá-la sair se não comer. Eu vou fazer uma sopinha para você e amanhã lhe trago. A comida aqui é um pouco ruim, eu sei. Vou fazer uma sopinha mesmo boa, viu?» E Antonieta cumpriu o que disse. No dia seguinte, trouxe-me a sopa de legumes mais quentinha e saborosa que já provara, ainda por cima tão cheia de carinho. E uma laranja descascada. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Sentia-me frágil e tamanha generosidade comoveu-me. Antonieta fez questão de que o meu tabuleiro fosse o último a ser recolhido. Fez-me rir: «Olha pra lá, verdura eu não sei como é com você, eu fico comendo que nem galinha. Mas uma sopinha assim, só vai fazer bem a você. E vai comer nem que seja só um pouquinho de laranja, viu?» — Não conseguia comer muito; estava sob o efeito de mil e um medicamentos. — «Meu marido», continuou ela, «também fez essa operação há uns anos e o coração dele ficou legal; ele conduz camião. Então, você, querida, é mais nova e vai mesmo conseguir. Eu estou rezando por você.»

 

Não era só a mim que Antonieta trazia as suas doces palavras, temperadas de histórias animadas. Todos aguardavam com expetativa a sua vinda à hora das refeições. Foi de tal maneira que comecei a ansiar ver aquela figura frágil, de andar bamboleado, com uma bata azul e os cabelos que lhe adivinhava grisalhos debaixo de uma touca também azul, tez e feições de uma beleza única de afrodescendente, que lhe escondiam a idade real.  Mas Antonieta, tal como o resto do pessoal, trabalhava por turnos.

 

Um dia, depois de terminado o trabalho, veio fazer-me companhia. As visitas acabavam cedo; o jantar também — era servido às cinco da tarde. «O marido está na estrada, guiando um camião até à Alemanha. Posso ficar um pouquinho com você.» Falou-me do seu Rio: «Sou Carioca, menina. Minha mãe dizia que eu tinha cabeça dura e coração mole.»— Piscou-me o olho. — «Não podia ficar, viu? Viajei do Rio para S. Paulo, daí para a Bahía, depois Pará e Brasília e por fim cheguei na Inglaterra.» Sempre com boa disposição, foi-me dizendo como gostava daquele trabalho, que tinha começado depois da sua reforma — não sei propriamente o que teria feito antes, mas percebi que evitava falar disso — e que já há mais de vinte anos que o sentia como a sua missão.

 

— Antonieta, isto tudo não é cansativo para si? — perguntei-lhe, observando o seu ar feliz, contudo notando-lhe um certo cansaço que me fez recear que não estivesse bem. 

 

— Tenho esse “trolley”, então levo tudo juntinho das pessoas, não se preocupa não. Com duas ancas novas, parafuso por todo o lado, até no joelho, não há que preocupar mesmo.

 

Riamo-nos. Com esta conversa, e outras, às vezes sobre pequenas coisas simples e banais, acabava sempre por me sentir mais ligada a tudo e com renovadas forças para enfrentar os desafios que a vida me lançara na altura.

 

No final da segunda semana da minha estadia no hospital (acabei por ficar cerca de três semanas), Antonieta deixou de vir. Tentei saber o que teria acontecido, mas ninguém me dava notícias. A parte do catering estava entregue a uma empresa, e só eles saberiam informar. Já não era o mesmo na enfermaria. Mas cada dia tínhamos a esperança de voltar a ver a nossa Antonieta.

 

«Estará doente? Aconteceu-lhe alguma coisa? Como é que nunca me lembrei de lhe pedir o número de telefone? Será que nunca mais a vou ver? Não pensei que isto pudesse acontecer, lá isso é verdade. Podia ser um anjo. Se calhar estava a imaginar isto tudo, com tanta “droga” que me têm dado. Afinal até vi animais a flutuar pelo quarto. Disseram-me que foi da dose de oxitocina que tiveram que me dar. Mas então… e os outros?» — Esta e outras conjeturas começaram a fazer parte dos meus dias. 

 

Para alegria de todos, Antonieta voltou a meio da semana seguinte. Explicou que tinha tido uns problemas nos intestinos, mas que já estava fina. Como o humor do costume, contou-me a sua versão: «Não sei como é que algumas pessoas fazem com esse negócio de dieta. Quando vejo aquela tortinha de limão, às vezes me dá vontade. Não posso comer isto e mais aquilo. Eu queria era mingau de maizena, mas não dá. O médico diz que tenho que comer fibra. Agora até tenho que comer “brani flakzi”. Eu que dizia que isso é comida de cachorro. Minha mãe bem me avisou que não falasse não, que ia pagar pela língua.»

 

A animação habitual voltara. Sentia-me melhor sempre que Antonieta estava por perto. Até que me deram alta num dia em que ela não estava e assim não consegui despedir—–me dela. Nem tinha o seu número de telefone. Que cabeça a minha! Tentei desculpar-me com o meu estado, e a minha família dizia-me que não me devia preocupar com essas coisas. Antonieta para eles era outra pessoa, evidentemente. No entanto, para mim, ela era mais como uma personagem vinda do universo de Tólstoi: Varenka.

 

Não me saiu da cabeça. Ninguém me podia dar o contacto dela, por razões de segurança, por isso fiquei super feliz quando, passadas umas semanas, numa ida ao hospital para uma consulta, a encontrei. Afinal também tinha problemas de coração. Quase ficou envergonhada por eu ter percebido. Não fiz comentários. Trocámos números de telefone. Disse-me como tinha ficado triste por eu ter ido e não nos termos despedido, que até tinha levado uma laranja descascada para mim. Quem não iria querer uma doce pérola de laranja, cheia de carinho? Trocámos telefonemas algumas vezes. Um dia disse-me que tinha escrito uma carta para deixar expressa a sua vontade quando morresse. «Não quero ser queimada não, nem enterrada. Quero dar o meu corpo aos estudantes para verem como estou cheia de parafuso.» E ria muito. Perguntei-lhe pelo marido. «Sabe menina, nós não somos casados não. Ele é meu vizinho, eu ajudo ele e ele ajuda a mim. Eu vivo sozinha.» Naquele momento, percebi que ela gostava de contar histórias e fazia tudo para animar fosse quem fosse. E afinal histórias são histórias! Imaginei-a a repetir as palavras de Ana Karênina: «Apenas pretendo viver, sem prejudicar ninguém, exceto a mim própria. Tenho direito a isso, não é verdade?» 

 

 Um dia ligou-me e não consegui atender. Passei vários dias sem devolver a chamada. Até que liguei e ninguém atendeu. Do outro lado, uma voz no gravador, num inglês perfeito, pedia para deixar mensagem. Senti um aperto no coração que Antonieta tão gentilmente ajudara a sarar. Liguei outros dias e outras vezes, até que resolvi deixar mensagem com o meu contacto. Antonieta não tinha família viva, mas recebi uma mensagem de uma senhora, por sinal também brasileira, que me disse ser sua vizinha. Contou-me que Antonieta estivera internada no hospital onde trabalhara tantos anos, na enfermaria onde eu própria estivera, e acabara por nos deixar. Senti enorme pesar por não ter atendido o telefone quando ela me ligou. Fiquei a saber também que guardava uma espécie de diário com anotações sobre os pacientes que ajudava e por quem rezava. Nesse diário anotava igualmente os contactos de alguns, incluindo o meu, a “portuguesa”.

 

Agora, penso que, onde quer que esteja, Antonieta está feliz por ter cumprido a sua missão e por ver o seu desejo realizado. Imagino-a sorridente a ver os estudantes de volta do seu corpo, “cheio de parafuso”, como ela dizia. Que sorte tive, por este anjo se ter cruzado no meu caminho!

Teresa Dangerfield nasceu em Lisboa, em 1956. É Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português e Inglês), pela Universidade de Lisboa, e Mestre em Tradução, pela Universidade de Bristol (RU). Há cerca de trinta e cinco anos que reside em Londres, onde — durante mais de vinte anos — lecionou em cursos de Língua e Cultura Portuguesa organizados, de início, pelo Ministério da Educação português e, mais tarde, pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. Foi também Docente de Apoio Pedagógico na Coordenação do Ensino Português no Reino Unido. Desde 2013 que a sua atividade principal é a tradução, como freelancer. Tem alguns poemas publicados em coletâneas, e um conto infantil na revista ‘Palavrar’. Também foi coautora na coletânea ‘Não Vão os Lobos Voltar’, a publicar em breve. Encara a escrita como uma forma de terapia e o seu sonho é publicar mais histórias para crianças.

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