Cultura

A sondagem poética das coisas: o labor de Lu Menezes | Letícia Ferro

Da perscrutação imorredoura acerca do mundo e do lugar de sua impressão, com gesto que fecunda a poesia e a repara, sabe-se da vigília de Lu Menezes à realidade – transfigurada à flor da expressão do (des)enlace circunstancial. O que se (per)faz quando se existe e se observa em derredor. Labor de sondar [1977-2022] – título da mais recente reunião completa de sua obra – atende ao chamado da prosa do mundo sob a forma de uma revista, em que são lançados “[…] dispositivos de visualização de algo que não pode ser dito, aquilo que não se deixa dizer, mas que pode ser mostrado” – para reproduzir a feliz síntese de Laura Erber acerca da poeta e, oportunamente, secundada por Paula Glenadel (2020, p. 8). Esse apelo ao visual clamado pela interpelação do real é, pois, o que mune e inspira a poeta a reordená-lo a partir do contexto exploratório de sua forma de dizer as coisas. Nesse sentido, torna-se latente, porque implacável, “[…] a problematização da visualidade e da voz […]”, sendo concebida “[…] como eixo gerador de uma dicção simultaneamente amistosa e sofisticada que percebe o mundo de maneira indissociável das articulações textuais que [a poeta] inventa” (GLENADEL, 2020, p. 8; grifos da autora).

 

Posto isso, pense-se a ideia de labor para a poesia e como nela os sentidos são imantados de sopesada interrogação, reverberada no verso imagético quando não de todo sinestésico. Este, pelas mãos de Lu, fraseia-se de cores artesanalmente subjetivas, qual um jardim particular, cujas flores são (re)tratadas e interpretantes d’“o valor incomparável/ do infindável/ alcance da linguagem” (MENEZES, 2022, p. 58). A complexa relação entre o quê e como se diz é a que também compreende, desde logo, a antilogia existencial e ressoa “o pendor metafloral/ da jardinagem – extensa/ a perder de vista – transbordando/ em ponto de folha/ folhinha/ feixe haste junco linho/ pétala pistilo/ espiga margarida/ semente…” (MENEZES, 2022, p. 95).

 

Assim, sob a nuance de “[l]uzes ao longe” (MENEZES, 2022, p. 140) que compõem a organicidade dos dias, a poeta transita – com assertividade e com inerente poiesis –, admitindo conciliar opostos nos bastidores da “estufa” de sua criação, donde o “[t]exto sobre ‘bordado’ a ser tecido” (MENEZES, 2022, p. 75; grifo da autora), lhe seja possibilitado entregar “[…] que direito e avesso/ exposto e oculto/ aqui devem valer, guiar” (MENEZES, 2022, p. 75) cada verso seu. Trata-se, portanto, da transformação de uma escrita work in progress que, como não poderia deixar de ser, se expõe à fortuna e ao malogro da vida, à “[…] praga de certa lagarta” (MENEZES, 2022, p. 76), para irromper, assim, sem nunca cessar. Recomeçar é, pois, sempre preciso. Com efeito, a poeta não se furta de asseverar que “[q]uatro horas de trabalho/ rendem um mínimo centímetro de renda” (MENEZES, 2022, p. 78), delicadamente, lírica, já que a tinta da agulha se dispõe à escuta “[…] de quem vos fala” (MENEZES, 2022, p. 87), ao remoer de “[…] alguma doída saudade […]” (MENEZES, 2022, p. 80), à beleza fugaz de “um acordo-íris sobre a casa” (MENEZES, 2022, p. 146), a “[…] irrefletidas/ inflexões fulgurantes/ [a] faíscas fônicas que fustigam” (MENEZES, 2022, p. 157). 

 

A inflexão subjetiva e reticente do que se sucede se dá sempre a reboque da passagem do tempo: mediação fugaz e inevitável, mas que, mesmo “fulgindo/ ao alcance da mão” (MENEZES, 2022, p. 264), adentra versos afora, ostensivamente da mesma forma que “na paisagem física/ a retidão – / concisa/ urbana” (MENEZES, 2022, p. 121) se coloca. É por saber, justamente, enredar o ofício, com a astúcia dos veteranos, que Lu Menezes recusa-se ao espontaneísmo e ao coloquialismo de alcance rápido – em que pese a urgência “de [cada] gosto pessoal e estoico-instantâneo” (MENEZES, 2022, p. 120) se (des)vele minuto a minuto. Menezes não renuncia ao vagar do escrutínio de si qual de outrem – malgrado o fim resulte “[…] em loop” (MENEZES, 2022, p. 179) – já que é com razão que a poeta consegue “[…] enfatizar a força das suas invenções poéticas como modo de intervenção sobre o mundo […]” (GLENADEL, 2020, p. 9). A linguagem, aqui, aponta e insufla, dá a ver a forma “que dobrada-redobrada/ ganha asas/ e [segue] no céu […]” (MENEZES, 2002, p. 179) cobrindo o raio da dicção da poeta, bem como se insinuando na reprodução “em eco” – nos termos de Flora Süssekind (2000).

 

É através desses ecos que verdadeiros “[…] espelhamentos mútuos, homofonias, assonâncias, analogias, sublinham” o que se pode compreender por “[…] sucessivas diferenciações a princípio imperceptíveis […]”, na medida em que agem como “[…] um tensionamento simultâneo entre fala e voz, entre sucessivas figurações e subtrações da voz lírica” (SÜSSEKIND, 2000). Isso porque, o que chama a atenção, “[…] no trabalho de Lu Menezes, é a construção reverberativa” (para citar Flora novamente, porém, agora, no texto que posfacia a presente reunião) – isenta de quaisquer demarcações previamente assinaladas como afigurada “[…] sobretudo em fluxo integrado à dinâmica meditativa, às linhas, estrofes, vocábulos”, além de “[…] apoiada, com frequência, em formas diversas, por vezes, autoanulatórias, de eco” (SÜSSEKIND, 2022, p. 298) que reverbera sem hesitar. 

 

A disposição para a escuta e reprodução do que se nota (ou não), regadas, por vezes, de adjetivação colorida, são o método seguro da colheita poetizante das formas pouco ou nada previsíveis com que Lu Menezes se conjuga no mundo. Aos versos, a poeta espanta contornos fixos, “[…] curva tesoura” (MENEZES, 2022, p. 242), trazendo para perto a sombra e o mistério de lugares “onde é possível lembrar que se esqueceu de tudo” (MENEZES, 2022, p. 231) e onde só se existe “a cada instante/ à flor do instante [que] cultivarás” (MENEZES, 2022, p. 244).

 

Referências

 

GLENADEL, Paula. Lu Menezes por Paula Glenadel. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2020. (Ciranda da Poesia).

 

MENEZES, Lu. Labor de sondar: poesia reunida [1977-2022]. São Paulo: Círculo de poemas, 2022.

 

SÜSSEKIND, Flora. Escalas & Ventríloquos. Mais! In: Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 de jul. de 2000. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2307200003.htm>. Acesso em: 10 de fev. de 2024.

 

  . Questões de Eco: Comentário sobre a poesia de Lu Menezes. In: MENEZES, Lu. Labor     de sondar, 2022.

 

Fotografia de Letícia Ferro

Letícia Ferro é editora e crítica literária, com graduação, mestrado e doutorado em Letras, pela Universidade Federal de Goiás. Hesita entre Goiânia e Rio de Janeiro. E-mail para contato: let_ras@hotmail.com



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