Cultura

A romaria de Fátima

 

O conto que se segue é a versão original, hard, do congênere ‘Os Três Terços da Rosário’. Esta segunda versão será dada à estampa no livro ‘Corpo Estranho’, com publicação prevista para este mês de abril.

 

***

Diogo estaca o passo à porta do quarto e recua, tomado de um espanto na fronteira da repulsa. Desvia o olhar, como se estivesse sendo assombrado.

Nem quinze dias se tinham passado desde o momento em que Fafá lhe ligara, eufórica, anunciando promissoras sensações de comprazimento. Olá Diogo, tenho uma novidade para te contar. Meus pais vão em romaria a Fátima, com a Jacinta e o Francisco.  Não podemos desperdiçar a folga do período… 

Há reticências que são muito mais eficazes na transmissão de um   desejo que milhares, milhares de palavras explícitas, assim tornadas redundantes. O ouvinte descodifica a mensagem e credibiliza as louváveis intenções da sua garota.

Quintanista de Direito, ele conhecera a estudante de Contabilidade nas folias de um baile de máscaras, terça-feira gorda atingindo o zênite na pista do Springfellows Club. Nesse apogeu carnavalesco, o centurião romano sentiria esvair-se de vez o que ainda sobrava da paixão segregada por uma colega de faculdade. Estimulado pela graça da odalisca, não demoraria a concordar com esta ilação, afinal um tanto óbvia: uma desilusão amorosa só se liquida, quando uma nova ilusão desabrocha.

O universitário nascera em Cela, no planalto angolano de Amboim, filho de um casal de fazendeiros, oriundo de Pinhel, Beira Alta, retornados, em época preventiva, à metrópole. Galega, de Ferrol, e portuguesa, de Santa Comba Dão, eis a ascendência da loura Maria de Fátima, nascida na cidade que já “foi” del caudillo.

Olá Diogo, como vais? Sentado numa esplanada, vizinha da Basílica da Estrela, o jovem folheia, absorto, uma apostila da Cadeira de Direito Penal. A bem dizer, nesta tarde quente de primavera, ele mata tempo até chegar a (boa) hora de rumar em roMaria de Fátima até à casa da namorada. E o cálido espresso, acabado de servir, se torna, num ápice, álgido como o gelo. A senhora está na certa enganada, dispara, levantando-se brusco, abandonando o pedaço. Não te lembras de mim? Sou a Lúcia. Após o patético apelo, a “senhora” fica muda, olhar submerso de lânguida decepção, à medida que o interpelado se afasta, em passada acelerada, Jardim da Estrela adentro.

Em marcha à ré, Diego aperta o roupão de banho e se afasta da porta do quarto, onde era convidado a entrar. Fátima, as paredes estão pejadas de imagens obscenas.  A moça arregala os olhos coloridos de azul celeste, cola as mãos tensas no rosto do namorado, onde se estampa um esgar de revolta. Abrázame, te quiero, Diogo!

Ofegante, mãos coladas ao volante da Mercedes Sosa, Diogo não aciona, porém, a chave da ignição. E insiste em visionar no vidro para-brisas, o filme de um enredo que turva há meses sua vida.

Ele tomava uma cerveja no bar da faculdade, quando um colega se sentou à sua frente. Mais que cerimonioso, começou a falar. Diogo, tenho uma má notícia para te dar, desculpe…, disse Geraldo, um brasileiro de Ubatuba, botando a boca na tuba. Fala, colega, desafiou, desembucha.

É a tua Lucy. Fiquei sabendo que ela faz michê, confidenciou, ciciando a voz. Michê, o que é isso?, indagou, Diogo. Perdoe o brasileirismo…, é uma forma de meretrício, prostituição, neste caso, de luxo. Uma conterrânea minha, estudante de Enfermagem, que faz programa, contou que é colega de ofício da Lúcia, revelou pesaroso.

A Lucy nessa vida, não é possível, não acredito.  Fátima, não acredito, teu quarto está inundado de fotos, cartazes, posters desse Chúlio… Que fetiche é esse?, querida.

Não será um fetiche, Diogo. Muitas universitárias fazem michê para suavizar as despesas com os estudos.  Deve ser também o caso dela, observou Geraldo, agitando uma atenuante. 

O cliente entra impante no Swing Bar. Seus olhos aquilinos buscam localizar uma mulher trajando um vestido preto, de corte evasé e um spencer azul royal. Quando a encontra, saúda-a com falsa amenidade. É a menina Luanda?  Eu sou o cliente Otávio, aliás, Otário.

A visada sente-se despida de resposta, despojada de dignidade, despossuída de ânimo e coragem para enfrentar o constrangimento. O homem que contratara seus afáveis serviços, é alguém muito bem conhecido.  Luanda ruboriza, suas faces se tornam mais rouges que o baton realçando os lábios carnudos e cinabrinos. Lábios que pintados de um cremoso glam red, não autorizam que a boca se abra sequer para a mais protocolar das réplicas.

Lamento desiludi-la, mas decidi substitui-la por uma girl com a rodagem feita, decreta, inchado de sarcasmo. O freguês retira um sobrescrito do bolso interior do blazer, coloca-o em frente da acompanhante e se afasta, em passo estugado. O assomo de um pudor paralisante impede que a petrificada garota de programa abra o envelope. É adivinhável que forma soberba de desprezo ele contém.

Não dissimulando a angústia para o jantar, que sobra para outras refeições, Di fecha o vítreo ecrã e guarda o filme no arquivo. Está chegando a hora de acelerar em direção ao apartamento de Fátima, para a agendada reunião de cópula, perdão, de cúpula. 

Não quero chegar aos 20 anos sem ter sido inaugurada, reclamou, categórica, a galeguinha (1), na última vez em que se encontraram. As minhas amigas e colegas até já gozam de mim, dizem que ainda vou para um altar, venerada como uma virgem santa. Agora, eu quero gozar contigo na minha cama, Diogo. Estás a entender?!  Sim, ele entendeu a luz verde da disponibilidade proativa da teenager que tanto o encantava por ser parecida com a Joni Mitchell. Bom rapaz, ele não é adicto da lobo-mauzice (2). Mas que ninguém diga que menospreza tão insinuante desafio de uma donzela zero quilómetro.

Enfim, motivado para fazer o test drive da fiancée, Di pisa na tábua, driblando a desgraça do trânsito do fim de tarde, até ao pitoresco bairro da Graça. 

Estás atrasado, Diogo, cobra uma buliçosa Fafá, vestindo insinuante um negligé de cetim. Temos que nos apressar, aquela minha tia beata vem me visitar depois do jantar, para verificar se estou inteira. Inteira, isto é, ainda virgem, ironiza o suado motorista. Querido, vai tomar um banho, mas não demores. 

Uma ducha rápida, mas que dá tempo para pensar na aparição repentina de Lúcia de Jesus. Ela não está bem, aspeto macilento, olheiras até aos pés, cabelos desgrenhados, vestindo uma t-shirt desbotada, jeans coçadas, uma caricatura da mulher formosa e perfumosa que o enfeitiçara numa aula. Hoje, contudo, estava nos antípodas da triumphante Mária de Fátima, vestida com uma lingerie colorida de lilás djavan, perfumada de Miss Dior, que se insinua à porta do quarto.

Fafá, que ideia é essa de profanar o teu, nosso santuário? Essas imagens indecorosas do Chúlio Iglésias!. Chúlio? Exato, querida. Parece impossível! Se ainda fossem fotos do Joan Manuel Serrat era tolerável.  Serrá, não conheço?!  Quem vai te serrar ao meio, sou eu. Porém, aqui não te inauguro. Esta poluição idólatra cortou o fio da minha tesoura. Tens de afiá-la, mas noutro quarto …

Acatando o ultimato, a anfitriã sugere, lesta, o escritório. Mas antes, como penitência, vais ter de rezar o rosário todo. Obediente, a virgem acomoda-se no genuflexório e começa a ora(liza)r, abrindo sôfrega os lábios, em tom de joli red. Quando inicia o segundo terço, Diogo contemporiza. Levantando-se do canapé de couro revestido, sugere que saltem os prolegômenos e passem ao finalmente. E, por bom fim, embora um tanto burocrático, o abensuado mancebo corta a fita da cachopa. A interrupção da litania do rosário revelou-se providencial. De outra forma, a titia carola da Igreja da Graça teria surpreendido o casalinho em plena cerimônia iniciática, testemunhando a emissão das jaculatórias finais. Foi mesmo à tangente.

À tangente, resvés Campo de Ourique, a Mercedes Sosa escapa de uma colisão no cruzamento da Ferreira Borges com a Coelho da Rocha. O volante não é o leme mais adequado para quem acusa um agudo sentimento de culpa e remorso. A destempo, reconhece ter ajuizado com excessiva severidade a traição de Lúcia de Jesus. Juiz cruel e implacável não faz justiça, consuma vingança.

Lucy telefonou, escreveu, pediu desculpa, rogou perdão, castanhos olhos umedecidos. Despeitado, Di revidou com sobranceira indiferença. Soube que ela trancara a matrícula na faculdade e regressara à modesta casa da família em Aljustrel, próximo do santuário mariano. Nem sequer o comoveu o fato de Luanda ter abdicado do metiê, doando a uma IPSS os honorários do serviço (não) prestado.

Captando a brisa refrescante da lucidez, Di para o carro. Liga o autorrádio e escuta o dueto de Maria Bethânia e Serrat. “Não escolha só uma fatia/me aceita como eu me dou/inteira e tal como sou/não se engane à luz do dia.”‘ ‘Sinceramente Teu’ soa como a senha de uma operação de resgate afetivo. Ele decide inverter o sentido, a direção da Mercedes, mas antes de tudo, da sua vida sentimental. E parte em busca da mais transcendente das mariofanias. Nem que eu e a Mercedes tenhamos de ir à Cova da Iria a pé. Desta vez vai ser mesmo uma verdadeira romaria de Fátima, mais rigorosamente, romaria a Fátima.

 

 Glossário

1- galeguinha- lourinha | 2- lobo-mauizice- partenofilia

 

Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu em São Sebastião do Rio de Janeiro, no Brasil, num dia de Vênus  do mês de novembro, sob o signo de Escorpião. No ano em que Agustina Bessa-Luís publicava ‘A Sibila’. Guerra tem uma licenciatura em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. São de sua autoria os livros ‘Em Busca da Musa Clio’ (2004), ‘Amor, Città Aperta’ (2008), ‘O Céu sobre Berlin’ (2009), ‘Excitações Klimtorianas’ (2012), ‘O Apojo das Ninfas’ (2014), ‘Oito e demy’ (2014), ‘O Português do Cinemoda’ (2015) e ‘Os Homens da Minha Vida’ (2017).

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