Cultura

A potência do anômalo – parte I | Clécio Branco

O anômalo não é só visto com estranheza pelo crivo da normalidade. O anômalo é um estranho, um desterritorializado por vocação, mas não se pode acusá-lo de insanidade com a anormalidade no sentido do termo psiquiátrico. Pode-se dizer que o caráter da anomalia do anômalo é de um duplo devir, em que a desterritorialização e a reterritorialização se cruzam, perfazendo tal duplicidade. De forma que já não há necessidade de temer o anômalo; ele é muito diferente do ser patológico que vive na desterritorialização perpétua. Pode-se dizer que o anômalo se confunde com o autóctone e com o estrangeiro, ou mesmo com o outsider.[1]

 

Eles experimentam as mesmas intensidades, os mesmos devires duplos. O xamâ vê e vive essa zona indiscernível como o ser cambaleante de uma porta a outra e desaparecendo no ar. Dizia Dom Juan a Castañeda: “Tudo o que posso dizer, é que nós somos fluidos, seres luminosos feitos de fibra.”[2] Não é o caso de o texto estar ou não enquadrado em uma norma válida, seja de filosofia, literatura ou de outra ordem de ficção. O que importa é ir em busca dessas linhas de borda feita de fibras.

 

O anômalo, o outsider, o estrangeiro, todos eles deixam de ser indivíduos marcados. Na verdade, eles não são figuras determinadas, são a habitual zona de indiscernibilidade. Para Deleuze/Guattari, eles são estados de coisas. “Uma borda funcionando como Anômalo; mas há uma enfiada de bordas, uma linha contínua de bordas (fibras), de acordo com a qual a multiplicidade se altera.”[3] São as bordas que se desdobram em formas que se metamorfoseiam em portas se abrindo dentro de portas, compartimentos que se confundem.

 

Kafka faz assim em O processo: as portas que levam à igreja são as mesmas que o fazem se perder no tribunal, mas que também se acham e fazem achar na organização burocrática do trabalho. Foi isso que Kafka demonstrou quanto ao juízo: ele percebeu que o juízo vai junto através das portas, dos corredores e das repartições; o juízo está dentro do julgado, por isso não há saída dentro do sistema de julgamento por meio do julgamento. Kafka mostrou que a saída está na subversão do sistema a partir de dentro. Ele faz isso através de um método singularmente inventado e que se encontra em sua literatura, no humor e na ironia.

 

 

Se Kafka é o maior teórico da burocracia, é porque ele mostra como, num certo nível (mas qual? E que não é localizável) as barreiras entre repartições deixam de ser ‘limites precisos’, mergulham num meio molecular que as dissolve, ao mesmo tempo em que ele faz proliferar o chefe em microfiguras impossíveis de reconhecer, de identificar e que são tão pouco discerníveis quanto centralizáveis (…).[4]

 

O mesmo se diria em relação à potência autista, muito pouco compreendida além da doença. Ela se liga ao universo por linhas de fibras, “de acordo com a qual a multiplicidade muda”, paradas provisórias em pequenas estações que se deslocam na velocidade das linhas de fuga. Figura estranhamente assustadora do autista que não se senta no lugar determinado pelos opositores, nunca se sabe exatamente no que vai dar, aonde vai chegar. A potência autista é a mesma potência esquiza do esquizofrênico.

 

[1] Norberto Elias e John L. Scotson fizeram um longo estudo etnográfico em Winston Parva, nome fictício de uma cidade no interior da Inglaterra, objeto de três anos de estudo nessa pesquisa de campo. Existem os habitantes da cidade, os estabelecidos e os forasteiros, outsiders, considerados estrangeiros; estes não partilham os valores e o modo de vida vigentes na região. Como anômalos, eles permanecem constrangendo com suas estranhezas, a ordem instituída. ELIAS, N. e SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

 

[2]  CASTAÑEDA apud DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 304.

 

[3] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 305.

 

[4] Idem, p. 261.

 

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia. 

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