Cultura

A poesia de resistência e a resistência da poesia I Autoras indígenas | Viviane de Santana Paulo

Li, em um artigo acadêmico que, em períodos de risco à democracia, a produção poética independente assume caráter de resistência política. No Brasil, a década passada foi marcada por uma agitação política singular, cujas reverberações sociais e culturais ainda persistem. A mudança de paradígma se iniciou com as manifestações populares de junho de 2013, que tiveram como pivô o aumento da tarifa do transporte público e se transformaram em revolta generalizada contra a falta de segurança pública, o excesso de violência dos aparelhos de Estado, a corrupção; e foi, em parte, cooptada pela extrema-direita. Neste período, tornou-se mais evidente a fissura entre dois universos poéticos independentes: um deles, de natureza periférica e ligado à cultura do slam, que se manifesta nos festivais literários, onde milhares de poetas de diversas partes do país se apresentam; o outro, ligado à tradição poética nacional e à acadêmica. Com o passar dos anos, entretanto, estes mundos que não se comunicavam, tentam interargir entre si, embora ainda timidamente. Ailton Krenak, por exemplo, é o primeiro escritor indígena a ingressar na conservadora Academia Brasileira de Letras. Mas, infelizmente, os grandes prêmios e incentivos financeiros ainda continuam nas mãos da classe privilegiada.  

A chamada “poesia de resistência” é produzida principalmente por negros, indígenas e jovens. Mas o que é poesia de resistência ou poesia política? Segundo Aristóteles, o homem é um animal político (zoon politikon), ele é o conjunto de várias ações combinadas. Ações intelectuais, morais, religiosas e políticas. Em todas elas sobrepõe-se a ideologia existente em cada ser. A partir do momento que se vive em sociedade, o homem se torna um ser político. O homem pleno é um animal político”. Partindo desse princípio é incontestável o relacionamento entre política e arte existente desde o início da evolução dessas formas de expressão humana. 

Na literatura encontramos muitas obras sujeitas a pressupostos políticos. A viagem de Vasco da Gama à Índia, retratando a época dos Descobrimentos e vangloriando o patriotismo português, emblematizou-se em Os Lusíadas, de Camões. Na “poesia participante” de Castro Alves, a temática de seus versos está voltada também às causas sociais de seu tempo, sobretudo do Abolicionismo. A obra magma, Os Sertões, de Euclides da Cunha, contém em si toda a gama do aparato político humano: as relações do homem com a natureza, com a religião, com o seu próximo e com o poder. Mesmo no classicismo alemão, tendência estética voltada à contemplação da alma e aos conflitos anímicos, o autor não renuncia a abordagem de fundo político, como no exemplo do poeta Hölderlin, na obra Hiperión ou o Eremita da Grécia, em que retrata acontecimentos histórico-políticos como a Revolução Francesa e a luta dos gregos pela liberdade na guerra grego-turca. Ou a aversão de Friedrich Schiller contra a arbitrariedade, corrupção, injustiça e as intrigas da dinastia absolutista reproduzida no drama Guilherme Tell. 

Partindo dessa reflexão poder-se-ia vincular toda obra artística à política, subentende-se os aspectos históricos e sociais de um povo ou de uma época. Alguns autores, contudo, são enfáticos em defender o princípio de que a arte não deva se embrenhar na política, pois esta aniquilaria o deslumbramento transcendente que leva ao universal. A política seria algo prático, voltado para os mortais, para o efêmero da época, indigna da aura estética imaculada da arte e sua epifania. Mas há inúmeros autores que alcançaram uma forma estética de unir a política à arte, transcendendo o terrestre e atingindo o universal. É o caso, entre outros, de Bertold Brecht e Lima Barreto. 

Durante séculos as mulheres indígenas e negras foram marginalizadas na sociedade brasileira havendo um apagamento e privação histórica de sua cultura e presença, que persistem, em termos, até os dias atuais. Felizmente, no âmbito da literatura, as autoras indígenas vêm ocupando um espaço cada vez mais importante de visibilidade. Elas se esforçam em construir uma literatura que conduza à ecologia e à sustentabilidade e que transmita um autêntico senso de identidade. Temas em torno das consequências do colonialismo, da opressão do Estado e do direito à terra são constantes em suas obras.

A poeta e ensaísta, Eliane Potiguara, de origem potiguara, é uma das vozes mais importantes na produção da literatura indígena brasileira. Autora da coletânea de poesias “Metade Cara, Metade Máscara”, ela trabalha com diversos projetos que envolvem propriedade intelectual indígena, junto ao Instituto Indígena de Propriedade Intelectual e à Rede de Escritores Indígenas na Internet, além de fazer parte da Rede Grumin de Mulheres Indígenas. É formada em Letras e especializada em Educação Ambiental. Potiguara foi uma das 52 brasileiras indicadas para o projeto internacional Mil Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz. 

A autora Graça Graúna, também descendente de potiguaras, professora adjunta na Universidade de Pernambuco, enfoca temas relacionados à literatura, cultura indígena e aos direitos humanos. É autora de “Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil”. Suas construções poéticas relacionam paisagens urbanas à memória do território indígena. Seu percurso literário diz respeito à reapropriação de suas referências culturais ameríndias, buscando uma reterritorialização simbólica. 

Auritha Tabajara é a primeira cordelista indígena do Brasil. Sua obra, “Magistério indígena em verso e prosa” foi adotada como leitura obrigatória nas escolas do Ceará. A tradição oral é de grande importância na cultura dos povos indígenas. Foi assim também que Auritha entrou em contato com as histórias, livros e cordéis típicos da cultura Tabajara do litoral cearense. Além dos preconceitos decorrentes de um meio literário ainda dominado por homens, Auritha Tabajara tem de lidar com a homofobia por ser lésbica. 

Márcia Wayna Kambeba, pertencente à etnia Omágua Kambeba, no interior do Amazonas, é autora da coletânea de poemas De almas e águas kunhãs. Nas palavras de Wayna Kambeba: “O meu livro trata do papel da mulher indígena em todas as relações estabelecidas em que nós adentramos, a mulher indígena como pajé, na política, na proteção do meio ambiente e de nosso território”. Ela também é pesquisadora de geografia, e enfatiza que a literatura é voz contra as adversidades e as violências que os povos indígenas enfrentam no Brasil desde a chegada do europeu. 

Trudruá Dorrico (Julie Dorrico), pertencente ao povo Macuxi, é escritora e pesquisadora de literatura indígena. Doutora em Teoria da Literatura e mestre em Estudos Literários,  ficou em 1º lugar no concurso Tamoios/FNLIJ/UKA de Novos Escritores Indígenas em 2019. É autora de Eu sou macuxi e outras histórias e organizadora de dois volumes de “Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção”. O segundo volume é dedicado a “autoria, autonomia e ativismo”. As obras ganharam destaque por fazer uma historiografia da literatura indígena e expansão do número e da análise de autores nativos publicados no país. Na opinião de Dorrico, o racismo contra os povos indígenas, que só foram reconhecidos a partir da Constituição de 1988 como cidadãos com direitos, não é sempre levado a sério na sociedade brasileira. Os Macuxi são descendentes do herói mítico Macunaíma, mas a narrativa interpretado por Mário de Andrade difere muito da narrativa oral indígena. Os Macuxi vivem principalmente na terra indígena Raposa da Serra do Sol, em Roraima. 

Aline Rochedo Pachamama, originária do Povo Puri da Mantiqueira, é historiadora, escritora e idealizadora da Pachamama Editora, (editora formada por mulheres originárias/indígenas). Em julho de 2016, lançou o projeto “Herança Indígena, Memória afetiva e História”, primeiros livros indígenas bilíngues. É autora do projeto literário “Mulheres Indígenas em Contexto Urbano, e do livro “Guerreiras”. 

Lia Minapoty, originária do povo Maraguá, é autora dos livros infato-juvenis, “Com a noite veio o sono”, que conta a lenda do nascimento da noite. Para os Mariguás, a noite não existia. E “Yara é vida”, cuja temática fala sobre o valor místico da água para este povo. Casada com o escritor, ilustrador e geógrafo, Yaguarê Yamã, é também ativista na luta dos maraguás pelo reconhecimento e demarcação dos territórios indígenas e promove a diversidade das culturas dos povos originários.

A literatura continua sendo uma forma de resistência e empoderamento social. Seus meios de alcance aumentaram com as novas tecnologias e proporcionam aos poetas formas acessíveis de divulgação das obras à população. Quando falta espaço para eles nos meios tradicionais, eles se reinventam através de saraus, movimentos e festivais literários nas comunidades. Agora resta os meios institucionais aprenderem a valorizar esta imensa diversidade e este dinamismo frutífero da literatura brasileira atual, e promovê-la nacional e internacionalmente. 

 

Viviane de Santana Paulo (São Paulo/Berlim), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, lebendiges wesen namens gedicht – ser vivo chamado poema (Engelsdorf Verlag, Leipzig, 2023), distribuição de passos (2023)Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publica poemas em revistas e jornais entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; assim como nas revistas Orte (Suíça), DiVersos (Portugal), Argos e Alforja (México). Traduziu vários poetas alemães, incluindo Jan Wagner, Nora Bossong, Josef Kafka, Sarah Kirch, Gottfried Benn. Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de Arges, Romênia. (vsantanapaulo@yahoo.com.br).



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