Cultura

A origem e as épocas da filosofia | Libanio Cardoso, Thayla Gevehr

A ORIGEM E AS ÉPOCAS DA FILOSOFIA

 

Dos muitos modos de considerar a filosofia, o mais originário será sempre aquele que permita compreender, desde ele mesmo a história da filosofia, dando sentido ao curso de tudo que nos traz a nós mesmos. E chegamos a nós mesmos dilacerados, em aguda incompreensão, em crônico e sintomático alheamento. Há, por isso, somente um modo filosófico de considerar a filosofia: originariamente. Mas que significa essa palavra com ares de grandeza? Originariedade é o poder de ser horizonte. Cada pensador é, mais que um homem – isso ele o é em seus erros e descaminhos – titulo de uma época do pensamento, à medida que seu pensar é horizonte para nos reunirmos a nós mesmos, sem anular toda a dispersão estilhaçada da vida.

 

Pode-se nomear tais épocas através das palavras fundamentais, em torno das quais reuniram-se ou surgiram pensadores: phýsis e alétheia, lógos e idéa, alétheia e enteléquia, Deus, Descartes (o cogito), razão transcendental, Espírito absoluto, genealogia. Essas épocas, citadas em conformidade com a “cronologia”, obedecem ao tempo instaurado pelo poder de ser horizonte delas mesmas. “Heidegger” dá nome a uma época do pensar. Isto não significa que seja o único ou o maior filósofo, mas que suas questões são fundamentais e estão abertas, dando horizonte a tudo mais.

 

Há sempre o risco, nisso, de que se tome Heidegger como nome desta época do pensamento apenas porque teria sido o pensador afamado que mais recentemente interpretou a história da filosofia. Mas o critério para esse ser-recente não provém do poder ser horizonte, não nasce do pensamento: nasce do estar inteiramente abarcado por um horizonte de pensamento. É isto o senso comum. Em oposição, deve-se dizer que a filosofia de Parmênides é tão recente quanto a de Heidegger, porque seu poder de dar a compreender a totalidade dos fenômenos, e, mais e antes, seu poder de dar a compreender o modo de ser da totalidade – consiste num dizer-o-mesmo que funda épocas de senso comum e de esforço humano (senso comum: o esquecimento do pensamento da origem). 

 

Onde está o originário na originariedade? No Mesmo. Se o Mesmo fala, sua boca pode articular mundo e ser desde Platão ou Kant, desde Hegel ou Agostinho, desde o jarro empoeirado no fundo do jardim ou a epifania de Giotto, desde a larva ou desde o carro. Mesmo é o nome grego fundamental para o que está em questão na filosofia, e, mais, para o que pode se mostrar até na filosofia, ainda que não necessariamente. Desde o Mesmo pode-se pensar todas as épocas da história da filosofia, incluída aquela que nomeamos “Heidegger”. Em grego, isto se diz tó autó. A história da filosofia, considerada assim, não é sequência cronológica de ocorrências de interpretação, mas a chegada a um único lugar do dizer, que permite cronologias nascidas do esquecimento da forma própria do dizer.1 Esse lugar do dizer é pura forma. Seu “conteúdo” é sempre esquecimento. A necessidade do esquecimento é no entanto formal. O conteúdo mesmo é forma. Toda articulação sucede ao dizer originário ou formal, e a filosofia, por isso, essencialmente é o fracasso destinado, o fracasso de um ter que dizer aquilo que se esquece na articulação de qualquer discurso. Esta é a razão pela qual afirmamos que todas as filosofias são o pensamento do Mesmo, e, porque o são, são pensamentos da finitude.

 

Por ora, fique dito que o originário da originariedade, peculiar à filosofia, seu poder de ser horizonte, consiste em que o dizer que lhe é próprio provém do dizer-se do Mesmo. É este quem fala, não o pensador. Eis o destino da forma: perder-se de si em seu ser. O Mesmo é pois o ser da forma, que consiste em dar-se um conteúdo de esquecimento que, como tal, não será a ausência de conteúdo em um lugar chamado Memória, mas ser a possibilidade da origem no esquecimento.

 

Ler atentamente a passagem anterior conduz ao absurdo: a Origem funda o originado como seu lugar de origem. É no esquecimento, aqui em nossa casa comum de loucuras cotidianas, que a filosofia reina silenciosa, como mudança de fundo e horizonte último da linguagem. E em meio a esse esquecimento surge e ressurge a ultrapassagem dos pressupostos, em áreas ou no todo, que nos leva a um novo horizonte de sentido. Filosofia é a língua com que os cercados por horizonte de repente se veem e estranham-se falando palavras de horizonte. Os finitos dizem infinitamente o finito.  A filosofia é o dizer desse absurdo. Porque é assim, seu destino é sempre ter que falar de novo o poder ser origem do originado. Pois o originado é ele mesmo esquecimento que se lembra de si como tal, e assim retorna, com a linguagem dilacerada de uma nova época do pensamento, para presidir a incompreensão e as tarefas humanas.

 

Nota:

1 A história da filosofia é uma tautologia. A história da filosofia é uma tó autó logia.

 

 

Libanio Cardoso: Doutor em Filosofia pela UFRJ e professor de Filosofia na Unioeste (Paraná).

 

 

Thayla Gevehr: Graduada e mestre em Filosofia pela Universidade do Oeste do Paraná, com dissertação sobre Alétheia e Pólemos em Platão e Heidegger; doutora pela Universidade Federal de Goiás, com tese sobre problema da si-mesmidade em Heidegger. Professora no IFPR-Cascavel entre 2019 e 2021. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Historia da Filosofia Unioeste/CNPq. Coordenou os Grupos de estudo Laques (2020), Leituras de João Guimarães Rosa (2021) e é colaboradora do projeto Leituras de Carolina.

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