Cultura

A grande beleza | Müller Barone

Eu nunca poderia imaginar o que daria uma mistura entre Antonioni, Fellini e Céline. Nem sabia se algo assim, tão magnífico, seria possível. Como juntar o silêncio e a claustrofobia existencial de Antonioni, a ironia circense de Fellini e a amargura, quase desolação e desconsolo, de Céline? Pois, atento a uma recomendação/bronca do meu amigo Cláudio e a recomendação quase impositiva da Juliana, assisti A Grande Beleza, do diretor italiano Paolo Sorrentino, uma ausência grave no meu curriculum, segundo o Cláudio que, antes desse, indicou Juventude.

 

De cara, o filme já assombra e desafia. Nos créditos iniciais o aviso tão soturno quanto aquele que Dante colocou na porta do inferno (Abandonai toda esperança Vós que aqui entrais), mas na escrita cáustica de Céline em seu perturbador e dilacerante romance Viagem ao Fim da Noite: “Viajar é muito útil e estimula a imaginação. Tudo o mais é desilusão e dor. Nossa própria viagem é inteiramente imaginária. Essa é sua força. Ela vai da vida à morte. Pessoas, animais, cidades, coisas, tudo é imaginação. É um romance, simplesmente uma ficção narrativa”. Aqueles que têm medo de encarar a vida sem máscaras que apertem ‘stop’ no controle remoto. ‘Pause’ é só adiar para respirar fundo e entrar no inferno de Sorrentino.

 

O diretor nos leva de tal modo para sua trama que é impossível evitar ir até ao fim daqueles contundentes e lindos 140 minutos de filme. 

 

De início, com um pouco de olhar cinematográfico, cai-se diante de planos tão bem elaborados que lembram o apuro visual e técnico de outros gênios como Tarkovski, Theo Angelopoulos e Terrence Malick. Sorrentino filma sem pressa, devagar, mostra tudo o que deve ser mostrado sem um único excesso, nem mesmo de um frame. Carrega-nos pela história com a tranquilidade de um Gondoleiro, embora o filme se passe em Roma. Cada microssegundo da obra é parte indispensável de uma narrativa, repito, perturbadora que nos seduz e captura como os fios de uma teia de aranha da qual é impossível a presa escapar. Um caleidoscópio de imagens, emoções, sons e desalento, tudo de uma beleza contagiante, até quando as máscaras começam a cair.

 

É visível a temática de La Dolce Vita, quase dá a impressão de um elaboradíssimo remake da obra sempre lembrada (mas não a maior) do mestre Fellini. E, de repente, ‘não mais que de repente’, sente-se a incomunicabilidade e o sufoco de Antonioni, o protagonista se perde de sua fortaleza e cai na pior armadilha em que alguém pode cair, ou seja, na amargura e na percepção da trivialidade e, talvez, do absurdo da vida que se colocam diante dos olhos e do coração de Bardamu. Está montado o cenário para um filme excepcional, daqueles que entram para a história e para a lista de indispensáveis.

 

Cada cena é memorável por si só e pela técnica. Fotografia impecável, arte de tirar o fôlego, diálogos enxutos, exatos, quase sempre cortantes, cada personagem é uma faceta do que somos socialmente, do que vivemos em nosso íntimo, nossas contradições e, com a habilidade de um Jack Estripador, Sorrentino vai rasgando nosso eu social hipócrita ou venal e tirando a máscara de cada um dos personagens. Jep, o maior dos cínicos, percebe o vazio de sua Dolce Vita e agarra-se ao seu estilo para não desmoronar. Quase consegue.

 

A cena com os flamingos é uma das mais belas metáforas já feitas no cinema, ao menos nos últimos vinte anos. E digo metáfora por amor à retórica, mas o que a cena define, e seu desfecho, é tão óbvio que basta ter olhos para perceber ali, basicamente, um resumo do filme e das questões que atormentam o personagem central. Perfeito, magnífico, aplausos em pé e inúmeros bravos.

 

Nestes tristes tempos em que temos sido maltratados por baboseiras, filmes de segunda categoria ganhando imerecidos prêmios, é um lenitivo para a alma cansada, à inteligência violentada de quem ama cinema e cultura ter a benção de assistir um filme como A Grande Beleza.

 

Houve críticos aventureiros e despreparados que disseram que o filme é uma crítica à arte moderna italiana. Nada mais tolo e inadequado. O tema aparece no filme, claro, mas serve como uma nota para demonstrar a perda dos valores reais da vida, a trivialidade do viver de aparências e tendências, a pasteurização da inteligência, também muito mostrada no uso de celulares e enfastiantes selfies que se preocupam mais com a imagem de si mesmo que da arte que está atrás de si. Os que contemplam a paisagem e a arte de forma real e lúcida estão morrendo, como o japonês embriagado pelo que vê e fotografa no começo do filme.

 

Os diálogos são feitos com mestria e forrados de cultura, mas quem é gênio sabe que não pode dar ao público só a erudição, ainda que esta venha como pano de fundo. Então, o diretor entrega a moral da história em frases simples e momentos inesperados, tornando tudo muito grandioso. 

 

Fiquei em dúvida sobre que frase, e o plano em que ela se revela, resumiria o filme (não se preocupem, não é spoiler). Na verdade, são três grandes frases que concorrem e todas são ditas por coadjuvantes, porque quem faz um filme assim sabe que o suporte para o diamante não pode ser maior que o brilho da pedra. As três parecem totalmente contaminadas de dois gênios da literatura francesa, Céline, obviamente, e Proust. Ambos permeiam todo o filme. E, por fim, escolhi uma que parece contaminada até de Beckett: “Não, você não é ninguém”.

 

 

Müller Barone é diretor e roteirista de cinema, escritor e amante de literatura. Sócio gerente da produtora Vento Negro Produções.

 

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