Cultura

A floresta de estátuas | João de Mancelos

Nenhum deles acreditava no que via. Instintivamente, o homem
alto tocou no braço da jovem esposa, que segurava, contra o peito, um
bebé de apenas um mês, adormecido. Mantiveram-se num silêncio
estupefacto: ele, ela e o agente imobiliário. Três figuras no cimo da
colina, a contemplarem a paisagem, que parecia saída de um sonho tão
estranho quanto perverso.

A floresta estendia-se a seus pés, ao longo de uma centena de
metros. Contudo, não se tratava de um bosque frondoso. De modo
algum era um sítio aprazível onde o seu filho pudesse, um dia, aprender
o nome das árvores, perseguir lebres ou imitar o voo da passarada. Ali, o
casal jamais conseguiria dar longos passeios, no mês de junho, fazer
piqueniques ou amar-se, na cumplicidade de uma clareira.

Em vez de árvores, havia três dezenas de estátuas, erguidas num
solo ermo e poeirento. Eram esculturas brancas, em tamanho real, de
homens, mulheres, crianças e até cães. Não exibiam as típicas poses
artísticas da estatuária grega ou romana. Antes, pareciam ter sido
imobilizadas, num ápice, quando se encontravam em movimento.

Um galgo de pedra perseguia para sempre um menino; alguns
homens paralisados, com a mão em pala sobre os olhos, contemplavam
algo, há muito desaparecido, no céu; dois jovens amantes preparavam-
se para um beijo que nunca acontecera; uma menina de cinco ou seis
anos tropeçara, petrificada. Possuíam uma perfeição tão assustadora
que os três observadores, secretamente, receavam que as estátuas
ganhassem vida.

O homem alto, com cerca de trinta anos, quebrou o silêncio:

“Quem esculpiu estas estátuas?”

O agente imobiliário encolheu os ombros:

“Deus lhe responda.”

“Alguém no povoado sabe?”

“Não, mas contam uma lenda.”

“E o que dizem?”

“Garantem que estas estátuas eram homens e mulheres de carne
e osso, como nós. Colonos que se instalaram aqui, há centenas de anos.
À chegada, cortaram todas as árvores para construir casas, fazer
fogueiras e aproveitar a terra para cultivo. O deus pagão que zelava pela
floresta ficou furioso. Por isso, decidiu castigá-los. Transformou-os em
pedra.”

A jovem mãe, morena e de estatura média, estreitou o bebé contra
si, como se o procurasse proteger, e murmurou:

“Não gosto disto.”

“Nem eu”, secundou-a o marido. “Dá-me arrepios.”

O casal tinha investido todas as economias e a pequena herança
do tio dele numa porção de terreno fértil, bordejando o rio, com um poço
de água límpida e uma habitação humilde de quatro assoalhadas, junto a
um pequeno celeiro de madeira, a descascar tinta. A compra, quase
instintiva, fora feita através da internet. Seduzira-os a beleza das
fotografias bucólicas, a promessa de uma vida tranquila, longe da
azáfama da cidade, e um preço à medida da sua bolsa.

Uma semana depois, no final de setembro, instalaram-se, com os
haveres ainda parcialmente por desencaixotar, na moradia a que agora
chamavam lar. Jantaram cedo, deitaram o bebé, e sentaram-se no
alpendre, para apreciarem o ocaso a cair como poalha dourada sobre as
montanhas longínquas, e escutarem o chilreio das aves do entardecer.
Levantara-se uma brisa fresca, anunciando precocemente a vinda do
outono. Era agradável, após uma jornada extenuante com a mudança de
casa.

A esposa suspirou:

“Não me recordo da última vez que reparei no pôr do sol na
cidade.”

“Nem eu. O nosso dia a dia resumia-se a casa, escritório, casa…”

“No campo, o tempo parece que passa mais devagar. Podemos
apreciar a vida.”

“É verdade. Penso que vamos ser felizes, aqui. E o nosso filho vai
ter uma infância como nunca tivemos.”

Deram as mãos. Acreditavam.

Contudo, nessa noite, o destino encarregou-se de os desenganar.
Às três da manhã, o agricultor acordou de um pesadelo. Ao longe,
escutava gemidos ou uivos enrolados na ventania. Sentou-se na cama e
apurou o ouvido. Não se tratava de um sonho. Ergueu-se
cautelosamente, para que as molas do colchão não rangessem e não
acordasse a esposa que repousava a seu lado, exausta das mudanças,
nem o bebé, adormecido a sono solto no berço de madeira.

O homem calçou os chinelos, dirigiu-se à sala, pé ante pé, e abriu
a porta para o exterior. Fazia fresco. Era noite cerrada e, sem a poluição
visual da cidade, podia divisar as estrelas e os planetas Vénus e Marte.
Uma rajada de vento soprou-lhe poeira vermelha para os olhos. Limpou-

os com a manga do pijama. O som dos gemidos era, agora, mais
intenso. Desceu os degraus do alpendre e escutou. Caminhou na
direção do ruído ululante, decidido a desvendar o mistério.

Escalou a pequena colina e, já sem fôlego, contemplou a floresta
de estátuas, ainda mais assustadora, de noite. Parecia que as esculturas
emanavam luz própria, por causa da superfície branca e polida. Era o
vento, verificou, que ao passar por entre todas aquelas imagens,
assobiava, produzindo o som horripilante de um animal a ser torturado.

Venceu o medo e desceu a encosta, cauteloso, para não tropeçar
nos chinelos. Observou, mais de perto, as figuras que o haviam
impressionado no primeiro dia: os dois amantes petrificados, num beijo
nunca concluído. O seu rosto, erodido pela ventania, revelava ainda a
suprema perfeição do artista. Acariciou a face fria da mulher de pedra.
Não se notavam marcas de cinzel, tal era o realismo. Havia algumas
fissuras, apenas, resultantes da passagem do tempo. Um século? Dois?
Ninguém sabia.

De súbito, o homem questionou-se. E se a lenda fosse verdadeira?
E se aquela floresta de gente tivesse sido mesmo amaldiçoada? Sentiu
um calafrio percorrer-lhe o corpo. Decidiu abandonar o local
rapidamente. Subiu, com esforço, a encosta, tropeçando. Ao chegar ao
topo da colina, divisou a sua humilde casa, perdida no meio do campo
de cultivo, ao pé do celeiro.

Quando chegou, por fim, a esposa aguardava-o, sentada no banco
do alpendre, embalando o bebé. Questionou-o, assustada:

“Onde estiveste? Pregaste-me um susto de morte. Acordei sem ti à
minha beira. Procurei-te pela casa toda…”

“Não conseguia dormir com estes gemidos.”

“Nem eu. Descobriste de onde vem o som?”

“Sim. É da floresta de pedra. O vento assobia, ao passar pelas
estátuas.”

A mulher suspirou, resignada:

“Com o tempo, habituamo-nos.”

Porém, não foi assim. Noite após noite, a melopeia de gemidos
torturava-os, não lhes permitia recuperar forças, desgastava-os. O
agricultor labutava sem vontade e quase adormeceu ao volante do trator.
A mulher deixava cair a loiça, desatenta. O bebé desatava num choro
incontrolável. A mínima irritação conduzia a discussões irrazoáveis.

Os dias transformaram-se em semanas, e as semanas, em meses.
Nada mudou. Os ganidos do vento não os deixavam dormir. Numa noite
de dezembro, preenchida pela lua cheia, o agricultor decidiu que
bastava. Ergueu-se da cama, vestiu-se à pressa, furioso, calçou as
melhores botas e muniu-se de uma picareta. Aquela tortura terminaria
naquela hora.

“Onde vais?”, perguntou a esposa, estremunhada.

“Acabar com este maldito ruído.”

A mulher engoliu em seco. Tinha um mau pressentimento.

“Tem cuidado, por favor.”

Decidido, o agricultor marchou através do campo e, depois, colina
acima e colina abaixo.

Ao chegar à floresta, não hesitou: desfechou a raiva nas primeiras
estátuas, a dos amantes que nunca se beijaram. A picareta decepou-os
em apenas três golpes. Depois, amputou os braços a um dos homens

mais idosos do grupo, um indivíduo de longas barbas, que batizara de
“patriarca”. Quebrou a coluna vertebral do galgo de pedra com uma
pancada seca, cortando-o em dois. Fez o mesmo a um mastim.

Ocasionalmente, os estilhaços atingiram-no. Ignorou a dor e os
ferimentos. Sentindo o sangue e a frustração subirem-lhe à cabeça,
entusiasmou-se. Sem cessar, partiu os membros a homens, mulheres,
crianças e bichos. Mesmo quando as esculturas já se encontravam
derrubadas, não estacou. O som metálico e ritmado dos golpes de
picareta preencheu todo o vale, reverberando na encosta.

Meia hora depois, concluiu a tarefa, reduzindo quase a pó a
estátua da menina de seis anos, que durante séculos correra,
ledamente, pelo campo.

Olhou em redor, orgulhoso: apenas cacos, fragmentos de cabeças
quase irreconhecíveis, braços, pernas e troncos estilhaçados. O ruído
dos gemidos cessara. Completamente. O vento corria agora, livre e
solto, através da planície, num som tranquilo e natural. Até que enfim!

Exausto, o agricultor tombou de joelhos, chorando, numa aliviada
catarse.

Depois, reunindo as poucas forças que lhe restavam, subiu e
desceu a colina, ansioso por relatar o feito à esposa e abraçá-la. Perto
de casa, escutou um som plangente. Não vinha da floresta, agora para
sempre emudecida, mas da sua habitação. Largou a picareta e
precipitou-se, tropegamente, para o interior.

Encontrou a esposa lavada em lágrimas e com o terror estampado
no rosto.

“O que foi, mulher? O que aconteceu?”

Ela apontou para o berço de madeira do menino.

“O nosso filho!”

A medo, o pai aproximou-se. À luz do luar, afastou, com cuidado, a
manta azul. E partilhou o horror da esposa. O bebé jazia transformado
em pedra.

 

Fotografia de João de Mancelos

João de Mancelos nasceu em Coimbra, em 1968. É professor universitário desde 1992. Publicou 27 livros. No ensaio, destaca-se O marulhar de versos antigos: A intertextualidade em Eugénio de Andrade (2009) e Manual de escrita criativa (2012); na poesia, A sombra de um homem só: Poemas selecionados (2022); no conto, Nunca digas adeus ao verão (2021) e A rapariga que adorava finais felizes (2021). Este último livro integra o Plano Nacional de Leitura. Foi distinguido em diversos concursos literários. Dois contos seus foram adaptados a teatro e um a cinema, no Brasil.

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