Uma via analítica para a poesia de Fernando Echevarría | Adília César
A poesia de Fernando Echevarría implica uma aproximação cautelosa por parte do ingénuo leitor contemporâneo. Neste reino da criação que por vezes nos parece assombrar pelo muito que nada em nós inscreve, surgem iluminações nos caminhos do entendimento poético, as quais são imprescindíveis à sobrevivência espiritual da humanidade. Fernando Echevarría é uma dessas iluminações, um passaporte para o engrandecimento de uma estética da linguagem que dificilmente encontra um brilho paralelo.
Não importa aqui catalogar a poesia de Fernando Echevarría, nem tão pouco insistir na densidade dos seus poemas como frequentemente encontramos em relatos esparsos acerca da sua escrita; parece-me mais interessante imergir nas palavras do poeta, escavar nos seus versos e tentar compreender essas irradiações significativas. Quantos mundos cabem neste mundo? O mundo da poesia reflexiva e da especulação filosófica; o mundo da meditação que corresponde a diversos planos da realidade; o mundo da poesia como instrumento facilitador de conhecimento e como decifração de uma dimensão absoluta perante a verdade metafísica de um dicionário echevarriano. Cada palavra é um mundo do tamanho de um imenso vagar. Assim deve a sua poesia ser lida: vagarosamente. A paciência de uma poesia profética enquanto viagem de um nómada pelas paisagens do espírito, que são, afinal, as paisagens do mundo humano. O pensamento pensou-se até ao fundo de si (…), poetiza ele. Não há pressa porque é preciso valorizar não só o poema, mas cada palavra, bem como o rigor e a perfeição das ideias implícitas através de uma linguagem purificada no processo, por um lado, e pura no objecto resultante, por outro, logo, pautada pela artisticidade poética sem demagogia crítica.
Fernando Echevarría pertence à galeria dos principais e é respeitado num círculo mais erudito do panorama literário. Poeta generoso em produção poética, publicou até ao momento mais de duas dezenas de obras nas Edições Afrontamento, sendo o seu último livro de 2018 – Via Analítica. Poeta discreto nas aparições públicas, apesar dos inúmeros prémios, galardões e distinções que recebeu.
Leio Fernando Echevarría e torno-me íntima da sua transparência, colocando-me à mercê de um horizonte eterno que é o logos do requinte e o topos da dignidade poética. Dialogo com ele na sombra e ele responde com a luz dos seus poemas. E, todavia, existe vertigem nessa miragem, uma certa patologia benigna e cintilante. O mundo parece gasto, mas pode sempre desabrochar de novo.
Há o silêncio prévio. Há o/ que se funda no respeito/ da inteligência. Mas ambos/ aguardam que o pensamento/ ou o mova o estado/ diverso que vem de dentro. / O mundo, num, está gasto;/ no outro abre-se o aberto/ a horizontes onde o fausto/ deslumbra o conhecimento/ tão docemente que andarmos/ é entrar a padecê-lo. / Ou ficamos rodeados/ de uma luz de estarmos vendo/ o que nos chega. E é santo/ pois se ilumina de dentro. *
Poderia dizer-te que todo o poema é silêncio. A seta apontada às palavras provoca uma reacção quase sempre adversa. Questionar a sombra e o horizonte, o tédio e o desembarque dos sentimentos junto dos outros, questionar tudo – é a razão de estarmos aqui, com essa arma apontada à cabeça. Todo o poema é silêncio imposto pelo ruído de fundo, essa voz humana que ressoa, incessantemente, antes de chegares à saída da linguagem.
Quem tem tempo/ vê mais além, onde tudo/ irrompe do pensamento/ para aí voltar a ver/ a fonte de ver por dentro. / Então sobe a liberdade. / E é dela que começa a ver-se o mundo da análise/ e a sua penúria aberta/ de onde flui, à justa, quase/ toda a glória que a pensa. *
O princípio parecia feliz, no poema. Queres escrever um poema, mas as coisas da vida intrometem-se e nidificam em versos soltos que ainda não são o poema. Fica a palavra “poema” a bater na cabeça, no coração, nas mãos. Somos tão livres no interior esplendoroso que se abre ao pensamento. A indagação precede a cura.
O que excede espera nome/ adequado a esse excesso. / Não mensura. Desenvolve/ ímpeto de pensamento/ a alargar-se do fenómeno/ para o infinito dentro. / Um dentro que se comove/ sem qualquer espaço ou tempo. *
Fica o corpo num arco de pânico, esticado até ao limite da forma. E o pensamento enaltece a palavra, em consequência do conflito endémico. Ímpetos, súbitos, implosões do corpo finito. O espaço e o tempo ausentam-se na impossibilidade de dar resposta ao sintoma poético. Sabes, quando se está morto, sabe-se tudo.
Ausentando-se foi, para a procura/ ir construindo um espaço/ onde fosse possível erguer uma/ inteligência que sofresse o espanto. / Aí, seria parecer fecunda/ deslumbração a recolher o acto/ que, do fundo de si mesma, exuma. / E desenreda seu sentido estranho/ de forma a se abstrair a transparência/ do desenredamento. Do obstáculo/ para o a ver aparecer certeza/ próxima do procurado. *
Corpos plantados no fundo de um lago, à deriva. Sinto o movimento da língua quando as palavras caminham sobre ela, na insegurança dos seus significados, na especulação filosófica que me conforta. Quero compreender esses sentidos ocultos, mas rendo-me a esta avassaladora preocupação: quem está a atravessar a minha ponte?
A teoria comporta/ o seu comportamento explícito. / Sendo palavra e imóvel, / ergueu, lento, o edifício/ onde reside a paciência/ consubstancial do espírito. / Ambos, conjuntos, são obra. / Edificação, prodígio/ exemplar, que activa e serve/ o milagroso equilíbrio/ em cujo espírito opera/ o esplendor conseguido. / Como é sensível a terra/ assim habitada. O ritmo/ de intimidade e estreia/ nutre-se quase de símbolo. / Símbolo de inteligência/ onde cumpre o espírito. *
Sensação espiralada e penetrante. Harmonia densa do acrónimo – ovo – que é vida: a divisão das células, o rizoma, a vida. Estando a palavra deitada sobre uma linha alta do espírito, a obra poética é a verticalidade do pensamento magnânimo, que se vai elevando ao cosmos, mas sem nunca se desligar do cordão umbilical que o prende à terra, ao corpo vivo. Nunca é o mesmo poema, mas é sempre a mesma forma de vida, íntima, inédita, simbólica. Vida espiritual em corpo de sangue, ramificada no esplendor da palavra. Torna-se assim possível remover limites e fronteiras ao que é hermético, tornando o ser humano inconfinável, mas universal na sua condição latente. Há um coração que bate, há uma cabeça que pensa, há um espírito que se ramifica e é árvore de conhecimento.
* Poemas de Fernando Echevarría, in Via Analítica, 2018, Edições Afrontamento
Adília César é docente e formadora no âmbito da Didáctica das Expressões Artísticas, sendo Mestre em Teatro e Educação pela Universidade do Algarve. Tem colaborações dispersas em antologias e revistas literárias. Publicou livros de poesia: O que se ergue do fogo (2016); Lugar-Corpo (2017); O Tempo O Tempo (2019); Uma agulha no coração (2020); Gelo (2021); Delirium (2021). É co-fundadora do projecto literário LÓGOS – Biblioteca do Tempo, com Fernando Esteves Pinto.