Cultura

Uma política do corpo na poesia amorosa de Roberto Piva

Voltar ao corpo, como quem volta de um transe, onde tudo começa, na carne do corpo, no corpo do poema. Entre os anos de 1970 e 1980, o corpo foi exaltado nas artes como veículo da luta pelo direito de existir em sociedade, por parte dos marginalizados, ou daqueles que são chamados hoje de minorias. Mostrar o corpo, falar do corpo, erotizar o corpo, passou a ser uma atitude política necessária. Para dizer desse lugar e dessa atitude leio aqui alguns dos poemas de amor do poeta paulistano Roberto Piva (1937 – 2010).  

 

Em tempos de ódio, falar de amor é revolucionário. Em tempos de um conservadorismo crasso, amar eroticamente e livremente é passar pelas mínimas brechas do status quo; em tempos de supervalorização de bens, produtividade e consumo, viver o ócio e o prazer (gasto de energia, sêmen, vida) é também revolucionário. Os poemas de amor de Piva operam essa revolução através da irreverência, isto é, do gesto de manterse ereto e nunca reverente a qualquer forma de poder econômico, tanto menos intelectual ou político. 

 

Roberto Piva já foi lido por nós, seus críticos, e/ou leitores especializados como o poeta da cidade de São Paulo, que versejou em suas duas primeiras obras os becos, as praças, as periferias, a noite, e todos seus personagens que voam como anjos pela cidade “tacape”, maior “metrópole-necrópole” do país, como se referiu a São Paulo, revelando em toda sua obra uma voz acidamente crítica do modo de vida burguês e moralista daquela sociedade e dos tempos em que viveu. Já a partir de Abra os olhos e diga ah, de 1976, mas principalmente em Coxas, de 1979, 20 poemas com brócoli de 1981, e no inédito Corações de hot-dog é possível encontrar um eu-lírico delirante porque sempre, e muito apaixonado. Esse delírio, muito próximo ao que Nietzsche chamou de impulso dionisíaco, parece se intensificar em linha ascendente desde seu primeiro livro, Paranoia, publicado em 1964, até seu último, Estranhos Sinais de Saturno, de 2008. 

 

Roland Barthes em seus Fragmentos de um discurso amoroso, afirma que a necessidade de falar de amor está justamente no ato de uma afirmação desse discurso que foi excluído dos discursos do poder, foi ironizado por seus mecanismos – as ciências, conhecimentos, artes – tornando-se assim, por sua potência própria, um lugar de resistência. Se o amor segundo a tradição cristã, não implica nenhuma igualdade entre os amantes, como nos ensina Leo Pitzer, e basta-se como um documento legal, o amor professado pela voz poética de Roberto Piva, e derramado como libação aos deuses, tornase um ato político por ser intimamente ligado à anarquia, como lemos no fragmento do poema “XVI” de seu livro 20 poemas com brócoli (1981). 

 

(…) 

todo trabalhador é escravo. toda autoridade é cômica. fazer da anarquia um método & modo de vida. estradas.  

(…) (PIVA, 1981, p.35) 

 

Vejo os poemas de amor de Roberto Piva como retratos de um eu que se coloca a nu em um lugar de fala de resistência; esse eu fala de si mesmo apaixonadamente; não somente porque afirma em autobiografia de 1979: “Minha poesia só é possível quando estou apaixonado”1, mas na evidência de suas vísceras, pois mais do que nua, essa poesia é exposta, é ao avesso. Ao mostrar-se nu e evidenciar o outro – objeto do amor –, o poema desvela esse eu. O amor surge como relâmpago, flash de luz que esmaga – uma trombada e por isso, um acidente – mostra-se como desejo de Eros.     na esquina  

  onde meu coração balança   o Amor – Trombada  relâmpago que esmaga 

(PIVA, inédito, p. 02) 

 

Através do rasgo no tecido do tempo, o acidente abre-se para o acontecimento; o tempo na poesia de Piva só pode ser o Kairós, o poeta não quer a suspensão do “jogo da causalidade”2 como o budista que quer se ver livre do Karma, o amor na poesia de Piva não busca o nirvana, mas o êxtase, a surpresa, o sentir surpreendido no corpo por esse tempo quando

 

  Kairós 

 

Quando pousa o pássaro 

quando acorda o espelho 

quando amadurece a hora 

  (FONTELA, 2015, p.326) 

 

 

Um tempo assim, do acontecimento, lindamente poetizado pela conterrânea de Piva, Orides Fontela, está sempre em suspensão e materializa o amor no espaço do poema que são as superfícies, a pele de tudo que é, onde se faz o calafrio, o prazer e a dor, como lemos neste poema de 20 poemas com brócoli: 

 

XIV 

 

Para o Carlinhos 

  vou moer teu cérebro. Vou retalhar tuas  coxas imberbes & brancas.  vou dilapidar a riqueza de tua  adolescência. Vou queimar teus  olhos com ferro em brasa. 

  vou incinerar teu coração de carne &  de tuas cinzas vou fabricar a   substância enlouquecida das   cartas de amor.  

                                               

                          (música de Bach no fundo) (PIVA, 1981, P.31) 

 

 

Nesse tempo de hiato quando há a espera pela resposta da carta de amor, há dor na pele do poema, e essa dor, um tanto de morte inserida na vida, um tanto de violência disfarçada de erotismo, traz um sentido quiçá paradoxal entre o extremo amor e a tortura que causa o efeito de arrebatamento dos sentidos. 

 

Na carta de amor – tecido do desejo – não há nada de ridículo, como sentiu Álvaro de Campos. Embora a paixão relatada nas cartas de amor seja encharcada do turbilhão do sofrimento, manifesto por “palavras esdrúxulas”, a dor a ela pertencente não serve de remissão, pois nunca acaba, não serve de reconciliação com o mundo em sua dimensão saudável porque essa paixão não sana, ela escorre de um ser amado para outro; nas histórias de amor da obra de Piva, a aventura é sempre.

  

Essa carta de amor é feita de uma substância obtida através da destruição do corpo do ser amado; todos os atributos de beleza do corpo adolescente do amante, ainda que transformados em cinzas, tornam-se o resultado dessa desmaterialização onde reside uma força invisível e estarrecedora. O amor é tamanho que o ser apaixonado quer moer, retalhar, dilapidar, incinerar, queimar o corpo vivo de seu amante para retirar daquela vida um êxtase prisioneiro da dor. O eu poético enamorado inscreve seu desejo abrasado na carta, que é pele, toca na pele do sentido exigindo uma resposta.    o amor    tem esta exigência:    deseja o impossível    & os cometas do coração 

(PIVA, 2008, p. 27) 

 

 

O ser em estado de paixão é adoentado; a condição física reflete a condição de ânimo causada muito pela ausência do ser amado. No poema para Carlinhos a vontade de ação, a vontade de transformar o corpo do outro em substância, resulta na tinta para escrever uma carta de amor que, por sua natureza mesma, se declara, e fica entre o gozo e a dor, à espera da resposta, pois “a voluptuosidade é a carta sem resposta”, como escreve Malcolm de Chazal em Sentido Plástico. 

 

Uma dor assim tão aguda causada pela ausência lemos também em “Tua ausência me dá ressaca” de Luna Vitrolira. No poema de Vitrolira, não há uma perspectiva de resposta ao apelo amoroso. A violência auto imposta no corpo do eu poético também faz emanar a substância apaixonada da loucura: 

 

   TUA AUSÊNCIA ME DÁ RESSACA   nos mares da alma   me faz roer as unhas   até que tudo sangre   até que eu sinta   e a dor se espalhe 

  por toda parte em que eu me fira 

 

   mordo minhas mãos e meus lábios   apago o cigarro com os dedos   puxo um pedaço do meu cabelo 

  e toco fogo na minha língua 

 

  quebro um copo de vidro   com meu próprio peso 

 

   me abro o peito   e te arranco   e te coloco pra fora   como uma úlcera 

  como um cancro 

 

  tua ausência bate minha cabeça contra parede 

  e me esmurra enumeras vezes   enquanto risco na pele   com lápis de ponta fina   a inicial do teu nome   até que me arranhe   até que tudo incha 

  até que tudo 

  some 

  (VITROLIRA, 2018, p.45) 

 

 

Essa ausência incide no corpo do próprio eu poético a necessidade de transformá-lo ao flagelá-lo para que a substância doentia do amor desapareça. O ato de punir o corpo reflete um amor que é projetar-se no outro com imensa força. Aniquilar-se no outro talvez seja o que está previsto na efemeridade da paixão. A letra inchada na pele pede que todo o sentido desse ato se dissipe, não espera, como no poema de Piva, uma resposta para a carta de amor. O eu poético de Vitrolira compõe um corpo que pode ser lido já como uma resposta à ausência do ser amado: é o corpo mutilado a resposta à carta de amor. 

 

Já conhecemos a doçura do amor na dor de Santa Teresa ao ser atravessada pela lança abrasada de Eros. Esse Eros que foi liberto, já pelos poetas modernos, da perspectiva única do amor a Deus ainda fere os corpos ao abismar a consciência, como nos mostra Orides Fontela na transparência de seus versos:  

 

Eros 

 

Cego? 

Não: livre. 

Tão livre que não te importa  a direção da seta. 

 

Alado? Irradiante. Feridas multiplicadas 

nascidas de um só   abismo. 

 

Disseminas pólens e aromas. És talvez a  

        primavera? 

Supremamente livre 

– violento –  

não és estátua: és pureza  oferta.  

Que forma te conteria? Tuas setas armam  

        o mundo 

enquanto – aberto – és abismo  inflamadamente vivo.  

 

(FONTELA, 2015, p.142) 

 

 

Esse Eros livre e violento que arma o mundo com suas setas (o amor como origem de tudo) vai aparecer entre os poemas de amor espalhados pela obra de Piva. Em Abra os olhos e diga ah, de 1976, o poeta escreve em letras maiúsculas: 

 

(A EPOPÉIA [sic.] DO AMOR COMEÇA NA CAMA COM 

OS LENÇÓIS DESARRUMADOS FEITO UM 

CAMPO DE BATALHA) é ali que eu começo a nascer para a madrugada & suas vertigens onde você meu amor se enrosca em meu coração paranóico [sic.] de veludo verde & as delícias de continentes alaranjados dormem em seu rosto de 

pérolas turvas oh tambores do amor sem parar rumo às tempestades PLANETÁRIAS 

& suas cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas gosto de gostar & a tv da alma amanhece bêbada & tenta dizer alguma coisa 

(PIVA, 1985, p. 46) 

 

 

É na “epopeia do amor” que o eu lírico delirante encontra sua origem. Ele vai surgindo devagarinho, é resultado da batalha da beleza dos “continentes alaranjados”, do rosto de “pérolas turvas” e “tempestades planetárias” cheias de tristeza. Essas imagens poéticas de uma “batalha na cama” levam à alma bêbada e ao coração paranoico aquele Eros violento, incontrolável como um cometa: 

XX 

 

(…) 

meu amor cometa nômade de  

riso indomável 

(…) 

(PIVA, 1981, p. 43) 

 

O eu poético que dança como Dionísio, vertiginoso e embriagado, é tomado da mais profunda alegria proporcionada pela voluptuosidade. Notemos essa sensação emanada por composições como “riso indomável” e “oh tambores do amor/sem parar (…)” e o próprio amor como cometa. As “tempestades PLANETÁRIAS” revelam uma extrema agonia que desemboca na embriaguez da alma e na mudez de um corpo arrebatado pela delícia desse amor. Lemos com Bataille que não há como sermos felizes sem entrar na perspectiva da angústia, e é desse modo que Piva opera em sua poesia de amor.  

 

O eu dançarino sempre enamorado se funde com a paisagem, com o tempo, e no limite, com seu amante no “Poema de amor desesperado de alegria”. Presente no inédito Corações de hot-dog, neste poema o amor se exprime através das cores do crepúsculo, do modificar instantâneo da paisagem sob a luz do fim do dia: 

 

POEMA DE AMOR DESESPERADO DE ALEGRIA 

 

Meu amor me perdoe por não estar triste mas o mar pétala pré-histórica   leva meu coração gelatina ferida até você através dos sinais dos  petroleiros ao largo vistos da praia do Guaiúba & seus Mosquitos  vorazes ao crepúsculo você que me vê viver dançando na estrela que   desponta & desaba seus gritos de peixe-espada pelos longes não me deixe  morrer tão feliz sem ter visto seu corpo adolescente correndo para o  mar com um girassol entre os dentes distâncias consomem o que sobra  do dia findo mais um nenúfar rodopiando nas rochas onde eu estou sentado  reclamando aos deuses minha fatia de oceano silencioso com minhas mãos   na névoa rosa do céu repousando no imenso rosto do mundo torres  de avelã entram pelos meus olhos tainhas loucas entram em seu coração  & o sol escorrega na paisagem metade luz metade sombra pássaro albatroz   levando no bico minha mensagem: amor, aqui começa o Tempo 

Praia do Guaiúba – Outubro 1977 

 

(PIVA, inédito, p. 10) 

 

Esse tempo que começa, nesse lugar, nessa praia, parece um tempo original que justamente dá início a esse oceano silencioso de onde ouvimos os “gritos de peixeespada”, e onde vemos as “torres de avelã” e “as tainhas loucas” que atravessam os corpos dos amantes. À moda dos poetas românticos, Piva investe na composição de imagens de uma natureza expressiva (porém onírica) e novamente originária como no poema anterior. Esse amor nasce sempre entre o crepúsculo e a madrugada, no claro-escuro desse kairós.

    

Na poesia amorosa de Piva, o cotidiano nunca parece ser comum. O poeta arma as cenas – como as setas do Eros de Fontela arma o mundo – onde se desenrolam os dramas amorosos que acabam sempre por levar uma mensagem, por declarar seu amor. 

 

O fato de separar-se não segue aqui a necessidade do esquecimento, dado que o enamorado precisa esquecer um pouco de seu ser amado para suportar a vida longe dele; tal qual Penélope que suporta a ausência de seu Ulisses amado no gesto tão cotidiano – porém sublimado – de tecer e desfazer, o eu lírico delirante em Piva, nunca esquece: 

 

ESTAÇÃO DO METRÔ BRÁS 

 

O garoto tomou o trem procurando o navio de cristal  

levou um livro de Verlaine 

na mochila 

canções na cabeça meu coração no prato de Sol 

blue-jeans salpicado de  

estrelas 

olhos de violetas explosivas rumo aos tambores da noite 

levou um livro de Verlaine 

na mochila 

canções na cabeça meu coração no prato de Sol  

  (PIVA, inédito, p. 15) 

 

 

No ato tão cotidiano de separar-se reside algo como o fio de Penélope que ainda liga os enamorados. O livro de Verlaine, que leio como um livro emprestado, opera essa ligação entre os amantes que se despedem na “Estação do Metrô Brás”. O eu apaixonado, como quem perdeu o juízo, oferece assim seu próprio coração “meu coração no prato de Sol” e descreve, como que num momento de adeus, o belo garoto que toma o trem com destino à vida noturna. O poeta sabe que além do livro, o garoto leva canções e uma paixão compartilhada entre eles. O garoto de blue-jeans (modo bem anos 70 de falar desse tipo de calças) buscando o “navio de cristal” (que está “sendo carregado/ um milhão de garotas, um milhão de emoções”3), vai embora com “canções na cabeça” e leva consigo um amor livre. 

                                                             

 

O olhar apaixonado que mira a vida valoriza tanto a despedida quanto o encontro; cada pequeno gesto do amante é emoldurado de uma emoção, a luz do amor deita sobre toda a vida profana um véu tão colorido quando brilhante que como névoa, pode turvar os sentidos. Piva fala de um amor dionisíaco, livre, erótico; ainda que pareça idealizado, não tem nada do amor burguês das relações institucionalizadas, duradouras, formadoras de famílias e contratos, inseridas no mundo do trabalho acumulador de bens, no redemoinho das responsabilidades. O amor em Piva também não apresenta vestígios daquela relação idealizada e impossível celebrada pelo Romantismo brasileiro. Essas relações que se querem eternas não são caras à poesia de Piva que está, por outro lado, inundada de prazeres efêmeros, porém intensos, da embriaguez dionisíaca, da beleza jovial dos corpos.  

 

O poema intitulado “Corações de hot-dog” como o livro ainda inédito, concentra tudo que há de mais potente na poesia de Piva e, de certa forma, todas as obsessões literárias do poeta. Vemos neste poema algo como a manifestação piviana das forças que Nietzsche viu na tragédia grega, o apolínio e o dionisíaco:   

 

 

CORAÇÕES DE HOT-DOG 

 

Para  “fu di tal volo 

Anselmo Augusto Varoli  che nol seguiterìa língua né pena” 

“estás aqui desde  Paradiso, canto VI 

  o princípio”         Dante 

 

 

ônibus 

viagem de Dante no Paraíso da Paixão 

    AMOR = LUZ 

Guararema Mogi São Paulo 

             Torsos         olhos nos olhos             vigas estreladas 

montanhas com coração dentro 

mártir é o rabo da mula     fogo no rosto do meu amor 

Sol entre nuvens cabeludas         pés inchados potência da potência 

    olhos de novo 

Osíris crucificado em  seus olhos? 

brejos 

  vento  janela cortinas explodindo  

boca sem sumo 

     órgão em sintonia forno forno  ônibus um forno  

 

meu olhar no teu no meu  no centro rodopiante de tua língua louca 

fogo no rosto do meu amor 

Paradiso Now 

          pés inchados botas de couro da Lua meus pés nos teus nos teus olhos  nos meus pés nos olhos flocos de pura paixão      tua mão no meu braço &  nuvem na minha boca 

sopro olho suplicante tua boca        olho 

na minha boca 

qualquer coisa de Valéry na         tua conversa o deus brinca nos  

       teus ombros de sal 

vertigens  ondas do mar amado & sem nome 

aqui mesmo se acomoda o  princípio 

rojões  ônibus que dança no  canto da orelha             o dragão é sonoro o olho é sonoro eu posso danar na tua boca de  trevas rosadas 

quaresmeiras tropico no suor da mão vidros satélites 

Blake sim, finalmente o crepúsculo  amado de Blake 

flor espiritual no canal cósmico só você  só você  

desenhar um pássaro de água no seu rosto príncipe 

Rei do Universo pele sem nada dentro 

       você ficou na minha pele 

EU QUERO VOCÊ AGORA vento ondas de formigas marinhas 

ilhas de doces 

marinhos 

FODER 

até o Sol 

derramar suas lágrimas 

                 olho castanho de onde nasce               todas as coisas 

                    você é azul / núcleo generoso seu olho é um céu constelado 

      com minha língua dentro 

 

ônibus-cogumelo/Guararema-Mogi-São Paulo 

1981 

  (PIVA, Inédito, pp. 51-54) 

 

 

Quanto à forma, importantíssima para Piva – e se pensarmos na duplicidade nietzschiana, a parte apolínea desse duplo – esse poema contém dedicatória – um vestígio de carta de amor – e epígrafe, de uma de suas referências mais celebradas, aliás, o poeta Dante Alighieri. O desenho formado pelo recuo dos oitenta e quatro versos são ondulações. Essa forma acompanha em intensidade o conteúdo do poema que fala de uma viagem do interior paulista para a cidade de São Paulo dentro de um ônibus, onde os amantes trocam vigorosas carícias que oscilam em movimentação e temperatura junto do veículo. A viagem de ônibus entre as curvas de Guararema, Mogi (das Cruzes) e São Paulo alude às três esferas da Divina Comédia e materializa o seu próprio “Paraíso da Paixão” que é o paraíso do agora – “Paradiso Now” (verso 28) – do instante do gozo.

 

O poema é repleto de explosões de sol e calor que refletem nitidamente os sentimentos de paixão e excitação. Explicita o contato dos corpos libidinosos nas constantes movimentações e composições dos corpos que parecem descompostos: “Torso olhos nos olhos”, “meu olhar no teu no meu/ no centro rodopiante / de tua língua louca”, “meus pés nos teus nos teus olhos / nos meus pés nos olhos”, “tua mão no meu braço”, “tua boca / olho / na minha boca”. O poema fala de um amor tão grande quanto um sol que ofusca, íris iridescente quando um se olha na flor dos olhos do outro. O poema fala também da passagem das horas até o crepúsculo, “sim, finalmente o crepúsculo / amado de Blake”, e nesse ínterim, como o eu lírico delirante exprime em definições do eu e do outro um turbilhão de sensações. É nessa relação de sujeito e objeto da linguagem que se fundamenta o eu lírico, que lido na poesia moderna por Michel Collot seria o sujeito lírico fora de si. Para Collot, o lirismo não só expressa a subjetividade como tal, mas é engendrado pela da saída de si mesmo através do êxtase ou do exílio, ou seja, o sujeito é constituído por um fora que o altera.4

  

Não dissecarei nessa análise todas as imagens que compõem o poema. São referências culturais e literárias5 que o poeta utiliza para construir a partir de fragmentos de leituras e memórias de suas paixões, um corpo poético atravessado por delírios. Nesse poema está presente mais uma vez aquele eu dançarino – “eu posso dançar na tua boca de/trevas rosadas / quaresmeiras” – esse eu que é língua dançando dentro de um beijo funde-se ao final completamente, pele com pele, ao seu ser amado e etéreo: “você é azul / núcleo generoso/ seu olho é um céu/ constelado / com minha língua dentro”.

 

Esse amor que nasce sempre da pele exprime a ideia de que amar verdadeiramente é sempre amar demais, desmesuradamente. Não é uma vida compartilhada para sempre, mas a constante agonia, a partilha da volúpia, do êxtase.  

 

Piva explicita na segunda linha do prefácio do livro inédito Corações de hot-dog: 

 

“Nunca mais levei a sério nada a não ser os corpos. E os deuses dos corpos. O corpo confere perfeição, não é mesmo W. B. Yeats?”. Nessa afirmação está a ideia de que o corpo, como meio de uma transcendência que leva à liberdade e ao poder é somente o que importa, e é a partir do trabalho com imagens de corpos em êxtase, na intensidade de sua beleza e erotismo, da jovialidade dos amantes que a poesia provocativa de Piva aponta na direção de uma política do corpo erotizado.  

 

Um ato político que prevê além da irreverência, a valorização da efemeridade da paixão, a autolibertação do sistema que dulcifica os corpos, o reconhecimento da própria força e amor pela poesia em seu diálogo íntimo com o mundo dos sentidos. Algo como a força interna do erotismo sobre a qual escreveu a ativista Audre Lorde em 1984, quando pensava sobre a opressão do patriarcado sobre os corpos femininos e negros e a consequente “supressão do erótico como fonte de poder e informação”. Para Lorde “o erótico é um lugar entre a incipiente consciência de nosso próprio ser e o caos de nossos sentimentos mais fortes (…) o erótico não é sobre o que fazemos; é sobre quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir durante o fazer.”6

 

A poesia de amor de Piva tem essa potência e partilha na pele da palavra, um gozo que está para além do corpo, mas que passa por ele propondo uma abertura de consciência para o que é profundamente humano, livre de preconceitos, racismos ou sexismos. 

***

Notas

 

1 Autobiografia presente no livro inédito Corações de hot-dog

 

2  Cf. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. 

 

3 Há no poema referência direta à canção “The Crystal Ship”, da banda inglesa Duran Duran. A mesma canção tem a versão original interpretada pela banda The Doors, que era uma das favoritas de Piva. A letra da música fala, não de uma despedida, mas de momentos antes da separação dos personagens quando um deles está prestes a cair inconsciente. No texto, fiz uma tradução direta da última parte da letra:  

Crystal Ship 

 

Before you drift into unconsciousness I’d 

Like to have another kiss, another flashing chance 

At bliss, another kiss 

Another kiss 

 

The days are bright and filled with pain 

Enclose me in your gentle rain 

The time you ran was too insane We’ll meet again, we’ll meet again. 

 

So tell me where your freedom lies 

The streets are fields that never die 

Deliver me from reasons why 

You’d rather cry, I’d rather fly 

The crystal ship is being filled 

A thousand girls, a thousand thrills 

A million ways to spend your time

When we get back I’ll drop a line. . .

 

4 Cf. COLLOT, Michel. O sujeito lírico fora de si. Terceira Margem: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura

UFRJ, ano IX, n. 11. Rio de Janeiro, 2004, pp. 165-177. Disponível em: 

http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/terceiramargemonline/numero11/NUM11_2004.pdf

 

5 Osíris crucificado, remete a Cristo crucificado, que remete a “paixão” no sentido do calvário, mas “Osíris”, como palavra cindida “os – íris” remete ao reflexo de um ser enamorado nos olhos do outro, como escreve Jean-Luc Nancy no texto Les Iris, considerações sobre os reflexos dedicadas a Michel Leiris. Os “pés inchados” remete a Édipo, cuja etimologia (gr. Oedi-pous) é justamente essa, e também ao homem em sua completude com os pés firmes, e inchados, no chão, imagem que se opõe radicalmente aos olhos cheios de luz, mirando as alturas de uma beleza ideal, como sugere Bataille. Valéry, “qualquer coisa de Valéry na /tua conversa” remete-me imediatamente à afirmação do poeta francês de que “o mais profundo do homem é a pele” (L’idée fixe, 1960) órgão privilegiado da sensação: “pele sem nada dentro / você ficou na minha pele”, é então uma “conversa” sobre o corpo e sobre a pele, ou ainda, com o corpo e com a pele. O verso “fogo no rosto do meu amor” remete às imagens compostas por Bataille em O ânus Solar, 1985: “Se meu rosto se injeta de sangue, fica vermelho e obsceno. Com reflexos mórbidos denuncia ao mesmo tempo a ereção sangrenta e uma exigente sede de impudor e orgia criminal”; o “fogo no rosto” no poema é obsceno, escandaloso e delator dos impulsos animalescos da libido. A análise completa do poema desenvolvi no texto de minha tese cuja referência está ao final do ensaio.

 

6 Tradução do original “Use of the Erotic: The Erotic as Power” por Tatiana Nascimento dos Santos – Dezembro de 2009. Disponível em https://cadernetafeminista.wordpress.com/2015/07/09/os-usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-por-audre-lorde/

 

 

Referências  

 

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. 

 

CHAZAL, Malcolm de. Sentido Plástico apud BATAILLE, Georges. La felicidad, el erotismo y la literatura: ensayos 1944 – 1961. Trad. Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2008. 

 

LORDE, Audre. Use of the Erotic: The Erotic as Power in Sister outsider: essays andspeeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. p. 53-59. 

 

PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. São Paulo: Massao Ohno, 1981. 

 

PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 1985. 

 

____________. Um estrangeiro na legião, Obras reunidas volume I. São Paulo: Globo, 2005. 

 

____________ . Estranhos sinais de Saturno, Obras reunidas volume III. São Paulo: Globo, 2008. 

 

_____________. Corações de hot-dog. Arquivo Roberto Piva: IMS-Rio, inédito. 

 

_____________. Out-Door. Arquivo Roberto Piva: IMS-Rio, inédito. 

 

SEVILLA, Ibriela Bianca Berlanda. “Todos os pivetes tem meu nome”: imagens da subjetividade nos arquivos de Roberto Piva. 2015. 358 p. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura, Florianópolis, 2015. 

 

VITROLIRA, Luna. Aquenda – O amor às veze é isso. São Paulo: V. de Moura Mendonça – Livros, 2018.

 

 

Ibriela Bianca Berlanda Sevilla é Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina.

 

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