Cultura

Uma poesia de sustança: sobre Cerzindo e cozendo de Demétrio Panarotto | Ibriela Bianca Berlanda Sevilla

Cerzir é remendar, reunir com pontos imperceptíveis, de modo a combinar retalhos com destreza tal que nem pareça arrumação de um tecido arruinado. Um texto é também, pela força da etimologia (texere lat.) uma “coisa tecida”. Não se trata de emendas, e passa ao largo de um   Kintsugi, o ouro não há de fechar as frestas; as frinchas permanecem sóbrias porque sustentam o erótico. A costura da qual se faz o livro do Demétrio tem mais a ver com uma mistura de corpos, e no limite, um canibalismo literário. Já de início o puteiro-biblioteca ou a biblioteca-puteiro está posta como moldura, ou (para seguir a ideia de pano), como o crochê nas bordas, um acabamento dentro do qual podemos ler o verso como recompensa na correria da catarina, dona do puteiro. 

 

Lemos nos paratextos que o livro foi “feito à facão”, ato dos editores que parece por de mais rude para a tessitura das sedas do puteiro da catarina. Não é porque ela anda tensa “com o cu na nuca e a boceta no dedão do pé” que abre mão das delicadezas: “no quarto da madame clo’aca/nem café nem cafezinho cafetina/decoração luiz xv/cor carmin naná (…)”. Ela bota ordem na biblioteca para que nós, os leitores, leiteiros, entremos na “vida seminua” do corpo do texto, já velho e carcomido pela leitura. 

 

O texto é rendado, ponto a ponto num encadeamento musical das palavras. Nele cabe até o padre em batina passando e benzendo a merda abundante, boccaccio de língua solta, calvino errando alvo e, enquanto o deus agon segura os segundos os participantes pendurados fazem sexo – encaixe, costura –. Além da sonoridade de uma música de baile, coisa que fia o fino tule do texto, a forma dos poemas “no puteiro” segue um padrão marcado no pano da página: os ímpares em verso e os pares, em prosa, em 16 poemas formam, em transparência, um puteiro-musical-poesia, puteiro-biblioteca-perdição onde “calcinhas penduradas nas espingardas” são souvenir, onde os “versos se comem” sempre que podem, por de trás das cortinas que fecham a putaria. 

 

O “café com boceta”, parte seguinte a “no puteiro”, parece composto de episódios apresentados nos poemas em prosa cujos intervalos são os poemas em verso. Apresenta aí um outro padrão de tessitura. Aí a boceta na xícara de café se mostra como um fetiche, um afrodisíaco convite para o gozo. Então, o texto como bordados – para não perder de vista o fio da meada –, fala dos fetiches dele que ela despreza, tão erótico é o desprezo quanto a transparência que cobre o fetiche. Aquilo que se derrete depois da transa, uma perda de atenção é conflito do próprio corpo.

 

Mas, para além de um fetiche que se mostra através das transparências do texto-tecido-bordado, lemos aí a provocação posta em evidência que é uma proposta do poeta como bufão e do poema como bosta. Poema vindo das entranhas, digestão da antropofagia linguístico-poética que começa no puteiro da “véia catarina”:

 

“não sabiam o que comiam, mas comiam, empanturravam-se, vomitavam, e comiam de novo. legislador, de qualquer monta, ponta ou importância, no puteiro que segue, é um bicho nojento. devemos castrar quem legisla e servir os nacos de carne ao povo em um grande banquete à tupinambá.” (poema VIII de “Café com boceta”)

 

Nesse banquete à la Saló tropical, oferecido no puteiro da catarina, obscena é a classe política. 

 

Vestida de espartilho vermelho, madre paulina dança uma polca paraguaia, mas recusa os quitutes lascivos e os jogos devassos. O puteiro se revela um lugar potencialmente democrático; aí todo tipo de possível disfarce vira chiffon todas as fantasias se revelam, não há lugar para os panos rotos da moral ou da hipocrisia. O erotismo da poesia de Panarotto é revelador. 

 

Finda a putaria as luzes são acesas, mas, como “todo protocolo é autoritário”, vale investir no sem sentido de uma matança encabeçada por jesus. A última parte do livro de Demétrio “Blasfêmia” começa com o assombro diante do sem sentido; até a puta “véia” está incrédula com a situação de extrema idiotização do que acontece fora dos limites de seu puteiro. A ela é concedida a única porção de bom senso, ela de tudo sabe, de tudo chacota, ela tem o controle sobre a classe política que se refestela em seus bacanais. 

 

O fino insulto tecido pelo poeta, não à puta que é parceira, mas à classe política e às instituições de poder (universidade e Estado) revelam a peleia no pelo do poeta, no couro do corpo do texto que é o tecido mais rude, posto na rua lugar onde se “defende o próprio couro”, o próprio texto.

 

Se o cerzir delineia a forma e a sonoridade do conjunto, o ato de cozer o cozido no aqui e agora há de propor ao leitor uma incursão por outros sentidos com os quais encontramos, na razão do sem razão, no gasto excessivo do erótico em ação, no ato mesmo de comer o cozido nas palavras bem temperadas da poesia de Panarotto, a partilha desse pão que o diabo amassou – e por isso irresistível até aos celíacos. Quero dizer que uma poesia irresistível não se faz somente com belas formas e ricas sonoridades, mas também, e necessariamente, com a sustança do cozido. Porque a linguagem comunica, sim, certas conclusões e convicções do poeta e sua poesia bem cozida e bem cosida revelam tudo que se passa nesse puteiro que até arriscamos conhecer muito bem.  

 

Ibriela Bianca Sevilla

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