Três poemas de Cecília Barreira
AO LONGE ESCUTAVA
Ao longe escutava
O vazio intacto
Um vulcão
Os jogos do azar
Escapulindo lágrimas
Ao longe um sátiro sem audição nem olfato
Os dias felizes
Ao longe
A mordidela de rochas e o avental
aquele que puseste no Natal
Ao longe eu escutava
A tua voz em tanques
Nos cucos
O vazio intacto
Os dias felizes
As areias que éramos, tristes
Os pomos os pélagos os gerúndios
(tu de paixão em riste)
APROXIMEI-ME
Aproximei-me dos bichos
Para que o clamor não se extinguisse
Passei as horas na porfia e nos estômagos
A pele pústula deitada em tábuas
Serei bicho até aos pomares e aos lacraus
Se verterem na jorna
Aproximei-me dos bichos
Para esquecer a roupa que enfiaste
Na bacia dos provérbios
Existo de tempo em vez
Existo em interstícios
No molde de uma garagem
Barata e penhorada
Alargadamente
DISSESTE
Disseste algum ditongo alguma escova?
Fizeste alguma aporia em cânulas?
Amanhaste as réstias?
Pisaste os préstimos?
Disseste hulha e fava?
Mondaste o peixe?
Habituaste os séculos à bonomia
Ou revogaste o tempo?
Longe e exímio o sol a terra a geografia
Longe o engenho
Longe o régulo
O peso da desídia


Fotografia de Cecília Barreira.
Cecília Barreira é actualmente professora de Cultura Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa. Pertence ao CHAM, onde é investigadora de periódicos. Pertence aos grupos de pesquisa AMONET e IRENNE, sobre questões de género. Licenciada em História, com Doutoramento e Agregação em Estudos Portugueses, interessa-se particularmente pela História das Mentalidades. Publicou diversos ensaios e livros de poesia e neste domínio, estreou-se em 1984 com Lua Lenta. Seguiram-se A Sul da Memória (1987), Memórias de uma Deusa do Mar (1995), 15 anos de Alguma Poesia (1999), 7&10 (2003) e Cartas BD (2005), As Opções Ideológicas e o Fenómeno Feminista em Portugal (2009), Do Diário de Lisboa à Revista Maria (2016), Quirino de Jesus e Outros Estudos (2017) e Voando sobre um Ninho Fêmeo (2019).