Solange Padilha: a poesia em movimento curvilíneo inverso
Dentro dos nossos limites observacionais, o universo é uma plana ilusão. O que nos mostra o céu noturno das estrelas fixas e seus desenhos zodiacais não passa de mero engano. A constelação do Cruzeiro do Sul, bem como, todas as do raio zodiacal existem do ponto de vista Terra. Entretanto, o espaço as coloca na real distância com muito mais anos-luz entre elas.
Todavia, Einstein nos mostrou que a presença de corpos massivos ou buracos negros podem distorcer o espaço e, portanto, curvá-lo.
Recorro a esses preceitos da astrofísica para tentar elucidar a poética de Solange Padilha, em sua recente publicação Sobre aquilo que não cessa (Editora Patuá, 2020). A poeta vê além da finitude cotidiana e nos revela um mundo outro, como aquele em que Einstein desvendou a curvatura. Aqui, a poeta capta, em alguns de seus poemas, o imponderável e vai além do que se faz óbvio, ou o simples olhar habitual da sucessão dos dias. E, assim, o faz com particular linguagem. Uma metalinguagem plena de invenções e surpreendentes metáforas, o que nos parece penetrar em um labirinto onde um novo universo é recriado. Ao recorrer ao físico Marcelo Gleiser, para dar solução à sua primeira equação poema, a poeta transfigura o satélite da Terra.
(…) se a Lua fosse magra
A Terra não se inclinaria
dessa forma sobre si mesma
Magrinha,
Já não haveria mais
as quatro estações do ano
não poderia admirar
o pelo de um urso branco
na primavera (…)
Logo, a poeta recria uma lua magra e altera a lei da gravitação dos corpos, o efeito nas marés e estações. Distorce o formalismo tradicional dos versos para nos convidar a um movimento do olhar não retilíneo, mas aquele, curvilíneo, que torna o mundo infinito e a poesia, uma lei transcendental.
Na continuidade da parte quinta do livro, Meu corpo escreve cruzando fagulhas, Solange subverte as propriedades da partícula subatômica neutrino, que interage com outras partículas apenas pela força da gravidade e da força nuclear fraca, e lhes empresta o poder da eletricidade, que vem do seu poder de fêmea feminista de luz própria. Aquela que não necessita dos provedores alphas machos para seguir a vida.
(…) Nem protetor
nem provedor
nem macho alpha
Nem receptáculo
nem tomada de dois furos.
Elétrica de neutrinos.
Sem adaptadores
devir sem cessar
pulando o muro
Medula contemporânea.
Diagnóstico:
Fêmea,
Século XXI (…)
Da tragédia de Brumadinho, para descrevê-la em sua poética particular, ela recorre à dissecação literal do ferro, elemento do quarto período da tabela periódica, quando o metal pesado se liquefez nas condenadas barragens da mineradora do Vale, ceifando centenas de vidas. Compara-a aos corpos estáticos da cidade de Pompeia (79 D.C.), vítimas do Monte Vesúvio, e, vai além, para uma ilustração bíblica, conferindo à condição sacra aquela visão catastrófica.
Transcrevo o poema que nos atravessa, tal qual a lama em cachoeiras destrutivas.
Estátuas de sal
estátuas cobertas
de cinzas
atravessam séculos.
Parece Pompeia
– escreveu Túlio abaixo da foto
Uma ilustração bíblica
– concordei.
Maldição de um deus severo?
– Cheira a enxofre
espessos metais geodésicos
elemento atômico
elemento humano
ferro ferida lama
cidades
borbulhas
amônias
ferro lama unha
cabelos
carne
bois
barragens
barrobarrobarro
gentegentegente
rio,
casas
gentes
o rio,
desaparecidos
Arquivo: Povo Brasileiro, Brumadinho, janeiro, 2019.
Os aspectos da física nos poemas de Solange não interferem na sua dicção poética, uma vez que ela usa as regras aparentemente frias para recriá-las e transformá-las em surpreendentes sequências de versos que, como os elétrons, orbitam livres ao redor do núcleo atômico. Ocasionalmente, sua escrita poderá parecer envolta em um hermetismo impenetrável, contudo, a intenção será a de repensar o texto para a compreensão subjetiva ou sugerida. Aqui, o óbvio não reside nas libertas páginas onde a independência da autora é outra tônica a ser descoberta.
Então, ela nos revela parte do seu ser nestes versos de plena inventividade:
A foto é antiga
Sou eu
tentativa de encontrar pedras fósseis
O âmbar que atrai
eletricidade alquimista
e velha bruxa
a voar na velocidade
da luz
O âmbar, pedra de propriedades elétricas, atua como um ímã. Será a sua poesia a querer atrair qual um elemento magnético, mas que é palavra. E ela, a poeta, que se pretende à velocidade máxima, a da luz, quando a matéria se desintegra para alçar um universo outro nunca visitado.
Eis aqui um caleidoscópio. Um livro para insinuar caminhos sem sequer mostrar o norte. Provocativo, instiga a imaginação, se não nos leva para a liberdade do ser e do sonhar. Nesse ponto, os poetas e os físicos se encontram. Não haveria incríveis descobertas se, ao cair uma maçã na testa, Newton não se deixasse revelar pela lei da gravidade.
Solange Padilha, uma poeta de voz própria e grande originalidade, nos revela o mágico e o insondável, com domínio dos versos que parecem escapar de suas mãos, como órbitas, mas não. Pois nos afirma, quando a vida surpreende. Quando, na viagem elíptica da Terra/ uma terça-feira gorda bate carnavalesca/ à minha janela.
E a poesia se faz uma escadaria veloz rumo ao desconhecido mistério, como há de ser o mundo, quando nos revela Sobre aquilo que não cessa.
Denise Emmer é poeta e musicista, e nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Publicou vinte e um livros, dos quais dezessete de poesia, três romances e um de contos. Ganhou importantes prêmios literários, tais como Prêmio ABL de poesia (Academia Brasileira de Letras); Prêmio Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA); Prêmio José Martí (UNESCO conjunto de obra); Prêmio PEN Club do Brasil de Poesia; Prêmio Pen Club do Brasil de Romance; Prêmio Olavo Bilac (ABL); entre outros. Participou de relevantes antologias da poesia brasileira, tais como 41 poetas do Rio, org. Moacyr Félix, Ministério da Cultura, Antologia da Nova Poesia Brasileira, org. Olga Savary, Ed Hipocampo, Poesia Sempre, Fundação Biblioteca Nacional, O signo e a sibila – ensaios, Ivan Junqueira Ed.Topbooks, Ponte poética Rio-São Paulo Ed. 7letras, bem como das Revistas Califórnia College of the at Eleven Eleven (EUA), Newspaper Surreal Poets, (EUA) e Revista da Poesia, Metin Cengiz (Turquia). Revista Crear in Salamanca (Espanha), traduzida pelo poeta Alfredo Pérez Alencart. É bacharela em Física e Música (violoncelo). Compositora, com vários CDs gravados, também integra, como violoncelista, orquestras e grupos de câmera. Apesar da versátil personalidade, a essência de sua criação, é, fundamentalmente, a poesia.