Poesia & Conto

Psicose I

I

Separei-me da Simone. A mãe explodiu. Cinzas debaixo do tímpano. Nunca mais falou comigo. Continua poeira na varanda suja do bairro Alto. Simone ainda me ama. Confessou ao Padre José das Dores. Não existe segredo debaixo do sol. A parede é permeável. A palavra percola entre os grãos de areia ao encontro da orelha. Da surpresa. Simone ainda me ama. E isso importa para o poema. Simone ainda percorre a diastema a caminho do palpável. Da faringe. Do estômago. Esquece-se quando lhe apetece. Tão pouco foi o tempo que a levou sentir o irmão Alexandre. Um casal nu antes de conhecer o véu e o altar. 

Ó deus do silêncio. Tenha piedade deles. Eles não sabem o que fazem. Tenha piedade dessas minhas mãos tagarelas na alma do papel. Tenha piedade do Venâncio. Do Tinga. Incentivaram-me a escrever este verso inútil.  

Ó deus de todos cegos. Tenha piedade da noite em que escrevo essa verdade. Tenha piedade da lâmpada que não se apagou. Tenha piedade da cadeira confortável. Tenha piedade deste teclado confortável. Tenha piedade dos Sungura Boys. Tenha piedade desta Stella Chiweshe que me eclipsa a razão. Ó Stella, rainha do mbira. Não me deixa ser Chitemerere. Morreu escravo longe do pátio. 

Simone ainda me ama. Confessou ao Padre José das Dores.

Ó deus panglossiano. Tenha piedade do meu pedido insípido. Não acredito em ti.  Apaguei-te naquela noite em que a Margaret fechou os olhos. Peguei na pá. Abri a cova. Enterrei-te na calada da noite. Marielle choveu. Não pinguei. Enterrei-te com as tuas tulipas. Convenceram-me do contrário. Desenterro na madrugada, prometi. A madrugada morreu asfixiada no cinzeiro. Ao lado da beata e da saliva. 

Tenha piedade, expressão cara no poema. Dá-lhe imensidade profundidade. Densidade vestimentas. Aqui existes para que eu consiga fotografar o seafloor do poema. Apalpar o verso certo. A palavra mágica. A exoticidade da metáfora. O diamante no cérebro. O verme debaixo da língua. Restos de plástico no estômago. Muco no pulmão morto. 

Separei-me da Simone. A múmia do tempo perdeu o sarcófago e apodreceu. A mãe explodiu. As crianças na rua recolhem a cinza desapontada. Pintam as suas poucas caras e seus ínfimos braços. E correm em debandada atrás da bola e da felicidade.

Ó deus na tumba do meu coração. Tenha piedade de mim. Não sei o que faço. Não sei o que disse. Não entendo o que escrevi. Tenha piedade deste teu assassino. Tenha piedade. Tenha piedade. Tenha piedade. Tenha piedade. Tenha piedade. Tenha nada.

David Bene

DAVID BENE nasceu na Cidade de Manica, em 16 de Agosto de 1993. Colabora com diversos jornais e revistas literárias em Moçambique, Brasil, Portugal, Galiza e Japão. Bene é doutorando em Engenharia de Recursos Minerais na Universidade de Kyushu. Reside actualmente no Japão.

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