Cultura

Esquartejamento e outros contos | Daniela Pace Devisate

(Dedicado a Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira)

 

Para isso (recortar seu corpo em vários pedaços) eles usaram uma das pontas afiadas de uma estrela. A luz cicatrizava o corte e quase não houve sangue. O crime, de sempre, traição. O que traíra¿ Como traíra¿ Já não se lembrava, mas seus pedaços esparramados pela cidade seriam um lembrete para que ninguém mais traísse. O que¿ Quem¿ Essa era a pergunta angustiante enquanto seu corpo era retalhado. Não implorou perdão. Não derramou lágrimas. O método era praticamente indolor, moderno. Uma dose na veia e podia ser espalhada, um pé em cima da árvore da praça da matriz, a mão aos pombos que bicavam por ali, outra na viela onde o lixo era descartado, toda sexta-feira. A perna direita sobre o muro do convento, que grande indecência. Partes íntimas na ladeira onde cães vadios farejavam. Quando o sino tocou as doze, seus braços enfeitaram de horror os telhados do conservatório musical. Os ombros, que eram delicados, foram deixados suavemente sobre os canteiros de flores da escola. As coxas deram trabalho, eram fartas, ocuparam quase todo o átrio do maior casarão colonial, disfarçando o desleixo da pintura descascada que revelava o segredo de pedra daquelas paredes. No teatro, velhusco, imponente, com o falso ar helênico de província, eles escolheram deixar o joelho esquerdo e um seio. No cemitério, de cruzes coloridas e portão rebuscado, o outro seio. Um pé dava o aviso de obediência, sobre um balcão, o mesmo onde se debruçavam as filhas do doutor, vestido engomado, a verem passar o desfile militar e a procissão. A cabeça, pendurada  pelos cabelos na alta torre da igreja, dava a estranha impressão de sorrir. Sorria porque no último minuto tinha se lembrado. Tinha sido tudo um sonho louco chamado Liberdade.

 

DIVÓRCIO

 

Esse manuscrito era teu. Achei por acaso, arrumando as gavetas. Até no escuro eu reconheceria tua letra. Assim como tua voz e teu cheiro de trinta anos dormindo lado a lado. No papel brilhavam as palavras, como que gravadas a fogo. Tuas fantasias sexuais com crianças pequenas. Digo: se fosse um tremor de terra, ou o anúncio de um bombardeio nuclear, não teria me abalado tanto. Tua letra que eu sempre tinha gostado tanto, redonda e garranchada, embaçada pelas minhas lágrimas. Minhas mãos tremiam ao segurar as folhas, que pareciam ter vida própria, como serpentes se enlaçando no meu braço, prontas para dar o bote.

 

Precisei sentar na beira da cama para não cair. As paredes pareciam estar se desmanchando. Tentei lembrar das aulas de meditação no Youtube. Recitei um mantra. Respirei. Respirei. Até que a dor funda que vinha do centro do corpo e se espraiava, começou a arrefecer. Então retomei os papéis, com sofreguidão, numa angústia ansiosa de tudo saber, tudo ver, até o fim. Em alguns trechos, era quase ilegível, eu precisava forçar a vista e o pior, a imaginação, para completar as lacunas. Uma sensação de náusea, de irrealidade. Quem deixaria ao léu páginas semelhantes¿ Ou foi tua culpa, insidiosa, a  sussurrar para que finalmente deixasse ali aquela chaga, ao alcance da minha fúria organizadora, tão bem conhecida por você¿

 

Por entre as folhas, com textos detalhados, inclusive com certa qualidade literária (você sempre tinha frequentado as melhores escolas da cidade), encontrei algumas imagens e fotografias. Meninos e meninas, com pouca roupa, na praia ou no banho. Provavelmente furtadas de álbuns de família de amigos e parentes.  De repente, senti que ia vomitar o coração: a foto do meu sobrinho de cinco anos, nu, à beira-mar. Eu lembrava exatamente do momento em que a foto tinha sido tirada. Um final de semana feliz, com minha irmã, meu cunhado e o filhinho deles. No verso da  foto, um desenho obsceno. Canalha! Uma onda de ódio violento me intoxicou. Atirei as folhas sobre a cama e desabei no colchão. A dúvida que me roía por dentro era se alguma vez havia concretizado ou chegado perto de concretizar suas torpes vontades.  Talvez a escrita tivesse funcionado como uma catarse, talvez nunca aquelas fantasias tivessem cruzado a soleira da realidade, ficando sempre na zona de névoa dos sonhos. Era a minha esperança. Mas então, deitada de costas, as memórias de inúmeras noites de amor, muitas passadas nessa cama mesmo, me invadiram. Sempre fomos bons amantes. Você era, comigo, ardente e gentil. A cereja do bolo do meu sofrimento foi pensar que meu corpo tinha sido cúmplice em tuas fantasias imundas, com certeza você alguma vez, ou todas, havia projetado nele uma criança imaginária. Lágrimas corriam, quentes, eu sentia como que uma febre. Tentei rebuscar na memória alguma pista, algum sinal de tudo aquilo, durante tão longo tempo de convivência. Nada¿ Eu seria inocecente¿ Pode uma doença da alma, de tal quilate, não transparecer nenhum sintoma¿ O olho, sempre acomodado, só vendo o que quer ver…Provavelmente eu também seria considerada culpada,de uma forma ou de outra, era assim que funcionava, num  mundo onde as mulheres são tão severamente julgadas e os homens, sempre compreendidos, desculpados. E eu realmente sentia uma inexplicável culpa. Então, aos poucos, num exercício de volta ao passado, até o início mesmo do namoro, fui revendo algumas cenas. Risadas inapropriadas. Uma frase. Uma piada. Talvez um ou outro olhar mais cheio de malícia. Ia pisando no solo movediço das lembranças, de leve, como pisando em ovos, recolhendo indícios. E cada indício era uma letra e afinal as letras formavam uma gritante palavra: pedófilo.

 

E a palavra desabou, como uma torre atingida por um raio. E metade da minha vida estava lá.

 

Epílogo : Por sorte, eles não tinham filhos.

 

METAMORFOSE

 

Colocou o dedão do pé na água do mar, para sentir a temperatura. Estava friinha, mas não gelada. O sol ofuscava, bem no alto de um céu azul, com poucas nuvens. Ouvia risos e gritinhos das crianças que brincavam ali perto, espirrando água umas nas outras. Sentia a brisa acariciante no corpo, essa brisa marinha que há tanto tempo não sentia. Avançou, a pele arrepiada, a água já na cintura. O marido espiava, de longe, refestelado na areia, sobre a toalha vermelha, já meio zonzo de tanto álcool ingerido. Em pleno gozo de suas férias de servidor público. Ela duvidava que ele conseguisse se mexer, mesmo se ela estivesse se afogando. Fechou os olhos para não ver mais. Dobrou os joelhos, submergindo até o pescoço e deixava as ondas passarem pelo seu corpo, como se recebesse uma massagem de mãos sábias, experientes. De súbito, mergulhou. Uma onda mais forte a arrastou, e nessa luta deliciosa com o mar, não se importava de sair perdedora. Saboreava o sal na língua. 

 

De repente, ouviu o marido gritar seu nome, o bigode negro tremendo:

 

– Cristina !! Cristina !!!

 

Nem ligou. Estava casada já com o mar…Como prova disso, uma onda mais violenta arrebatou-lhe a aliança de ouro. Assustou-se, tentou ainda encontrar, olhos abertos embaixo da água. Inútil. Iemanjá já devia estar de posse dele, o guardara em sua caixa de jóias, no fundo do oceano. Então, ainda mais apaixonadamente, entregou-se de corpo e alma àquelas águas esverdeadas, mergulhou o mais fundo que podia e que seu fôlego de ex-fumante permitia. Sentia-se em total fusão com a luz, o ar e as ondas. A liberdade fazia seu peito irradiar felicidade. Muito longe, como num sonho, via a figura borrada e corpulenta do marido, agora finalmente de pé, agitando os braços e abrindo a boca. Mas ela não ouvia o que ele dizia, dali só ouvia o bramido das ondas. Ofereceu o rosto ao sol, sentindo seu calor, em contraste ao corpo mergulhado na água fria. Aquele momento tinha vocação de eternidade, ela estava suspensa dentro dele. Músicas a invadiam, vindas de algum lugar desconhecido da memória. E ela cantava, espantada com a cristalinidade da própria voz. Quando cansou, boiou por longo tempo, sem pensamentos, corpo e mente flutuantes. Depois percebeu que estava no fundo, muito longe da praia. Tentou pisar no chão de areia e não alcançou. Nem enxergava mais o marido. Será que tinha ido embora¿ Ou teria ido buscar socorro¿ Queria sentir desespero, mas percebeu, novamente surpreendida, que o que sentia era um enorme alívio. Foi então que suas pernas começaram a formigar. Aos poucos, iam grudando uma na outra, formando uma só carne. E lentamente, causando cócegas, foram surgindo as escamas, brilhantes, prateadas, até o umbigo. Não se assustou. Era como se tivesse esperando por isso há tempos. Como se só agora, sua verdadeira natureza pudesse ser revelada. Nadou para mais longe ainda, espadanando sua bela cauda recém-adquirida espalhando gotículas de arco-íris. Engraçado, a linha do horizonte a atraía, como uma isca no anzol. Para lá rumava, enquanto o sol descia suavemente. Logo o poente iria incendiar o céu e refletir no mar suas fagulhas avermelhadas. Encantada com sua nova fforma, ela ensaiava malabarismos aquáticos. Ainda teve um último pensamento de saudade da terra, ao lembrar do filho adolescente, seus belos olhos ansiosos e seu rosto espinhento. Mas foi só até que o cardume de golfinhos a saudasse.

 

Daniela Pace Devisate nasceu em São Paulo, capital, em 20 de julho de 1971. Vive atualmente em Iguape. é professora de arte, poeta e artista visual. Teve poemas publicados em diversas revistas literárias digitais, como Germina, Mallarmargens, Literatura&Fechadura, entre outras. Em 2018, participou da coletânea da antologia Voos Literários, pela editora Essencial. No mesmo ano, participou de feiras de publicação independente, onde vendia seus livros artesanais de poesia, editados por sua editora cartonera, a Verso Livre. Em 2019, lançou Haikai Tupy, edição independente com tiragem minúscula. Em 2020, participou da plaquete As luas e suas variações, organizador Cláudio Daniel; participou da antologia Simpósio dxs poetxs bêbadxs; publicou um poema na revista portuguesa T¨lön, editada por Luiza Nilo Nunes e nesse mesmo ano, publicou seu primeiro livro individual, Tantos Quartos lunares, pela editora Urutau. Em 2021, saiu no livro As mulheres poetas na literatura brasileira, editora Arribaçã. Tem um livro no prelo pela editora Kotter, Véus de Alethea.

 

 

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