Cultura

Os tártaros não vêm | Leonardo Almeida Filho

Foto de Nick Grappone na Unsplash

Da nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.

Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
Que a memória a relembra inda cuidosa.

               Dante Alighieri, Canto I, Inferno, A Divina Comédia

Poderia ser uma pedra. Quem sabe? Havia muita sombra e tudo era indistinguíveis. Era estranho. Isso era. No meio da rua em que me perdia a cada passo, aquele encontro inesperado. Não, não era espanto, que pedra não assusta ninguém se está parada, e aquilo não se movia, estava lá, com sua inerte beleza e estranheza, bem no meio do caminho, com cara de Drummond num banco em Copacabana, rígido, frio, estático, cagado de pombo. 

 

E eu refletindo: quanto tempo andando, andando, andando para, de repente, estacar diante daquilo e pensar na pedra. Quem pensa sobre esse tipo de coisa no meio de uma jornada? Um poeta, um louco, um bêbado. Na certa alguém que tem todo tempo do mundo e eu, que não sou poeta, louco ou bêbado, não tenho muito tempo a perder, devo seguir, chegar acolá, ultrapassar todo empecilho, mover-me, sair dessa caverna. Não posso esperar os tártaros.

 

Quero declarar que não escolhi o caminho, impuseram-no a mim, fui cuspido, escarrado nessa direção. Empurrado como alguém que entra num carro abarrotado do metrô, vi-me aqui na escuridão cárstica. Sem livre-arbítrio. A gente pensa que escolhe as vias, mas o fato é que nosso trajeto é uma espécie de colcha de retalhos cuja costura é realizada por mãos invisíveis. Não de Deus, que Deus não há e não falo de divindades, me refiro a algo que não é criação do homem e, por não sê-lo, é muito maior e misterioso. 

 

Por que teve que ser assim? Por que sempre é assim? Por que sempre será dessa maneira? E não me venham com pietismos freudianos ou escatologia skineriana… creio mesmo que talvez exista o titerismo e nossos fios invisíveis nos arrastam pelo mundo e, títere que sou, depositaram-me aqui, neste antro de Trofônio.

 

Talvez Clarice não tivesse morrido, fosse outra a estrada, mas agora é tarde e faz escuro sobre ovos e maçãs, e encontrei a pedra inflada, pelo menos julguei que aquilo respirava com seus pulmões de calcáreo, granito ou arenito. Era rocha, mas pulsava, eu sei, e por isso me desconcertava.

 

Não sou petrólogo, não entendo de espeleogia, nada sei de estalactites, mas tremo por me ver em grande caverna, ofuscado por trevas luminosas. Dentro do dentro de nós, reflito sobre paradoxos como o de uma pedra que pulsa, coisas etéreas, inexistentes, como um poema, um romance, um cu de Judas. 

 

Às vezes penso que o amor é assim como uma dor em mansidão, mas descubro, em meus tendões tesos, que não, que é puro desassossego, desmantelo, desmazelo. Quem ama, mesmo feliz, nunca está em paz. Quem ama, no máximo, repousa em letárgica condição paliativa, como um zumbi que suspira, um comedor de cérebros cheios de sonhos arrotando recalque e mal-estar. Amor é o desejo em metástase, eu sei, eu sinto. Pensava em tudo isso enquanto, lentamente, contornava aquilo que julguei ser uma pedra. Precisava seguir, seguir, buscar a luz. Os tártaros, me parece, não vêm.

 

Penso que as coisas instáveis são sempre matéria da literatura, que não se interessa por certezas, e por isso sou todo personagem, construção, e, por puro acaso mallarmaico, depois que fui jogado aqui, encontrei a pedra no meio do caminho. 

 

Não falo coisa com coisa, você me repreende, mas talvez seja você que não escute coisa com coisa, ou filtre coisas que lhe dizem que o amor não é lá muito interessante para quem não quer estar perdido. E eu estou completamente perdido nesse caminho que não escolhi. Repito, não escolhi andar por essa estrada. Mas quem escolhe? Quem? Quem, como eu, que ando rumo ao farol, escolhe a caminhada?

 

LAF

Agosto de 2024

Fotografia de Leonardo Almeida Filho

Leonardo Almeida Filho (Campina Grande/Paraíba, Brasil, 1960), professor, escritor, músico. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB, 2008), O livro de Loraine (Edição do Autor, romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); Nebulosa fauna & outras histórias perversas (e-galaxia, contos, 2014 e nova edição impressa em 2021), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance, Editora Patuá, 2019), Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019 – Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019), Tutano (poesia, Editora Patuá, 2020), Os possessos (romance finalista do Prêmio Candango de Literatura, Editora Patuá, 2021), Berro (contos, Editora Patuá, 2022) além de contos, crônicas e poemas em coletâneas, revistas e jornais. 

Como músico (violonista e compositor) participou de diversos festivais e gravou o CD Papo de Boteco, uma produção independente, em 2017, disponível no Spotify e na sua página no Youtube.

Blog de poesia: www.poesianosdentes.blogspot.com.br

Instagram: @leonardoalmeidafilho

Facebook: Leonardo Almeida Filho

e-mail: leo.almeidafilho@gmail.com

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