Cultura

O panteísmo em Teixeira de Pascoaes | Clara Tavares

“Ó Natureza, qualquer coisa existe de íntimo entre o meu peito e a tua essência…”  

 

Iremos neste texto procurar explorar ao de leve o Panteísmo1 Saudosista de Teixeira de Pascoaes e o seu surgimento dentro dos movimentos esotéricos emergentes em meados do século XIX e princípios do século XX.  

 

Comecemos por contextualizar um pouco; num muito jovem regime republicano, ainda um tanto vacilante quanto ao rumo a seguir, as principais elites culturais da época empenham-se em nortear este primeiro impulso com toda a força e entusiasmo de que se revestem todos os começos. Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos não passa indiferente a este apelo. Natural de Amarante (S. João Gatão), forma-se em Direito (Coimbra 1901) e começa por exercer advocacia, primeiro, na sua cidade natal e mais tarde no Porto. É também neste período e nesta mesma cidade (Primeira República, 1911) que adere ao movimento “A Renascença Portuguesa”, tornando-se o mentor da revista e principal orgão de divulgação:  A Águia (1912-1916).  

 

Os tempos eram então férteis em ideias que apelavam a um ecletismo: a Teosofia de Blavatsky, a Antroposofia de Steiner, o Rosacrucianismo de Max Heindel, Edouard Schuré, defendem para pilares sociais; o universalismo, a compaixão, os direitos e deveres perante a irmã natureza, uma Ciência ao serviço do bem comum e uma nova religiosidade não subjugada aos interesses das castas sacerdotais. Pascoaes mantém afinidade a estes ideais abrindo o movimento da Renascença às mesmas aspirações como o confirmam estas suas palavras: “O Saudosimo é um novo credo religioso que não responde somente a esta ansiedade mística da nossa alma lusíada. O ano passado, apareceu em França, um livro de Eduardo Schureé- A Evolução Divina da Esfinge ao Cristo- no qual o ilustre escritor francês chega a conclusões verdadeiramente saudosistas, pelo estudo esotérico dos sistemas religiosos que tem havido no mundo(…) Este livro de Schureé teve um enorme sucesso, vê-se que ele corresponde a uma necessidade nascente da alma humana. E como a futura síntese religiosa de que fala o grande escritor francês se encontra já criada emotivamente pelo nosso espírito a ele deve competir (por mais extraordinário que tal cousa nos pareça) a sua implementação no mundo. A revelação da Saudade, feita pelos nossos poetas será porventura, a precursora luzerna matutina do novo sol espiritual qua a humanidade espera? Tão grande é este sonho, que não me atrevo acreditá-lo em voz alta (…) Sente-se, na verdade que o espírito humano está desejoso de se libertar do cárcere estreito, escuro, asfixiante em que o materialismo o enclausurou. (…) eu creio que as próprias forças a operarem a próxima transformação, serão religiosas, de natureza espiritual, talvez reencarnadas num novo Cristo. Se esta transformação fosse apenas criada pela matéria teríamossempre sempre as más paixões, os brutos instintos, o feroz egoísmo a dominar (…) felizmente o renascimento religioso é inegável. Encontra-se bem claro não só na obra de Eduardo Schureé, como nas obras dos modernos filósofos , William James, Steiner, Bergson, Boutroux, e ainda no progresso das várias sociedades esotéricas espalhadas pelo mundo.”2

 

Se associarmos a este fluxo a larga tradição panteísta dentro do nosso país : O Pantiteísmo de Cunha Seixas (1836-1895); o Panteísmo idealista de Antero de Quental (1842-1891); o Panteísmo evolucionista de Guerra Junqueiro (1850-1923) ; o messianismo heterodoxo de Sampaio Bruno (1857-1915), identificando-os como precursores de Pascoaes então, podemos dizer com  Braz Teixeira  que:  “ O ciclo especulativo da última metade do século XIX vê surgir uma linha de pensamento que põe em causa a ideia de Deus ao mesmo tempo que abala o pressuposto iluminista de uma razão clara e segura de si que recusa o irracional, para admissão, quer do irracional, quer de outros tipos de conhecimento, ou outras forma gnósicas, como a intuição, a imaginação e a crença (…)”3

 

Portugal e o Saudosismo 

 

Embora encontremos nestas ideias o mesmo sentimento perfilhado pelas escolas esotéricas da antiguidade clássica, é de assinalar que Pascoaes fá-las ressurgir como um profeta desse mesmo ideal, mas à escala nacional, por considerar estarem reunidas no nosso país as condições para tal desafio, já que, se encontra congeminada no inconsciente coletivo uma predisposição natural que inclina às ações e desejos por um mundo melhor. 

 

No contexto da participação à escala global, entre nações, este seria o principal contributo da Alma portuguesa. Pascoaes funda esta sua convicção na natureza poética e filosófica da história do Pensamento português onde abundam expressões evocativas como:  o mistério, o indefinido, ermo, remoto, ausência, luar, e sobretudo, a palavra “nevoeiro” como aquela que mais apela a esse invisível, pressentido indistintamente, tornando-se a recordação de uma perfeição e a esperança de a voltar a ter. É a Saudade…   

 

Para o pensador esta palavra tem, nesta fase da sua vida, um significado profundíssimo. Escolhe-a para simbolizar a Origem como aquele início onde a perfeição ainda é possível antes de se desvanecer em saudade. Na impossibilidade de ser percecionada com clareza, toma forma diáfana por trás do véu opaco da nossa realidade e permite aflorar à consciência os mais nobres ideais e assim ativar o secreto movimento latente no coração – que o autor refere como orgão de inteligência:  mas inteligência já iluminada pelo sentimento superior – a fusão do produto mental com o Amor unificador de que resulta a Sabedoria além do simples conhecer.  Neste nível4, sujeito e objeto apreendem-se mutuamente na sua essência significante ao contrário da contemplação e da intelectualização em que há uma distância entre os dois (sujeito e objeto) diminuindo-se a possibilidade gnosiológica. A perceção futura dessa e outras funções do coração, para lá das que lhe são atribuídas atualmente, introduzirá a necessidade de se ter em conta a simpatia ou afinidade no processo cognitivo como o fator principal para o conhecimento íntimo dos fenómenos. O sentimento amoroso – depurado do sentimentalismo pessoal – como a grande força universal agregadora será aquele que: “nos reproduz espiritualmente na alma de outra criatura onde ficamos a viver, e desenvolve a infinita perspetiva do Universo, porque abrange todos os acontecimentos a caminho da sua realização.”5 Tornando-o assim o fundamento para uma síntese de todos os saberes. 

 

Mas, pode-se perguntar: que tem isto a ver com os problemas sociais e políticos que urgem resolução rápida? 

 

Estas e outras questões semelhantes colocou-as António Sérgio,6  a Teixeira de Pascoaes  na revista A Águia, onde diz a certa altura: “Dizem que o saudosismo está de acordo com o espírito contemporâneo. Essa pretensão, como todas as do saudosismo, é precisamente o contrário da verdade. Não poderia ser o desacordo mais perfeito, nem o absurdo mais sensível. A afirmação característica e fundamental do espírito contemporâneo é o mobilismo, o avanço, a tendência para diante, o desejo de ação e da vida ascensional. (…) Ora a saudade é o contrário de tudo isso: imobilismo, inércia, contemplação do passado. Amor de cristalizar, mumificar o que já foi (…) A saudade é por isso um gosto amargo, como muito bem afirmou Garrett: o gosto do passado e a amargura da mudança.  Poderia haver maior contradição com todas as tendências sociais, filosóficas e religiosas do nosso tempo?”7.

  

Dúvidas pertinentes na abordagem deste complexo tema e reveladoras das diferentes mentalidades inerentes ao passar dos tempos. A de Pascoaes exige conceitos de outra ordem que desconhecidos da vida mundana permanecem contudo no amplexo maior da existência universal, como o refere o autor do Marão nestas palavras:

  

“O homem não é apenas o ser de que falam as leis e os códigos (…) o homem dentro da biologia com as suas relações com o Universo é bem maior do que o homem dentro da sociedade nas suas relações com os seus consórcios, (…), a vida humana esconde na sua frivolidade exterior, no seu vestuário social e político, a infinita Seriedade, o divino drama da alma, a matéria bruta, pela dor e pelo amor, libertando-se da morte, (…), estudemos o homem transcendente , o além homem que o português encerra”8 (…) As criações espirituais são tão verdadeiras como as criações materiais, porque aquelas resultam destas . Entre as duas criações não pode haver interrupção. O espírito é matéria evoluída. A Saudade é a própria alma universal, onde se realiza a unidade de tudo quanto existe. (…) O saudosismo panteísta, revelador e criador dos aspetos viventes e misteriosos da Criação, é escultural por natureza (…) Há vários modos de ser grande para além da do Comércio, da navegação e da indústria. 9

 

Este “modo de ser grande” passa em Portugal pelo édito ético de emprestar ao condicionalismo dos outros países a lembrança da espiritualidade esquecida. Se a Roma católica, na opinião do autor, há muito deixou de representar a pureza da mensagem crística, tal não aconteceu no nosso país.  O retorno profetizado do Cristo10  a partir do Ocidente para o mundo – desígnio esse assinalado como a nova religiosidade nos movimentos esotéricos a que aludimos, encontra em Portugal a tarefa facilitada porque, o nosso país nunca foi católico e nunca foi submetido a Roma. O autor lembra-nos que os cultos ao Divino são no nosso país inspirados na Natureza; nos sons naturais, nas paisagens solitárias, no diálogo íntimo com todas as formas de existência. Daí as capelinhas nos montes, em lugares remotos pouco acessíveis ou em rochedos à beiramar. É um Panteísmo já assimilado e cultuado naturalmente. A Saudade não é esta ou aquela saudade, mas: “A saudade no infinito ou do infinito (…) em que tudo é o mesmo ser.”11

 

O abandono do Movimento Saudosista 

 

Contudo, e a avaliar por algumas biografias de quem mais de perto conviveu com o autor,12 este cansado e desiludido com a incompreensão geral e a apropriação indevida para justificar nacionalismos que nunca pretendeu defender, afasta-se do movimento em 1920. Enceta assim uma nova fase reconhecida por diversos comentadores como um 2º período ou “segundo Pascoaes”. A intuição natural do seu pensamento, o arroubo místico da sua escrita toma neste momento da sua maturidade uma expressão mais abrangente como arauto de toda a humanidade.

  

O Saudosismo dá lugar nesta fase ao que chama de Ateoteísmo13. Embora mantenha o espírito de síntese e a mesma necessidade de uma compreensão integrativa dos fenómenos, vai assumir estas ideias cada vez mais em relação às tradições espirituais anteriores e arredadas do catolicismo: A busca da nova palavra capaz de levar o homem a outras amplitudes mentais e espirituais em que Ideia e Palavra14 se tornam germinativas entre si e criando o  “Reino Psíquico”, ou  os pensamentos vitalizados e vitalizadores (autênticas entidades vivas), e que, a partir de um outro plano tornam-se os verdadeiros condutores dos acontecimentos; um Ateoteísmo que se justifica face a uma realidade maior  infundida pelo devir propulsor da evolução dos mundos em manifestação, exigindo à reflexão uma  “uma certa descrença em relação à crença”, não somente no domínio religioso mas em todos os quadrantes da atuação humana;  uma Supra-biologia  e uma Supra-teologia como característica do futuro reino Suprahumano, razão da evolução humana na Terra, podendo esta prosseguir até alcançar outros modos de viver dentro da escala hierárquica que assume o Universo; o advento de um Cristianismo não teológico mas Supra-teológico, como aquele que  inclui todos os seres e não somente os humanos, irmanando todos na Natureza e responsabilizando a humanidade cuja dianteira  não a pode fazer o déspota que é nos nossos dias, mas sim, a “irmã mais velha” que cumpre ajudar e orientar, porque : “Onde estiver o ser humano estão todos os seres.”15.

 

São estas as linhas mestras do seu teor filosófico nesta segunda fase da sua obra. A perfeição saudosa toma forma universal e permite reforçar a nossa convicção de que as ideias de Pascoaes evoluem cada vez mais numa aproximação aos movimentos espiritualistas dentro do esoterismo ocidental sobretudo da Gnose helénica com longo rastro histórico. Assim também o parece entender Ângelo Alves, que desenha um percurso para esta influência:   “filosófica-religiosa que vem do fundo dos tempos, com raízes nas teogonias e cosmogonias da antiguidade oriental passando por Anaximandro e pelo Orfismo, persistindo em contraste com o conceito cristão de criação desde o século II no gnosticismo helenista, maniqueísmo, na Kabala hebraica. Entre os Cátaros dos séculos XII e XIII, na cosmosofia da Renascença, em Bohme do século XVI, nas obras do II Schelling, nos filósofos russos do século XIX e XX   e que, contemporaneamente chegou até nós através de Sampaio Bruno, Junqueiro, Pascoaes e outros.”16

 

Muito mais haveria a dizer, mas este esboço já vai longo. Compreende-se que na perspetiva académica se torne difícil integrar a obra do nosso autor na definição de Sistema filosófico. É certo que o seu teor especulativo entrelaçado em elementos vários e a aparente dispersão sem obediência a um programa sistemático, levam a que se possa vislumbrar nos seus livros, não mais do que arroubos emocionais ao invés do seu raro exercício intuitivo. No entanto cremos ser possível seguir na sua vasta obra, um princípio, meio e fim, se a conectarmos a esse outro fio que acompanha a História desde tempos imemoriais e que se vai atualizando no surgimento contínuo de vários movimentos monistas/ Panteístas, como os já referidos. Sem tal informação, parecenos ser difícil descobrir os grandes significados subjacentes às ideias expressas pelo autor do Marão, e assim, passar ao lado da profunda e enriquecedora dádiva sugestiva que nos deixou.  

 

Notas

 

1 Panteísmo, Panenteísmo, Pantiteísmo, são as três derivações do Monismo espiritualista do século XIX. Significam respetivamente: «Tudo é Deus»; Tudo é em Deus; Deus em tudo. Os dois últimos estão presentes respetivamente em Krause e Cunha Seixas.

 

2 Teixeira de Pascoaes, A Saudade e o Saudosismo, dispersos e opúsculos, compilação de Pinharanda Gomes, pp.

 

3 António Braz Teixeira, Deus, Mal e a Saudade, Fundação Lusíada, Lisboa, 1993, pp. 16, 69.

 

4 Na terminologia teosófica corresponde a «Buddhi». Em Kant a« Razão Pura».

 

5 Teixeira de Pascoaes, Santo Agostinho, Assírio & Alvim, Lisboa 1995.

 

6 António Sérgio, uma das vozes mais contestadoras e representativas do lado pragmático, utilitário, com a visão do imediato entrincheirada no presente. Defendia que o Saudosismo deveria circunscrever-se aos poetas e às artes em geral, deixando os assuntos sociais para os homens de ação. A Economia seria, no seu entender, a ciência que permitiria o avanço dos povos. Isso mesmo pode ler-se na correspondência publicada n’ A Águia.

 

7 Idem, pp. 99-100.

 

8 Idem, p. 87 e seguintes.

 

9 Idem, pp. 47, 135.

 

10 Não tal como o catolicismo o historia.  A linha de pensamento de Pascoaes está mais de acordo com as narrativas apócrifas e do gnosticismo dos primeiros cristãos.

 

11 Teixeira de Pascoaes, op. cit.

 

12 Vd. Jorge Coutinho, O Pensamento de Teixeira de Pascoaes, pp.28-29.

 

13 Neste termo funda as suas especulações religiosas e éticas. Segundo os seus; Princípio de Identidade Incerta e Princípio de Excedência inerentes à dinâmica existencial, não permite na mundividência   conclusões definitivas. Então não há lugar para os dogmas, nomeadamente os religiosos.

 

14 Também Proclo prevê a oportunidade de ascender à unidade final através de leituras escolhidas e que conduzam a uma progressão hierárquica no processo de pensar segundo a ordem: sentidos, imaginação, discurso, intuição. Trata-se de uma conversão natural através das leituras adequadas.

 

15 Teixeira de Pascoaes, Santo Agostinho, Assírio & Alvim, Lisboa 1995, p. 172.

 

16 Ângelo Alves, O “Ateoteísmo” de Pascoaes, Retórica, Indecisão ou Aprofundamento? in, Revista de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p.190. 

 

  

Clara Tavares: Mestre em Filosofia pela Universidade do Porto. Tem lecionado, apresentado conferências e escrito artigos sobre vários autores.

Corresponsável pela delegação norte do Centro Lusitano de Unificação Cultural.

 

 

 

 

 

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