Cultura

O homem errado | Marcos Pamplona; Rolando Méndez Acosta, ilustrações

Desci do ônibus nos fundos da Catedral e corri para me abrigar da chuva embaixo de uma marquise. Há um bom tempo desabava um aguaceiro constante, os bueiros mal podiam com os córregos que se formavam nas canaletas da rua. Mesmo protegido eu recebia respingos da calçada; um carro que passou rápido demais ergueu um leque de água que encharcou meus pés.

 

  Depois de alguns minutos nisso, resolvi entrar numa lanchonete ali perto, para onde vi dois rapazes se dirigirem. Era na verdade uma pastelaria antiga, daquelas em que o óleo, eternamente a ferver numa frigideira industrial, impregna roupas e cabelos e torna rançoso até o olhar dos clientes, que mordem em pé a massa fumegante. Pedi uma cerveja, me sentei a uma mesinha que ninguém queria, ao lado da porta do banheiro. Bebi devagar, hipnotizado pela cortina de fios de água que escorriam do toldo verde da pastelaria. E foi com o braço estendido para a frente, como se quisesse abrir a cortina, que a mulher entrou naquele ambiente saturado de fumaça e calor de corpos amontoados. 

 

 

Ela trazia um casaco gotejante sobre a cabeça. Usava um tailleur  bege de funcionária de loja, segurando junto ao peito a bolsinha de couro marrom. O rímel escorria de suas pálpebras como lágrimas de palhaço. Não conseguiu lugar no balcão lotado, mas fez o pedido e lhe deram um copo de café. Quando se esticou para pegá-lo, reparei que a saia estava molhada; revelava uma bunda firme, pequena mas apetitosa. Não demorou muito para que ela me encontrasse lá no fundo e, tirando uma mexa de cabelos rebeldes dos lábios, me examinasse melhor. Imaginei que devia ser engano, que estava procurando outra coisa, o banheiro talvez. Mas veio em minha direção, concentrada no copo; sentou-se à minha frente sem pedir licença. Deu um pequeno gole no café, encostou o copo quente na testa e me olhou com uma carga incompreensível de súplica e rancor. 

 

– Por essa você não esperava.

 

Tive que rir.

 

– Não mesmo. 

 

Ela analisou minha reação, desarmou-se um pouco.

 

– Você ficou bem com essa barba.

 

Quis lhe dizer que estava me confundindo com outra pessoa, mas ela não me deu tempo. Cruzou as pernas, mordeu um cantinho do lábio inferior.

 

– Foi ridículo… Você não precisava ter feito aquilo. Por que não veio falar comigo, como qualquer pessoa adulta?

 

Olhei o nome escrito no crachá que ela trazia na lapela.

 

– Ana Paula, olha…

 

– Ana Paula? Agora você me chama de Ana Paula? De repente somos dois estranhos, ok. Pois saiba que eu não passei um dia, um dia sequer sem pensar em você. Dois anos pensando num cara que simplesmente desapareceu, sem nenhuma, zero consideração por mim, dá pra acreditar? Eu quase enlouqueci!

 

Sua boca tremia, ela piscava nervosamente.

 

– Ana Paula, eu não sou a pessoa que você está pensando…

 

– Não sei, vamos ver. Se você é um canalha, um irresponsável e um covarde é exatamente a pessoa em que eu estou pensando.

 

Fiz com a mão um sinal para ela parar.

 

 

– Você está me confundindo, eu não te conheço. Que tal a gente inverter as coisas: primeiro a gente se conhece, depois a gente se acusa? É o que as pessoas fazem, em geral.

 

Ela fez um biquinho de desdém. Abri um pouco os braços, amigável:

 

– Prazer, Juliano.

 

– Juliano! Essa é boa! Até de nome você mudou. Mudou de emprego, de endereço… mudou de mãe também? Porque aquela que eu conheci nunca mais te viu. Pelo menos foi o que ela me disse.

 

A tempestade não parava; já havia pessoas no meio da pastelaria que não consumiam nada, esperando a calmaria, como macacos numa caverna. De repente voltei a sentir o velho perigo de estar envolvido em agitações que não me diziam respeito. Foi um erro, eu devia ter ido direto para o trabalho. Sempre pode acontecer uma coisa como essa, nunca se sabe; você toma um desvio e lá vem a novidade. Novidades me desorientam. Gosto de saber a que horas vou estar onde, com quem. Não tenho energia para mudar de emprego, de casa, de amigos, quero comprar o mesmo pão na mesma padaria, ver os mesmos filmes de ação no sofá puído que já tem a forma do meu corpo. O que a gente precisa é encontrar um ritmo para não incomodar nem ser incomodado, o resto é confusão. Foi um erro. Peguei um desvio e agora a mulher me olhava, aflita, à espera de uma resposta.

 

– Não sei quem é esse sujeito, eu disse, mas só pode ser um grande vigarista. Deve ter feito algo muito grave pra sumir dessa maneira que você está falando. Ou então… ou então ele estava tão cansado da sua vida que resolveu procurar outra. 

 

– Ah, eu bem que imaginei. É um clássico. O cara conhece outra e puf!, desaparece na esquina.

 

– Eu quis dizer outra vida. Pelo amor de Deus… Estou falando do sujeito com quem você pensa que está falando. 

 

Eu devia realmente ser muito parecido com o tipo em questão. Mas a voz, as expressões, a personalidade, ela não percebia a diferença? Vai ver queria tanto encontrar o tal homem que ficara satisfeita com um sósia. Cocei o sovaco, pensando nas possibilidades que isso me oferecia.

 

– Não que eu ache ruim você ter sentado aqui.

 

– Você enlouqueceu, Luigi? Bateu a cabeça? Acha que eu não reconheço essa boca hipócrita que vivia dizendo que me amava? Esses olhinhos de moleque filho da puta?

 

– Luigi? Não, eu não me chamo Luigi. Meus pais não fariam isso comigo.

 

Ela jogou o café na minha cara. Fiquei perplexo, imóvel. Ana Paula baixou a cabeça, começou a chorar. Quando ergueu os olhos, o inchaço dos lábios no rosto em lágrimas me fez sentir toda a pobreza da minha vida. Nenhuma mulher havia chorado assim por mim, muito menos uma tão bonita como aquela. Todos os meus amores haviam sido mornos, tímidos, medrosos. Em reação à minha delicada hesitação, as namoradas lentamente se afastavam de mim. Eu bem que gostaria de ser o Luigi, possuir uma garota gostosa como a Ana Paula, rasgar seu coração, desaparecer sem deixar rastros. Como um cão nojento. Eu queria ser um cão nojento, deixar saudade e raiva, eu bem que gostaria de ser o Luigi.

 

Reparei que um velho nos olhava, ainda que de um jeito discreto. Ridiculamente, ignorei-o com altivez. É que eu geralmente estaria no lugar do velho, na plateia. Agora o drama era comigo, ou melhor, acontecia comigo.

 

Com o rosto melado de café com açúcar, naquele ar empesteado de odores de fritura e mijo, estendi a mão para alguém que supunha que eu fosse um homem atraente e cruel. Ana segurou-a, suave, ergueu-se devagar e, para espanto geral dos macacos na caverna, me deu um beijo ardente, engolindo-me com uma violência que eu nunca havia provado.

 

Devo ter ficado com cara de pateta, porque ela se sentou e riu. Mas, claro, interpretou minha expressão de outra forma.

 

– Você é um idiota… Todas aquelas tardes no quartinho da pensão… O jeito que a gente transava, a fome que um tinha do outro. Os nossos porres, as risadas que a gente dava, as conversas na cama até de manhã – onde você colocou tudo isso, Luigi? O que você fez com isso? Como foi jogar fora uma coisa tão preciosa, tão linda, sem dar nenhum aviso, um sinalzinho pelo menos? Como pôde ser tão filho da puta?

 

Pela terceira vez mencionava minha pobre mãe…

 

Ana Paula olhou para fora. A chuva ia amainando. Cruzou as mãos diante do rosto, apoiou o nariz sobre os polegares. 

 

 

– Que pena, Luigi, que pena. Você é um monstro. Infelizmente. Infelizmente. Um pobre monstro idiota, é isso que você é.

 

Pegou o casaco ensopado, a bolsinha.

 

– Bem… Foi bom ter te encontrado, mesmo você não querendo. Eu precisava de um adeus. Como qualquer pessoa normal, não é mesmo?

  Ana Paula se levantou. Desenrolando-se diante de mim, as belas curvas do seu corpo me tornaram ainda mais miserável. O que fazer? Devia prometer-lhe algo, fingir que eu era mesmo o Luigi, levá-la para a minha vidinha insossa e devorá-la. Agir também como um cretino. Foder Ana, nos dois sentidos. Mas não daria certo. Ela logo notaria que eu não era capaz de lhe oferecer nem o bem nem o mal que ainda há pouco haviam feito sua língua me acariciar como uma faca. Logo perceberia o engano, nunca passaríamos a noite trepando, bebendo, conversando, eu não a destruiria depois, aquela fúria egoísta não era para mim, nunca viveria isso. Estava condenado a não ser amado nem odiado intensamente, como tantas outras criaturas delicadas, apagadas nesse mundo. 

 

– Só me conta um segredinho, quem sabe eu possa precisar disso. O que é que você faz pra ficar tão indiferente ao que os outros estão sentindo?

 

Fiquei calado. A pergunta feita a Luigi servia também para mim. 

 

Ana me deu as costas. 

 

– Adeus, Luigi.

 

– Adeus, eu disse, numa tristeza que parecia ser a que ela precisava para ir de vez, a tristeza de Luigi, mas era só o lamento ressentido do homem errado.  

 

Depois que ela saiu, olhei o horário no celular. Ainda tinha dez minutos. Pedi mais uma cerveja. Me deu vontade de ficar ali mais um pouco, recordando o beijo extraviado. Morrendo de inveja daquele canalha.

 

Marcos Pamplona é escritor, editor e roteirista. Atualmente vive em Lisboa, onde atua como editor da Kotter Portugal e entrevistador do programa Lusofonia e Política, da Kotter TV.

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