Cultura

O grilo, o homem e a solidão | Hermínio Prates

O homem acordou no meio da noite, mudou de posição na cama, mas o sono já se fora. Talvez efeito do sonho, outro sonho estranho, recorrente na maioria das vezes. Sonhava sempre sendo atacado por meninos de rua que tentavam arrancar sua carteira do bolso. Outras vezes eram assaltantes adultos, que o cercavam em uma rua deserta. Para se “vingar” dos atrevidos, às vezes imaginava que a sua reação provocava a fuga dos meninos aprendizes de mal feitos. Ou que, mestre em artes marciais, surrava, com extrema facilidade, os marmanjos que o ameaçavam.

 

Qual a motivação para esse tipo de sonho? Nunca fora assaltado. Será que, no íntimo, sentia que tentaram, na vida profissional, prejudicá-lo de alguma forma?  Sim, poderia ser essa a explicação. Afinal, por inveja ou pura maldade, já fora vítima de algumas pessoas, colegas de trabalho, mas rivais sem limites na maledicência. Se buscasse orientação de um profissional especializado certamente ouviria teses, corretas ou fantasiosas, mas nunca admitira essa hipótese. Respeitava os estudiosos da psique humana, mas… e o sono que não volta? 

 

Buscou outra posição na cama e quando tentou dar um descanso na imaginação, ouviu o som, repetitivo e irritante. Era um grilo, que decidira fazer serenata para alguma fêmea. Mas ali, dentro do apartamento? E como ele viera, em perdidos saltos e voos desnorteados, cair no apartamento?  Na varanda dos vizinhos havia plantas, de variados tamanhos e folhagens atrativas, algumas até com flores. Na sua varanda nada, apenas a poeira que se acumulava até que a diarista viesse. Não havia água e nem alimento, mas o grilo repetia o cri cri insuportável. E ele não estava na varanda e sim dentro do apartamento. Mas onde? 

 

O homem insone saiu do quarto, parou no corredor e aguardou outra sequência de chiados. Ouviu atento e imaginou que o inseto estaria na cozinha. Não estava, talvez se escondesse no outro quarto, entre os livros. Não, quem gosta de livro é traça e esse bichinho roedor de letras não faz barulho, destroça a cultura impressa em silêncio.

 

O grilo o atraiu para outro canto do apartamento. Estaria no banheiro social? Não, ali também não, o mais provável é que estivesse entrincheirado na área de serviço entre o acúmulo de sacos plásticos vazios, par de tênis das caminhadas e o monte de roupas sujas. 

 

O homem não suportava ratos, aranhas, baratas e muriçocas por temor ao veneno, transmissão de doenças e incômodos zumbidos e picadas. Esse tipo de vivente ele matava sem peso na consciência. E só. Nenhum outro ser vivo ele admitia sacrificar. Mas esse grilo… se o encontrasse poderia abrir uma exceção.  

 

De onde cantava esse maldito? O canto, convite para o acasalamento, soava, ecoava, disfarçava a localização do apaixonado no repetitivo esforço de atrair uma fêmea. O homem considerou que fosse impossível que o inseto conseguisse. Um grilo no apartamento já era improvável, dois seria impossível. Ele cantaria até cair extenuado e fêmea nenhuma atenderia ao seu chamado. Seria o mesmo que ele, amante sem parceira, fizesse uma serenata no deserto. Luar sempre havia para inspirar, mas nenhuma mulher para ouvi-lo.

 

De onde cantava esse maldito? O homem, pretenso literato, detestava repetições, mas não se conteve. O profanador do sono alheio sofreria as consequências. Seria esmagado sob a sola do chinelo!

 

Será que? Sim, o minúsculo ser se escondia nas dobras da toalha, ainda úmida do banho noturno.  Lá estava ele, quieto, mas desafiador. Mudo e quedo talvez imaginasse que não seria visto pelo dono da toca, para ele apenas um estranho ser, feio e enorme. Poderia, com um salto, escapar, mas preferiu confiar no disfarce. Não era possível, talvez o bichinho fosse daltônico por acreditar que o negro do seu vulto não se destacasse no tecido verde claro da toalha.

 

Sim, ali estava ele. Era um grilo negro, da família gryllinae, dizem que parente dos gafanhotos, mas não tão daninho às lavouras quanto eles. Esse artrópode já fora símbolo de boa sorte, fartura, prosperidade e vitalidade.

 

Talismã de sabedoria? Também, os povos asiáticos o veneram e até apreciam o seu canto, que é produzido nas bordas das asas; os sons atraem as fêmeas e irritam os humanos.  Alguns são criados em gaiolas, como se pássaros fossem. Os predadores naturais – morcegos, aranhas e escorpiões – infelizmente também são atraídos por eles. 

 

O que fazer? Jogá-lo no chão e esmagá-lo? O quase ódio do humano perdeu o furor e, amante do amor, compreendeu que o inseto também era um apaixonado pela vida, com o ardente desejo de gerar descendência. Não poderia ser condenado à morte na solidão.

 

Com muito cuidado, o homem pegou o grilo, abriu a janela e o jogou na direção de uma árvore na rua. Ele sumiu entre as folhas e, em segundos, reiniciou o canto do acasalamento. Ali sim, poderia encontrar uma parceira.  

 

Curioso, o homem cheirou os dedos que tocaram no grilo. Não gostou, era forte, acre, quase vinagre, talvez corrosivo, mas um encanto para a espécie. Entendeu que aquele era o aroma perfeito, potente feromônio para atrair fêmeas.

 

Da janela, o homem viu – ou imaginou ver – um minúsculo vulto voando e sumindo na folhagem. Seria a desejável fêmea?

 

Instintivamente o solitário insone passeou o olhar pela avenida sem vida. Nada viu, além de cães vadios fuçando lixos e captando o cio da raça.

 

E ele? Sem o canto do grilo ou o apurado faro dos cães não atrairia e nem sentiria a proximidade de alguém que o desejasse. O que ouviu foi a algaravia matinal dos pardais, que a música composta por Roberta Miranda exagerou na licença poética ao imaginar uma “sinfonia de pardais cantando para sua majestade, o sabiá”.

 

Indormido, o que o homem da janela viu foram os primeiros raios do sol no dia que nascia.

 

 Hermínio Prates é jornalista, escritor, ex-professor universitário de Jornalismo, Rádio e Teoria da Comunicação na UFMG, UNI-BH, PUC e Newton de Paiva. Foi repórter e redator do Diário de Minas, Jornal de Minas, Minas Gerais, Rádio Itatiaia, diretor de Jornalismo da Rádio Inconfidência, chefe das Assessorias de Comunicação das Câmaras Municipais de Sabará e de Belo Horizonte e da UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais. Publica regularmente contos, crônicas e artigos em vários jornais mineiros. Autor dos livros Família Miranda – Vidas e Histórias ( ensaio historiográfico) e A Amante de Drummond (contos).

 

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