Cultura

O funeral da baleia – primeiro romance de Lílian Sais | Lílian Sais, Paloma Franca Amorim

“O funeral da baleia”, Lílian Sais, ed. Patuá, Brasil

 

“É tão difícil saber as coisas. É tão difícil perder as pessoas sem uma despedida digna. Afinal, quem parte não se despede do mundo de cá, antes abre bem os olhos para enxergar a luz ou a escuridão. Neste romance veloz, o tempo é sentido em anos, dia a dia, quando a baleia agita o rabo na praia, fazendo sentir-se em cada cômodo de cada casa, ocupando o espaço na sala de quem partiu sem despedir-se.”

(Marcelo Labes)

 

Nos anos 1970, foi encontrado o cadáver de uma enorme baleia da espécie cachalote em uma praia de Oregon, nos Estados Unidos. Diante da impossibilidade de transportá-la, as autoridades locais decidiram enfiar-lhe bananas de dinamite nas vísceras e explodi-la, contando com o trabalho posterior das gaivotas que já se mostravam ávidas para devorar os restos mortais.

 

O cheiro da baleia cachalote, disseram, era putrefato e causava náusea aos repórteres que chegavam para realizar a cobertura da operação. Toda a atividade precisava ser registrada pelos meios disponíveis à época porque parecia ser uma boa ideia a explosão, parecia ser uma manifestação de inteligência e de perícia dos homens do governo, dos engenheiros e demais planejadores da façanha.

 

A fome por cenários em que o ideal de progresso possa ser alinhado à razão humana é uma das maiores características culturais dos povos do Ocidente. A articulação intelectual a propósito do terror é marca decisiva da dominação ao longo da história do mundo tal qual a conhecemos, nos limites de como a conhecemos – pela voz do vencedor, pela gramática dos homens. Uma baleia encalhada, nesse sentido, não passa de uma poeira sobre a lente dos óculos de um filósofo moderno, ainda mais nessas condições: morta e apodrecida, sem utilidade nenhuma para a cadeia de sobrevivência do grã-macho na ponta da pirâmide.

 

As bananas de dinamite são inseridas no interior do cetáceo. O que se sucede fica entre o terrível e o irônico. A contagem regressiva prepara as testemunhas. O câmera da emissora de televisão afasta-se alguns passos, profeticamente receoso de que a explosão cause algum dano ao equipamento. Paira no ar uma atmosfera densa de curiosidade mórbida; as gaivotas também analisam atentas à situação, parecem estudar os efeitos físicos da excitação que antecipa o golpe.

 

O interminável estrondo ressoa nas ondas invisíveis do ar, intensifica-se nas cavidades dos ouvidos, retumbando dentro da cabeça qual fumaça sonora. A percepção tem fronteiras cindidas: vê-se com os olhos e com o estômago, ouve-se com o nariz, sente-se pelo tato um som de gritos silenciosos, angustiantes. Depois do estouro, a baleia cachalote não desaparece, mas passa a fazer parte de cada um ali na praia. Está, desde então, amalgamada à areia, às conchas, às pedras, às árvores, às barracas de coco, ao mar. Tem pedaços de baleia cruzando os céus de Oregon até hoje. Algumas de suas costelas colidiram em para-brisas de caminhonetes estacionadas perto da orla, pedaços atômicos do coração da baleia foram inalados pelos passantes, pelas gaivotas, pelas bombas subterrâneas de óleo diesel. A baleia infiltrou-se tão completa e absolutamente em todas as coisas, que até hoje é possível verificar  sua forma residual, passado meio século, no presente. O estrondo ainda é interminável.

 

Acompanhei de perto a construção deste primeiro romance de Lilian Sais, O funeral da baleia; a cada leitura que fiz, ficou mais evidente o DNA da cachalote arquetípica, de um zilhão de pedaços, intrinsecamente ligado à projeção estética do texto: são fragmentos de uma incessante baleia, partículas viscerais coladas a sistemas cotidianos, boletos de pagamento, senhas de banco, listas de compras, pautas musicais onde são escritas as semínimas do luto partilhado entre pai e filha.

 

Ele, Artur Pereira, habitante da cidade de Assum Preto há muitos anos, acostuma-se agora a morar sem a esposa, carregando nos próprios ombros um peso de si antes despejado na mulher. Na condição de personagem, Artur Pereira retrata as masculinidades que se erigem sobre fundações ocas, pilares frágeis, revestidas de uma falsa ideia de força, energia, virilidade.

 

Joana, sua filha, parece estar contida em silêncios e pausas reflexivas, às vezes desesperadas, que traduzem a sensação física do absurdo que é, de repente, dar-se conta de que a mãe já não existe.

 

Ver a mãe cair, perder a mãe, enterrar a mãe, rezar a mãe são tarefas abjetas, não cabem na linguagem, a menos que se romantize o signo materno, ressecando-o de suas complexidades, fazendo dele um bem consumível. Lilian recusa esse estratagema de mercado, filiando-se a grupos de autores e autoras que perscrutaram o entrelaçamento literário entre mãe e morte pelo viés do contraditório.

 

Elfriede Jelinek, Toni Morrison, Jamaica Kincaid, Ocean Vuong, Conceição Evaristo são algumas das inúmeras autorias que se aproximaram da pele do terror materno, estratificada em camadas de insistente humanidade, enlace caótico entre amor, violência, sexualidade e símbolo.

 

Em Crime e castigo, Dostoiévski é rigoroso com as linhas morais que definem a relação entre Pulkhéria e Raskólnikov, mãe e filho envolvidos pela tensão de um crime bárbaro. Pulkhéria sofre com o sofrimento de Raskólnikov. Ao saber de sua condenação, desmaia. Com o passar do tempo, adoece ainda mais, embota-se em si mesma, torna-se alheia, entristecida. Crime e castigo é um drama de tessitura realista, Pulkhéria está fisicamente viva e pode sentir na carne a dor do filho, pode ligar-se a ele, ainda que uma distância siberiana os separe.

 

No livro de Lilian Sais, na chave estética de uma temporalidade cindida e simultânea, a mãe é uma citação, uma existência encarada postumamente e que, no entanto, parece também conectar-se à filha, sentir sua dor, condoer-se, querer-se morta, querer-se viva, forjando uma unidade indivisível entre as duas mulheres. Deflagram-se, nesses diálogos entre fantasmas vivos e mortos, outras possibilidades de manuseio da linguagem, impossível linguagem, que desativa a morte como princípio básico do fim. A mãe em O funeral da baleia é o instante suspenso da explosão, no qual ela se torna capaz de multiplicar-se pela totalidade atmosférica. A mãe está para sempre e ao mesmo tempo já não está: dialeticamente ínfima e eterna, diante do mar, presente em todas as coisas do mundo. 

 

 

O peso das cinzas

(trecho inicial do romance “O funeral da baleia”)

 

Lílian Sais

 

Quando o telefone tocou passava da meia-noite. Boletos, datas festivas, noites sem dormir, exames de rotina, idas ao dentista, canto abafado do pássaro fazendo a curva na estrada. Meses sem volta amontoados juntando poeira na caixa de tudo quanto se recorda, empilharam-se os anos, assim é o tempo. No entanto, se é hora de dizer a verdade, a memória do som estridente do telefone tocando com urgência, meia-noite e trinta e sete minutos, essa permanece sem sombra de pó que a encubra, porque atendi já sabendo de onde ligavam e o que iam dizer.

 

Perceba, a casa estava escura, justo convém nesses horários. Nesta casa se dorme cedo, mãe disse uma vez, anos antes, quando atendeu ao toque destrambelhado do telefone às nove e meia de uma noite desimportante.

 

Aquela, contudo, não era uma noite desimportante.

 

Fosse pressentimento do pai, fosse apenas o acaso operando, sem dar pausa – teria visto ou ouvido alguma coisa? –, eu não sei, porém naquela noite eu e ele ficamos no ofício das xícaras de café e conversamos até tarde. Ele falava sobre um tempo que por ser passado soava doce, mas tradições são tradições e devem ser mantidas, Nesta casa se dorme cedo, mantivemos as luzes apagadas, dois vultos sozinhos na cozinha conversando em voz baixa para não incorrer na inconveniência de perturbar o silêncio, que durante a noite convém também o silêncio, você sabe, você já entendeu. É esse silêncio que hoje estou disposta a quebrar, feito a torneira da pia, que aquela noite insistia em permanecer pingando, quisesse ela mesma contar a sua versão da história.

 

Pouco depois de irmos para o quarto, a chamada preencheu a noite. Não acendi lâmpada: conhecia os lás e cás, e convinha o negro. Já diante do aparelho telefônico, percebi por cima do ombro direito que pai me observava imóvel, como se preso em poeira gestante, e que no profundo íntimo daqueles olhos ainda havia grama onde pisar.

 

Pai podia muito bem ter respondido ao toque do telefone antes de mim, que cruzei a casa toda, mas para ele eram três passos impossíveis de somar um mais um mais outro. Eu sabia. Por isso mesmo executei todos os movimentos do ritual, sem transparecer hesitação. Era um acordo nosso, feito, entendido e selado no silêncio – tradição.

 

Ele queria jogar um pouco para adiante, Um dia, logo, mas não já. Barganhava. Quem sabe mais uma semana inteira, uma semana inteira seria bom demais. Explicado então por que foi em movimento decidido que assumi a tarefa de tirar o telefone do gancho quando ele tocou. Era a forma miúda que eu tinha de salvar meu pai.

 

Miúda também a ligação. Vejo o vulto de pai, que caminhou até à mesa e ali se sentou, o contorno cada vez menos maciço daquela pessoa que nunca chamei pelo nome. Olho: o homem por trás do pai, que gira a colher derrubando o café. Mais magro do que eu me lembrava, com mais rugas na testa do que eu alguma vez tivesse me dado conta. Artur Pereira.

 

Telefone desligado, a cena estava posta. Lá, pai Artur Pereira, as pernas longas como as minhas, mas flexionadas, mais abertas que o necessário. Ele está sentado. Os pulsos apoiados nos joelhos. A cabeça que oscila: olhar reto para a frente, ceder pouco a pouco à gravidade, queixo rumo ao peito. E depois, do começo, olhar reto para a frente e segue, os movimentos que por conhecer adivinho na ausência de qualquer chama. Levanta os braços à altura da mesa e manuseia a colher dentro da xícara de café, regrado e decidido, mas derramando um bom tanto do líquido pelas bordas, como também era de costume. Não é homem de ter delicadeza nos gestos. E toma o café em goles avantajados e poucos, fazendo barulho de se ouvir para lá das paredes. E então coça o saco com a mão direita.

 

Artur Pereira não usa cueca. Pai é um homem simples, que gosta de dizer que aproveita o conforto possível, o que tem à mão. Os shorts são largos, pretos feito o pássaro. São dois iguais, mas nunca formam dupla, um vai para o balde enquanto o outro fica no corpo, É de ficar em casa, para não gastar as roupas, para ele não tinha complemento além desse. Roupa era uma coisa outra que não aqueles shorts, e pronto.

 

O exemplar daquele dia, além de largo, guarda há tempos dois furos na risca da costura entre as pernas. Os dois furos nos olhos do Assum Preto, no escuro até fantasiava, quando mais nova. Eu, diante dele, deparo com o saco, com o qual cresci junto, ano a ano, eu para cima, ele para baixo. Observei o quanto pude naquele escuro todo. Estava, de fato, medonho. Um saco sem fim nem fundo nem meio, saco inteiro, daqui a pouco chegaria nos joelhos, tocaria a terra, atingiria o centro dela, plantado, sem nada de necessário que germinasse de novo.

 

Daí ele derrama mais café, sem perguntar nada sobre o telefonema ou sobre qualquer outra coisa. E pega as palavras cruzadas, fosse de repente fazê-las.

 

Aconteceu: Artur Pereira é um homem velho e sabe que vai morrer.

 

Lilian Sais é escritora brasileira, preparadora de texto e produtora de podcasts. Doutora em Letras Clássicas, publicou, de poesia, a plaquete Passo imóvel (Ed. Cozinha Experimental) e os livros Acúmulo (Ed. Patuá) e Uma baleia nunca dorme profundamente (Ed. Hecatombe). Tem poemas, contos e textos críticos publicados em diversas revistas digitais e impressas. Alguns dos seus poemas foram traduzidos para o espanhol, o inglês e o grego moderno. Em 2021, venceu o Prêmio CEPE Nacional de Literatura, na categoria poesia, com o livro inédito Motivos para cavar a terra. Em 2020, foi contemplada pelo ProAC para a publicação deste, que é o seu primeiro romance.

***

Paloma Franca Amorim é escritora brasileira, professora e artista plástica, autora do livro ‘Eu preferia ter perdido um olho’ (Ed. Alameda, 2017)

Quantidade de matérias: 58

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