Poesia & Conto

O celular, ensaio | Demétrio Panarotto

Ilustração de Helena Barbagelata

 

O celular toca alto e cozinha no asfalto quente da avenida.

 

Após a imagem solitária e por conta do som dos passos, entendemos que alguém se aproxima de modo precipitado. 

 

Vemos as botas pararem próximas ao celular – agora temos: as botas e o celular no mesmo plano em uma cena congelada em que o aparelho segue gritando como se pedisse ajuda.

 

Em segundos a mão entra em cena – agora temos, em pose: o celular, as botas e a mão suspensa.

 

(A mão, que titubeou mais que uma vez, pega o celular e o aproxima do campo de visão, esse movimento nós não vemos.)

 

Vemos, num corte sem rodeios, a tela e nela escrito: 

 

“mãe” e dois coraçãozinhos. 

 

No contra-plano, e a pouca distância, o corpo de um rapaz segurando o celular com uma das mãos e com um capacete embaixo do outro braço. 

 

O rapaz atende – somente agora vemos o rosto dele, pálido e de um olhar vidrado: 

 

– filho, tu já está chegando?

 

Novamente a cena é congelada e agora escutamos os ruídos da cidade em estado bruto num fade in que vai até o desfecho desse parágrafo. Aí a câmera se espraia pela cena e vemos, em primeiro plano, um braço, desgrudado de um corpo mais adiante e um rastro de sujeira e algumas manchas de sangue no asfalto que nos leva até uma moto que bateu na mureta de proteção e voltou para a pista. 

 

(Primeiro a câmera foca aquilo que está perto e embaralha o fundo para depois focar no fundo e desaparecer com o peso daquilo que os olhos não querem ver).

 

Esse movimento de câmera anuncia a transição de uma imagem esfumaçada que se apaga, a do motoqueiro estirado no chão, para que aos poucos a outra apareça sobreposta, a de um buraco escuro e, num desenho de som preciso, longe, mas com uma sensação de proximidade, ouvimos a sirene de uma ambulância.

 

Retornamos o personagem e em seu semblante, sem que tenha dito uma palavra sequer, percebemos a falência do mundo, só após isso, poucos segundos, escutamos a sequência da voz que lhe empapa os ouvidos: 

 

… não esqueça de pegar o bolo, a Marina não para de falar nisso, as amiguinhas… – a voz segue, agora parecendo surda e desconectada.

 

Congela-se a tela de projeção. 

 

 

O professor se levanta e deixa o controle em uma cadeira ao lado da que se encontrava e sem dizer uma palavra sequer se movimenta caminhando lentamente até o interruptor. 

 

Acende a luz.

 

Os olhos dos poucos alunos que estão em sala piscam no mesmo lusco-fusco entre a presença e a falta.

 

Esfregando uma mão na outra o professor regressa à parte da frente da sala. Olha para os alunos com a mão próxima ao rosto e diz:

 

– O motoqueiro que caiu na rodovia sabia que era um escravo…

 

e segue: 

 

– O que agora segura o celular também sabe que é um. É possível imaginar que, e isso não passa de um exercício de ficção, o motoqueiro com o celular na mão, que ainda vegeta, monta na sua cabeça a imagem da própria morte. A cena que ele acabou de ver e que segue pulsando (na mesma dimensão de um coração fora do peito) é o oráculo mundano… 

 

Um aluno tenta interromper…

 

Mas o professor aumenta o tom de voz para não perder o fio do discurso:

 

… Na agenda disso que as pessoas chamam de deus (ou atribuem a ele), a morte do motoqueiro que vegeta provavelmente está marcada para amanhã. Acontecerá naquele momento de distração do dia em que o personagem se lembra do sorriso da filha e acerta de frente um caminhão que havia reduzido a velocidade por conta de outro acidente, provavelmente com um motoqueiro…

 

… o ponto que nos conecta com a história – segue o professor, com a voz novamente em uma modulação média – e que por conta disso atribuímos à nomenclatura de audiovisual, é o momento em que a voz do celular se amalgama à cena e nos dá a amplitude e o sentido daquilo que aconteceu. Não é uma tragédia grega, por favor, entendam isso… o sentido grego para tragédia é outro. O que nos acostumamos ver nos jornais diariamente é o uso indevido da palavra, endossado pela estrutura social. Não podemos usar “tragédia” para aquilo que, se vivêssemos em uma sociedade menos mesquinha, poderia ser evitado. 

 

Há um eco em sala de aula.

 

– Pois bem, segue o professor, aquilo que vocês acabaram de assistir poderia muito bem ser, no que tange à problematização da vida do trabalhador atual e da dramaticidade dos corpos, a cena de um filme do cineasta britânico Ken Loach. Mas não é. Não passa de um delírio do diretor Roberto Panarotto. Uma cena que ele ainda não filmou, mas que já me contou mais que uma vez e me disse para que eu não a usasse.

 

– Como assim professor? – pergunta o aluno.

 

– Uma cena que o diretor pensa nela todos os dias, mas que ainda não conseguiu filmá-la, reforça o professor.

 

O aluno parece contrariado.

 

E o professor segue:

 

– Em algum momento me pergunto, quantas cenas prontas para serem filmadas arquivamos em nossas cabeças? Cenas que não sabemos ao certo se ajudariam na montagem de um bom roteiro ou que somente alimenta a ilusão de quem ainda sonha em fazer cinema sem ter um centavo sequer no bolso.

 

– E isso que acabamos de ver na tela, o que é? – insiste o aluno…

 

– O que vimos na tela é a realidade, o nosso dia a dia. O filme, diante da brutalidade da vida, deixou de ter qualquer importância.

 

O professor que até aquele momento olhava a todos como se os procurasse um a um, tosse, uma tosse carregada de pigarro e dos descabidos da semana, e anuncia o intervalo.

 

Os alunos se levantam e, entre eles, antes mesmo de chegarem à porta de saída, perguntam-se – e o Ariovaldo? o único colega que faz o trajeto de moto até à universidade.

 

– Hoje o Ariovaldo não veio, intromete-se o professor, sem levantar a cabeça, enquanto termina de arrumar as coisas sobre a mesa.

fotografia de Demétrio Panarotto

Demétrio Panarotto (1969 – ) nasceu em Chapecó SC. É um músico, compositor, pesquisador, professor e literato brasileiro. Paralelamente a uma carreira musical com a Banda Repolho e projetos alternativos, louvados pela sua originalidade e irreverência, desenvolve atividades como acadêmico, palestrante e escritor. Publicou vários livros de poesia e prosa que lhe valeram o reconhecimento como um dos nomes de destaque da nova literatura do estado de Santa Catarina.

Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
3
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.