Cultura

O caderno de quarentena, de Mario Alex Rosa

Capa do livro Casa, de Mario Alex Rosa

Mais certo que as leituras que fazemos desses dias imersos na tormenta que adoece o planeta, sejam provisórias. Marcadas pela incompletude da falta de um distanciamento capaz de proporcionar menos inexatidão aos olhos que veem e leem, e menos ilusão à sensilidade. Por outro lado, também, é certo que não se deve negligenciar o aprendizado desse tempo. De repente, todos nos vemos, de fato, o aprendiz de que nunca deixamos de ser.

 

O convívio, certamente, seja um núcleo relevante ao fundamento do aprendizado desse momento. Em muitos casos, não sem algum sofrimento, por vezes, diário, temos que aprender, reaprender a convivência com o nosso próprio “eu”. A rotina cega em nós o que somos para nós mesmos e para o outro. A rua, a cidade, o trabalho, as viagens, enfim, as fugas adiam e frustram essa visão necessária de que precisamos ter de nós mesmos. E, depois, de nós inseridos no mundo, de nós em relação com esse mundo que, não apenas nos circunda, mas que nos inscreve, talvez, possa-se pensar que nos incorpora a ele, tornando-nos parte dele. E aí pensamos e incluimos as pessoas, a natureza, a cidade, o planeta.

 

Dentre tantos desses movimentos de retorno a nós, o retorno à casa, apesar da ideia meramente consumista do “confinamento” ou da obsessão, manifesta, explicitamente, nesse período, embora não seja nada estranho ao afã contemporêneo, pela assepsia da morte. Da tentativa de afastamento de tudo e toda contaminação que pode levar à morte, ou, minimante, à ideia da morte.

 

A volta à casa, não como mera metáfora dessa multiplicidade de retornos que esse momento nos impõe, mas a volta à casa, propriamente dita. A essa intimidade vital em que pensávamos cada vez menos. À simplicidade dessa célula vital da própria cidade.

 

A linguagem é um dos meios de criação de caminhos possíveis a esse retorno. O poeta – fico até receoso de dizer isso assim – mas o poeta, por si, não é um ser fascinado pelo mundo que não faz conexão permanente com o quintal de sua casa. Porque o mundo para o poeta só existe a partir desse quintal revisitado, reabitado, ressignificado. Com isso, não se quer dizer e nem negligenciar o sofrimento, também, dele, por esse retorno impingido na carne do tempo que é também a sua carne, a sua pele histórica quotidiana.

 

Mario Alex Rosa (1966), poeta são-joanense, em meio a essa diáspora que marca o retorno para dentro de casa, publica o seu sexto livro de poesia Casa (2020). Um livro breve, com poemas curtos (tercetos), numa linguagem que prima pela simplicidade, leveza, exatidão e pelo vigor de uma poética no sentido do fazer literário e do “pensar poeticamente o pensamento poético, a poesia, com diz Harold Bloom, por meio da criação de imagens inaugurais que acendem, de repente, lumes pelos cômodos da casa e dos dias desse tempo envolto por uma nebulosa invisível, mas que empurra a rua, a cidade, o dia pra dentro de casa.

 

Escrevi ao poeta, ainda à luz da primeira leitura, de uma leitura imediata ao abrir o livro, dizendo que a simplicidade é o grau maior das artes, que só os grandes artistas atingem esse grau que é, pois, de perfeição e não estágio de iniciante. Aliás, como ressalta, Ronald Polito, no prefácio: A simplicidade é estratégia exigente para se alcançar a profundidade das coisas. 

 

Assim, a gente pode ler, em poucos minutos, o livro, como o li, de brevidade temporal semelhante. Mas a linguagem poética contida no livro, penso que pela simplicidade e pela própria poesia que há nesses objetos apropriados por ela, até pela visão desses objetos pela casa, próximos do alcance das mãos, dos olhos e dos sentidos que tocam também o livro, e que tocam neles pelo livro, nos faz retornar, ou seja, conviver, mais demoradamente, com a sua leitura.

 

Assemelha-se a um voltar incessante aos cômodos da casa, aos objetos da casa, à vista e às visões que a casa nos permite aos olhos, que estão disponíveis diariamente, mas que os olhos cegados do visível não enxergam mais. E, então, a diáspora que traz, não apenas o poeta, como o homem, a cidade, as ruas pra dentro de casa, também, nos faz revisitar, ressignificar cada um desses espaços, da escuta de cada um desses cômodos, dos ruídos de cada um de seus objetos, das vozes que permeiam e silenciam as vozes quotidianas pela casa, dos entreolhares oblíquos que as cortinam permitem, encenam.

 

Um dos elementos imprescindíveis que essa diáspora põe em cena é o tempo. Mas não é um tempo afeito aos sentidos dos relógios e dos calendários, mas de uma noção de tempo que está em construção na própria ciranda desses dias: quanto tempo/dura o tempo/na quarentena? Não se trata de um novo tempo, porque o tempo não é novo nem velho. Mas um tempo específico desse momento. Um tempo de que não se tem uma noção exata de sua durabilidade. Por isso não se prende à ciranda dos ponteiros ou aos pequenos quadrados dos calendários. 

 

Como dar conta desse tempo? Como vivê-lo, em contraste com o tempo absolutamente cronológico? Pela linguagem poética. Pela literatura, mais um vez recorro a Harold Bloom, que é modo de vida.

 

Daí que, de repente, o ovo aceso no frigir da frigideira – ovo quebrado/na frigideira/um sol – ilumina o dia de um novo sol. Um sol que não queima os olhos, como ensina o neto de Luiz Costa Lima ao avô, explicando o que ele entende por ficção. O sol da linguagem que acende a casa tomada pela vida refeita de cada cômodo e que, num tempo que ainda não se pode precisar, certamente, acenderá as ruas, as cidades, o planeta meio amuado, porque o homem agora olha e toca esse mundo com mãos e desejos plenos de dias, enfim vistos de janelas e portas abertas, de cortinas arrastadas, cuja claridade se liberta dos ácaros e das sombras.

 

O poeta, de retorno à casa e na sua nova convivência com ela, olha e a acolhe ao colo em todos os cômodos, mas comedidamente, por áreas – sala, cozinha, área de serviço, quarto e banheiro. Retornar à casa não é um se amotinar nela de qualquer jeito e pelo tempo que tiver de aturar o tempo da quarentena. É o desejo por tê-la, mas por meio de acolhimento, de uma ressignificação, ou melhor de uma invenção diária de cada cômodo, até que a casa toda esteja pronta e apta para assim que as janelas e portas puderem ser reabertas, devolver ao mundo, às ruas, à cidade um novo tempo, um novo homem.

 

A mão que esfrega/serve a que escreve/limpando sujeira. Não se trata da ascensão do esfregar, metáfora dos trabalhos domésticos que a casa exige, ao status da escrita, do escrever, ações etéreas do ofício do poeta, mas a igualdade de função entre a vida e a escrita da vida. A literatura é modo de vida que não exclui a vida propriamente dita.

 

Continuo, duplamente, dentro de casa reaprendendo o tempo, a linguagem, as ruas, a cidade, o ser humano e a mim mesmo pela escuta desse momento peculiar a esse século. Desse modo, Casa continua se revelando a cada leitura, como a cada cômodo, a cada hora do dia como se nos encontrássemos com algum objeto, algum ângulo que ainda não nos tinha sido possível ver.

 

Citando o Armando Freitas Filho, na contracapa do livro – uma casa que se tranca e se abre no tempo, como uma forma de sair e ficar para sempre. O poeta hibernado na palavra, hibernados dentro de casa.

 

A literatura como vida. A casa como dever.

Nilo da Silva Lima

Nilo da Silva Lima, natural de Ponte Nova (MG), graduado em Letras pela FUNREI – Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei, onde também fez pós-graduação em Estudos Literários. Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Sócio correspondente da Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte Nova. Tem artigos publicados pela Vertentes – Revista Universidade Federal de São João del-Rei; pela Ato, revista de literatura de Belo Horizonte; Cronópios, revista eletrônica especializada em crítica e literatura brasileira; Em Tese, revista da UFMG; resenhas sobre a obra de Adriana Lisboa e Denise Emmer no Caderno Prosa e Verso, do jornal O GloboRevista da Academia de Letras de São João del-Rei; jornal A Gazeta de São João del-Rei. Mantém oblog www.literaturalima.wordpress.com.br onde publica com regularidade apenas textos literários.

 

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