Cultura

Nas profundezas do Grande Mar Oceano

 

Quem acompanha minhas postagens sabe que só me declaro, a respeito do que leio, para comentar aquilo de que gosto muito. É o caso do primoroso e cativante romance Grande Mar Oceano, do veterano escritor Leonardo Almeida Filho, cuja obra, confesso minha relapsa ignorância, começo a conhecer apenas agora.

 

Há alguns dias, após trocarmos mensagens por uma rede social, Leonardo confiou-me um texto inédito de sua autoria, um divertidíssimo auto teatral que li de um só fôlego e comentei a enaltecer suas óbvias qualidades como se fosse resultado de um genial arroubo de um autor neófito – tamanho meu desconhecimento acerca do autor, acrescido da imensa humildade com que pediu minha desimportante opinião.

 

O desdobramento desse contato foi ele presentear-me com o Grande Mar Oceano, em cuja orelha descobri que Leonardo já havia lançado pelo menos oito títulos, nos mais diversos gêneros.

 

Instigado, capturado pela revelação dessa obviedade da cena literária que eu desconhecia, resolvi passar os olhos no livro que, a seguir, depositaria no fim da pilha daqueles que aguardam leitura.

 

Deu-se que o breve reconhecimento antes do adiamento tornou-se visgo, leitura compulsiva, inadiável. Simplesmente não consegui parar, senão vencido pelo sono quando cheguei ao meio tomo, para reiniciar tão logo voltasse a despertar.

 

Um romance raro, imperdível, narrado por diversas vozes, em diversas épocas, em estilo sóbrio, porém vibrante. Um mosaico de acontecimentos que liga fatos do terremoto de Lisboa em 1755 a outros decorridos durante os duzentos e vinte e cinco anos seguintes, passando por Brasília e findando num Rio de Janeiro submerso nos escombros do término do regime ditatorial.

 

Uma riqueza inestimável de testemunhos e personagens resgatados por um fio condutor que urde a trama que os envolve com a mestria de uma bem arquitetada narrativa descontinuada que sobrepõe épocas e costumes como se fossem todas o tecido de uma cultura que independe de calendário ou de cartografia e que se mostra, mais do que um processo histórico consecutivo, um painel quase estanque de valores arraigados em cânones imutáveis, nos quais a História debate-se em estéreis espasmos evolutivos que resultam em pífios progressos.

 

Para pespontos dessa tessitura, Leonardo elege as palavras numa esmerada composição linguística que observa não apenas a precisa seleção lexical pertinentes às geografias e aos períodos retratados, mas, sobremaneira, àquilo que concorre para a caracterização dos diversos personagens, muitos deles a dividirem a tarefa de narrar o enredo em um discurso difícil de caracterizar como indireto, livre, direto ou qualquer outro dos modelos que aprendemos nos livros didáticos dos bancos escolares, eu arriscaria dizer discurso direto livre, se é que isso existe antes de inventado por Leonardo!

 

Só mesmo um mestre em Literatura, literalmente, para ousá-los e obter êxito nos engenhos postos como recursos estéticos sem afetação que, paradoxalmente, mais contribuem à clareza do que à confusão que a narrativa fragmentada poderia impor ao leitor.

 

Ressalto ainda um ponto de gratificante identificação com a minha própria obra: Leonardo, em O Grande Mar Oceano, não se atém ao gênero eleito do romance para contar- nos a história. Escamoteia a crônica histórica e contemporânea aqui e ali, escancara o caráter epistolar em partes da narrativa, recheia-o de bastante poesia e insere um divertido conto quase no epílogo do livro. Outro caminho de migalhas deixado pelo astuto escriba traduz-se num toque de resenha literária sutilmente diluída na figuração de grandes nomes de nossa Literatura, presentes como personagens coadjuvantes, a considerar as escolas que o largo período do enredo abarca, contrastando-lhes, sem enfadonhas digressões, os contornos e os recheios.

 

Não bastasse a rica arquitetura textual, preenche-se a obra de interessantíssimo conteúdo, fruto de pesquisa visivelmente acurada, ou de erudição imensa, ou de ambos, que perpassa e conecta passagens riquíssimas das Histórias lusa e brasileira tão visceralmente ligadas pelo Grande Mar Oceano que as separa e une-as num continuum que deságua cheio de atualidade no presente, bem debaixo de nossos pés, ou melhor, de nossas retinas presas ao visgo no papel.

 

Se eu fosse você, que aqui me lê, embarcaria nessa nau maravilhosa para sentir o esfuziante prazer que experimentei durante a travessia que fiz com as velas infladas por esse forte sopro de inteligência e sensibilidade artística que O Grande Mar Oceano oferece.

Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, é licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor de teatro e redação, publicitário e assessor de imprensa, jornalista editor de arte e cultura, gestor cultural nos âmbitos público, privado e do terceiro setor. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à produção literária. Publicou: O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica) pela Editora Giostri; Retalhos de Sampa (2015 – poesia) pela Editora Giostri; Sessenta e Seis Elos (2016 – romance) pela Fundação Palmares MinC; Xadrez (2019 – romance) pela Editora Patuá; Quadrilha (2020 – novela) pela Editora Patuá; Frasebook (2020 – aforismos) pela Edições Karnak; Evoé, 22! (2021 – dramaturgia) pela Editora Patuá.

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