Cultura

Milton Hatoum: um relato entre a verdade e o sentimento | Vitor Lourenço

Capa brasileira. Relato de um certo Oriente.

São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

 

HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

 

 

Milton Hatoum se inclui no salão dos grandes escritores brasileiros contemporâneos. Ocorre com ele o que em grandes autores é comum: uma íntima relação entre obra e história na qual seus interesses particulares traduzem as preocupações e os sentimentos de uma geração. Dois níveis fundamentais se entrelaçam para formar um grande eixo estrutural: a confissão serve de motivo para a produção ficcional que, justamente por seu conteúdo familiar revela os estranhamentos de uma vida diretamente vinculada a uma experiência de Brasil. O arco começa em Manaus e se desdobra até chegar, nos romances mais recentes, a Brasília e São Paulo, isto é, ao passo que Hatoum trama a sua história desentranha um sentimento a respeito do país, amparado principalmente por seu período formativo compreendido entre as décadas de 1960 e 1970, quando fazia parte do extinto Colégio de Aplicação da Universidade de Brasília e, posteriormente, da faculdade de arquitetura da Universidade de São Paulo. O grande alcance de sua obra se baseia, contraditoriamente, nos limites que o golpe civil-militar de 1964 impôs à formação nacional, uma vez que, interrompida a nação, algo de Hatoum também ficou pelo caminho. Nessa sondagem, em que se confundem o pessoal e o histórico, o escritor, utilizando-se da pena do desencanto, repassa o Brasil em retrospectiva pela memória.       

 

Gostaria de começar com um apontamento a respeito do título Relato de um certo Oriente. É comum que a bibliografia sobre o autor acentue ora o “relato”, ora o “Oriente”. Isso é plenamente justificável uma vez que o diálogo teórico se realiza mais imediata e profundamente no compasso dos edifícios formal e cultural sobre os quais o enredo é construído. O relato remonta o modo de contar uma história, algo pessoal na maioria das vezes, ligado ao testemunho e à memória. O Oriente recupera um espectro muito vasto da experiência da alteridade em relação à vida ocidental, sem esquecer de sua dimensão discursivo-fictícia apontada por Edward Said no célebre Orientalismo: a criação do Oriente pelo Ocidente. Em meio a essas referências, o que sobressai, a meu ver, é uma palavra extremamente utilizada pelos críticos para floreios e deslocamentos de sentido e que, no entanto, foi pouco analisada em seus efeitos.

 

Relato de um certo Oriente…a ambiguidade talvez não seja tão evidente, tendo em vista a anteposição do adjetivo em relação ao substantivo, mas gostaria de enfatizar essa dupla dimensão do termo. Certo como particular, um tipo determinado, específico, peculiar; e certo como correto, certeiro, preciso. Quase um ato falho, o termo recorre a uma noção que o próprio romance tende a desacreditar, justamente pelo toque subjetivo da memória que dá ao passado uma dimensão mais íntima, desentranhando mais sentimentos do que verdades. 

 

Mas esse é o ponto: O sentimento dá dimensão à verdade; esta já não consegue reivindicar seu posto avançado na consciência sem antes passar pelo silêncio deixado na história. Uma alternativa, diria, o início de um ensaio para uma aproximação do sujeito com o mundo na modernidade tardia. A experiência, no Relato, parece que foi tirada à força dos sujeitos; apenas uma personagem carrega em si a dimensão da autonomia diante do mundo, o que, por sua vez, gera a confusão que dará forma ao conflito enfrentado pela narradora: a matriarca se confunde com a própria realidade e o objetivo é conhecê-la: a realidade por meio da matriarca. 

 

Uma personagem certa para uma certa realidade. Tudo está do lado de Emilie, a razão, o poder, a bondade, a exploração. Ela funciona como um centro gravitacional sobre o qual gira a ordem social do pequeno cosmos provinciano da cidade de Manaus do início do século XX, o mesmo universo que figurará como uma grande ruína no presente de onde a narradora faz sua reconstituição a pedido do irmão: “Se algo inusitado acontecer por lá, disseque todos os dados, como faria um bom repórter, um estudante de anatomia, ou Stubb, o dissecador de cetáceos” (HATOUM, 2008, p. 188). O interesse científico é mais uma vez assunto de contradição diante do panorama geral do Relato, já que a imaginação dá o tom: “Em certos momentos da noite, sobretudo nas horas de insônia, arrisquei várias viagens, todas imaginárias: viagens da memória” (HATOUM, 2008, p. 185). O “certo” presente no título parece titubear quando é apreendido pelo seu sentido de precisão à primeira vista, mas na leitura do romance ele compõe mais que uma parte de um refinado aparato metodológico: nele está manifesto um desejo, que vai além do conhecimento da realidade; a narradora nos leva a uma viagem rumo ao estranhamento gerado pela relação com esse mundo exterior e, por consequência das conexões familiares, com a sua própria história. Conhecer o outro para conhecer a si mesma. Conhecer uma certa matriarca para alcançar alguma certeza sobre si mesma. Mas conhecê-la como?      

 

Um processo de resolução interior se coloca como imperativo para desofuscar o nebuloso exterior, o que a princípio parece contraditório é, sobretudo, uma inversão. O mundo externo carece de uma leitura, ou melhor dizendo, falta ao sujeito a condição necessária para lê-lo que, segundo o romance, se coloca na forma internalizada de resolução do conflito, uma separação que impossibilita o contato e, consequentemente, a compreensão, isto é, o diálogo como pressuposto implícito para conhecer o mundo, as coisas e as pessoas; sem sua possibilidade, não há outra alternativa senão recorrer à procura da solução pela via interna. Portanto, a memória não é simplesmente a lembrança de algo, mas é o universo psíquico no qual os conflitos da realidade podem encontrar uma alternativa para a reconciliação no âmbito subjetivo. E esta saída não é o fim do processo, como poderíamos imaginar, sequer o desfecho ameno das disputas na esfera social; ela funciona como o começo de um novo ciclo da consciência, um preâmbulo necessário ao sujeito que anseia por um contato com o mundo que não impossibilite uma existência autônoma. Aqui, a realidade pode tudo, enquanto o indivíduo sente-se não só aprisionado, como perseguido: “E o passado era como um perseguidor invisível, uma mão transparente acenando para mim, gravitando em torno de épocas e lugares situados muito longe da minha breve permanência na cidade” (HATOUM, 2008, p. 189). Diferente de Fausto, por exemplo, a narradora não possui o domínio sobre o passado, transitando livremente sobre as eras, mergulhando nesse mar de aventuras históricas; no Relato, o domínio do passado sobre a consciência torna o resgate pela memória incômodo, o que, ainda assim, torna-se um momento necessário, uma espécie de missão pela qual o sujeito deve passar para tomar consciência de si: a memória como um ambiente de luta do sujeito com o passado.   

 

Portanto, o tempo desse passado não é histórico; está situado na memória, isto é, tem vida própria na consciência, é um conflito particular, uma presença determinada pela ausência gerada na separação pela qual a narradora passa em dois níveis: um, por se incorporar à família enquanto uma agregada; outro, pela interrupção imposta pela mãe à relação afetiva: “Minha história com ela é a história de um desencontro. […] Emilie nunca me escondeu nada, como se me dissesse: tua mãe é uma presença impossível, é o desconhecido incrustado no outro lado do espelho” (HATOUM, 2008, p. 184). Um trauma que, sem processo de luto, faz o indivíduo produzir um personagem – o passado – para ocupar o vazio deixado pelo outro e, posteriormente, passa a encará-lo como um mistério: o mistério da realidade, da matriarca. Eis o motivo do romance: um ajuste de contas interno para o que foi emperrado no mundo externo. 

 

Veja-se, então: os regimes de duplicidade emergentes no romance compõem não só seu estilo, mas sua estrutura. Enquanto o estilo regula os deslizamentos entre o plano interno e externo, a estrutura dinamiza-os segundo a relação com o objeto. De um lado, a memória que é sempre memória de um outro e, daí, o ir e vir entre lembranças que remontam acontecimentos do passado, segundo as impressões de quem está com a palavra e, na mesma direção, uma preocupação com a unidade dos relatos em um panorama de inquietudes deixadas à deriva que renascem com a escavação do tempo perdido:

 

“[…] mas fui incapaz de ordenar coisa com coisa. […] Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a sequência de ideias. E isso me alijava do ofício necessário e talvez imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado pelo acaso.” (HATOUM, 2008, p. 188)

 

O relato: relatos de outras vozes, ordenados segundo o juízo desta narradora que carece de identificação e, ainda assim, está determinada a desentranhar as razões da infância que ajudaram a compor o melancólico quadro do presente: o anonimato não é à toa, funciona como um momento de abertura da obra para o encontro que desafia o passado. Um passado que, sustentado pelo lirismo dos depoimentos, emerge como algo idílico e, ao mesmo tempo, quando visto à distância, do ponto de vista da cidade em ruínas do presente, dá a sensação sombria de que lá atrás, no meio de todo perfume da infância, havia algo apodrecido. No plano interno, as vozes dos que participaram do passado revelam as marcas e as dores fundamentais que no mundo exterior passaram desapercebidas segundo o ponto de vista que orientava a história: o instinto de preservação familiar da matriarca.

 

Do outro lado, sob a ótica da estrutura, a polifonia que reflete a imbricação entre sentimento resgatado e verdade sufocada aparece pelo mecanismo do uso das aspas, através do qual a narradora se põe e repõe, passa o bastão a outras vozes em busca do tempo e do espaço dos encontros. Ao abrirmos o livro no primeiro capítulo, percebemos a ausência das aspas e a voz da narradora está ali diretamente postada diante do leitor. Ao chegarmos no segundo capítulo, as aspas tornam-se presentes até o fim do romance. O dado curioso: há capítulos, além do primeiro, nos quais a narradora faz suas aparições e avulta sobre depoimentos de outros familiares e amigos, emite seus juízos, expõe seu método e, ainda assim, ela opta por relatar sua própria narração como se fosse uma outra pessoa. Narração entre aspas…as hipóteses são várias, mas eu arriscaria dizer que há uma reposição subjetiva com interesse a dinamizar os pontos de vista apresentados dentro de uma unidade narrativa; e essa unidade está assentada justamente no anonimato que permite a flutuação de um ser em seu ser outro. O mistério do passado amenizado pela revelação dos sentimentos daqueles que viveram o perfume agridoce da infância. 

 

Ao final, reclusa em um hospício, a narradora localiza seu estranhamento como um lugar de familiaridade:         

 

Alguns dias passei ali, pensando: como tinha ido parar naquele lugar, e esperando que minha amiga me revelasse o que mais temia, mas que para mim já era uma certeza, pois intimamente estava persuadida de que fora internada a mando de nossa mãe, depois do meu último acesso de fúria e descontrole, quando nada ficou de pé nem inteiro no lugar onde morava. Vim sem muita resistência, como um cego ou uma criança perdida que são conduzidos a algum lugar familiar. E ali, a alguns quilômetros do centro da cidade, a loucura e a solidão me eram familiares. Da janela do quarto via o emaranhado de torres cinzentas que sumiam e reapareciam, pensando que lá também (onde a multidão se espreme em apartamentos ou em moradias construídas com tábuas e pedaços de cartão) era o outro lugar da solidão e da loucura.” (HATOUM, 2008, p. 182)

 

E, aqui, temos algo que, no Relato, é recorrente e assume o papel de uma componente formal. Levando em conta os níveis de curiosidade da narradora sobre os mundos proibidos da infância, ela nos conduz a ver uma cidade dual e, ainda assim, pautada sob o eixo da ruína espiritual e material: no presente, o mundo pauperizado e o mundo modernizado compõe a feição da mesma paisagem. Diferentemente do passado, no qual o mundo proibido – o dos despossuídos – encontrava-se escondido no meio da floresta, criando a oposição basilar em relação ao mundo da infância, ele agora encontrava-se diluído no espaço urbano. Uma mudança de ponto de vista que migra da matriarca para a narradora e traz à superfície o cheiro estranho que, na memória, pôde dar contorno à infamiliaridade pela qual a narradora passa. Em uma palavra, e voltando ao nosso ponto inicial, a ambiguidade do “certo”, desde o título, funciona enquanto tom do realismo de Hatoum que possui sua eficácia justamente por explorar o movimento de aproximação e distanciamento entre espaço e tempo, interior e exterior, ser e não ser, mundo pauperizado e mundo desenvolvido, o que em sentido geral se apresenta como a emergência do real pela memória no embate com a realidade determinada pela impostura da matriarca. Todas essas forças atuando segundo uma unidade narrativa que, por meio do íntimo, pôde atingir precisamente o negativo da história: “a melodia de uma canção sequestrada”. Um relato certeiro para a experiência interrompida de um certo Brasil.   

 

Título original: Relato de um certo oriente

Lançamento: 10/07/2008

ISBN: 9788535912661

Selo: Companhia de Bolso   

 

O escritor brasileiro Milton Hatoum nasceu em Manaus, capital do Estado Amazonas, em 1952. Lecionou Literatura na Universidade do Amazonas e na Universidade de Berkeley. Seus primeiros romances, Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irmãos (2000) foram ganhadores do prêmio Jabuti de melhor romance e publicados em oito países. Por Cinzas do Norte (2005), recebeu seu terceiro Jabuti e os prêmios Bravo!, APCA e Portugal Telecom de Literatura de 2006. Entre outros livros estão a novela Órfãos do Eldorado, o livro de contos A cidade ilhada e a coletânea de crônicas Um solitário à espreita. Atualmente, Hatoum está envolvido na redação do último volume da trilogia O lugar mais sombrio.

 

O brasileiro Vitor Lourenço é carioca e doutorando em Teoria literária pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desenvolve em sua pesquisa uma investigação sobre a correlação entre a obra inicial de Hatoum e o processo histórico brasileiro vivido no século XX com ênfase no sentimento de formação nacional interrompida deixado pelo golpe civil-militar de 1964.

 

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